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XVII
Aquela frase: ”A minha vida dava um filme”, nunca a subscrevi. Eu sempre achei que a minha vida era um filme e eu o seu realizador. Era eu que decidia quem entrava e saía de cena, quem punha e tirava vozes nos personagens, que cenários colocava, quem perdia e quem ganhava, quem sofria mais e quem sofria menos, quem falava e quem ouvia, qual era o olhar que brilhava e o que chorava, quem se apaixonava e por quem. Era eu que escolhia os actores e que os dirigia. Quando a cena não estava bem, repetia até ficar a meu gosto. Mas a realidade não era nada disto! No máximo, a minha vida dava um filme.
A conclusão, ou uma delas porque tirei várias, é que fiz tudo mal.
As mulheres são especiais. No todo e em parte. Fiz o que pude e mais do que isso, mas falhei na forma. As portas servem para abrir e para fechar, mas há formas infinitas de o fazer, qualquer fazedor de portas sabe isso. Eu não sabia. Entre o sim e o não, faltavam-me as palavras e havia um dicionário pelo meio. Ninguém mas ensinou, aprendi-as depois, quando fiquei sem ela. A cada dia de ausência e vazio, aprendi uma nova e fui construindo um prontuário íntimo de duas colunas: “palavra incorrecta”, “palavra correcta”. Talvez nunca o termine, talvez não tenha tempo de o usar. Não o estou a fazer para isso. É mais uma necessidade intrínseca de não desiludir o Criador, ou de me aproximar, embora estando a léguas disso, daquilo que Ele imaginou para mim. E é engraçado como Ele nos deixou este trabalho nas mãos, tanto mais árduo a quem mais achou capaz, dizem. E o que de início me parecia uma injustiça atroz, parece-me hoje sinal de inteligência. Então não? Se tens os meios, hás-de conseguir utilizá-los e encontrar a forma! Não deixa de ser um filho da mãe por causa disso! Um grandessíssimo filho da mãe, Deus me perdoe!
Porque não havia Ele de premiar os bons, os homens de boa-fé? Tínhamos de ser nós, nós sozinhos a encontrar o bem, a antagonizar o mal? Por isso é que o filho lhe disse: “ Meu Deus, porque me abandonaste?” Se fosse hoje, ia preso! Bem, preso talvez não. Os maus nunca vão presos, mas da liberdade condicional penso que não se safava! Então não é crime criar os filhos para depois os abandonar?! Entre a Justiça divina e a Justiça dos homens, qual é mais justa?
Mas tudo isto é um devaneio de quem muda de vida à força, por imposição alheia, por circunstâncias do destino, por imprevisibilidade, por falta de controlo em si e falta de domínio sobre os outros no domínio sobre nós.
Quem sou eu ou quem eu sou? Há diferença nisto?
Telefonei-lhe. Ela estava muito mais perto de Deus do que eu, embora eu não soubesse se isso era bom ou mau. Quem era Deus? O que é que Ele queria de mim? E ela? Nunca percebi. Deixou de me interessar no dia em que decidi que isso ia deixar de me interessar e que ia continuar a viver, fosse qual fosse o significado disso. Só há esta forma de lidarmos com o que não percebemos. Há outras, mas fazem todas mal.
Eu tinha de me desligar da corrente e continuar a dar luz. Nada que não tivesse já feito na minha vida. Tantas alternativas: geradores, baterias, pilhas, painéis solares…
Estava ocupada, não tinha tempo…
Eu era um homem cheio de sorte, tinha sempre tempo para o que considerava importante e sabia estabelecer as minhas prioridades de uma forma inequívoca: ela, estava sempre em primeiro lugar. Sabia que haveria de chegar uma altura em que não seria assim, o tempo opera sozinho. Tinha algum receio, muito vago, que ela acordasse nessa altura e fosse tarde para mim. O meu tempo não era igual ao dela e eu não lhe consegui explicar isso. Não porque não tentasse, havia coisas que ela não queria perceber e eu nunca entendi porquê. Medo, recusa, convencimento?
Desliguei, ficava para depois. Com ela era assim, eu ficava sempre para depois. Para ela só era urgente o que não me interessava para nada, o que podia ser feito depois.
Talvez ela também fosse uma mulher cheia de sorte, talvez tivesse sempre tempo para o que considerava importante e talvez soubesse estabelecer as suas prioridades de uma forma inequívoca: eu, é que nunca estava em primeiro lugar. Talvez fosse só nisto que éramos diferentes!
Sabia que haveria de chegar uma altura em que não seria assim, o tempo opera sozinho. E tinha algum receio, muito vago, que ela acordasse nessa altura e fosse tarde para ela. O seu tempo não era igual ao meu e eu não lhe consegui explicar isso. Não porque não tentasse, havia coisas que ela não queria perceber e eu nunca entendi porquê. Medo, recusa, convencimento?
Saí, fui ver uma exposição de um amigo que se inaugurava nessa noite e para a qual me tinha convidado, gostava muito que viesses. Gostei muito de ter ido. Arte, se pudesse comprá-la, tal como a ela, trazia-a para casa. A arte punha-a na sala, a ela espalhava-a pela casa toda.
Eu sabia o que tinha de fazer, apagar a chama das velas sem ter outras para acender. Encher os meus pulmões de ar frio utilizando toda a minha capacidade torácica e num só sopro, de frente e a direito, esvaziá-los na sua direcção. Mas a luz das velas era de um amarelo pálido, cálido e morno que deixava as faces dos amantes, ternas de paixão, numa cumplicidade comungada, partilhada, pacificada. E eu não conseguia. Enchia os pulmões de ar frio o mais que podia, mas depois ao olhar a chama das velas e a luz que delas emanava sentia-me um assassino em noite de luar, um lobisomem com os dentes ensanguentados a pingar sobrevivência e maldade. Eu não era assim e por isso deixava as velas arder até ao fim, numa insistência amargurada, numa persistência arrebatada. E não havia nenhum altar a Nossa Senhora, nem nenhum pecado de que eu me quisesse salvar, nem tinha a alma a penar nem nada para confessar. As velas ardiam, dia após dia, eu protegia-as do vento incauto como se protegesse uma criança no ventre, por entre a passagem descuidada do tempo, que tudo leva pela frente, atropelando as coisas simples de que eu era o guardião. Ninguém mexe! Gritaria se fosse preciso e protegia a chama das velas como se de mim se tratasse. Era de mim que se tratava. Quando a chama nelas largasse o último suspiro, o meu amor por ela chegaria ao fim. Teria terminado o que eu não queria que terminasse, agora sim, por minha vontade e de forma natural.
Do que nós somos capazes! Imagem por imagem, construímos um mundo irreal porque este não nos satisfaz. Eu nunca aceitaria que me ditassem um mundo alheio, criança como nasci e como hei-de morrer, teria de construir um mundo à minha maneira. Pequenino, imaginário, de cartão. Nele coloquei um céu dourado. Pus as estrelas cá em baixo a fazer de homens e mulheres. A Lua no meu quarto e o Sol, meu Deus o Sol, por trás do céu, era o que fazia dele, todos os dias, um céu dourado.
Aos milhões de estrelas que brincavam cá em baixo, dei-lhes, em partes iguais, inteligência e sensibilidade, mas fiz um truque, colei-as uma à outra, não podiam ser usadas sozinhas e de forma independente. Quem quisesse usar uma, tinha de usar as duas. Não foi por mal. Foi por precaução. Pareceu-me, a mim, quando construi este meu mundo de cartão que, fosse qual fosse o caso, quando usamos uma sem a outra dava sempre mau resultado. Vinha depois o arrependimento, a frustração, a desilusão, a angústia, a ansiedade, … Neste meu mundo, não havia depois forma de lidar com isso nem a quem recorrer, ninguém sabia que sentimentos eram esses. Como e a quem falar deles?
E faltava o elemento água, onde o colocar?
No centro do mundo de papel havia um lago enorme com uma nascente de água pura e cristalina, onde diariamente as estrelas tomavam banho. Havia uma única condição para nele mergulharem: para além da roupa, tinham de se despir do passado.
Cada dia, era um começo.
Cristina Pizarro