Pedra de Toque - Naná Bicha, por António Roque
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NANÁ BICHA, O MESTRE
Creio que se chamava Ernesto.
Mas o povo conhecia-o por Naná Bicha, Mestre Castelo Branco ou Mestre, simplesmente.
Recordo-o com a boina de esguelha, passo apressado, sorriso aberto nos olhos arregalados, no queixo popeico.
Era um personagem castiço no espectáculo da vida da cidade que o quotidiano encenava sempre neste palco de ruas e vielas.
Durante o dia, Mestre Castelo Branco concentrava seu pensamento delirante na sovela, no tacão, nas meias solas.
Findo o trabalho, descocorava-se e mergulhava na cidade que cirandava, em constante diálogo com ele próprio ou com o génio que o percorria.
Por vezes parava numa tasca e aí inspirava o talento e aquecia a alma com uns vapores de um tinto ou da branca aguardente que sorvia num trago.
O cafezinho e o bagaço levavam-no à mesa dos velhos cafés, onde soltava gargalhadas de gáudio no momento das descobertas.
Este homem solitário, sem família, sem mulher, fazia do cigarro que aspirava com infinito prazer, ao ponto de estalar os lábios no sorver de cada passa, o seu companheiro predilecto.
E quiçá, para chocar o burgo, usava cachimbos estranhos e artísticos de fabrico próprio, onde, em vez do tabaco aromático, empinava o gostoso cigarrinho.
Os jovens interpelavam-no nas mais diversas línguas, e o Mestre, na sua ignorância (?), mas com prodigiosa imaginação, poliglota criativo, inventava palavras e dava resposta pronta.
Ouvíamo-lo dissertar. E quando o fazia na língua pátria, fabricava vocábulos, já como precursor, - quem sabe? – do tão polémico acordo ortográfico.
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Com a cultura dos jornais que devorava, falava do mundo conturbado e dos grandes inventos, construindo sempre frases difíceis, adverbiando arrevesadas expressões.
Diziam os velhos, que de televisão já Mestre Castelo Branco falava há muito, assumindo com convicção a descoberta do mágico aparelho.
Sabiamente, apodava o fenómeno das Termas de Vesuvial.
E nos dias em que a sua paranóia estava mais perspicaz, dizia coisas, a nós que o ouvíamos com mais gosto e paciência, que nos intrigavam sobre o seu génio, eventualmente perdido na sovela e no bagaço.
A história é fértil em exemplos de grandes sumidades e inteligências injustamente qualificadas pelo vulgo como pessoas anormais, como gente mentecapta!..
Não se limitava no entanto o Mestre a abrilhantar a noite com os seus curtos e incisivos discursos.
Em papel de embrulho ou de cartucho de mercearia, vertia em letra garrafal estranhas mensagens.
Depois entregava-as ou enfiava-as por debaixo da porta dos leitores que elegia.
Ainda me brindou com um dos seus escritos, infelizmente perdido no espólio da minha juventude.
Mas dele lembro perfeitamente o aperto de mão franco, seus olhos esbugalhados e, sobretudo, o esgar de felicidade total que sempre, sempre produzia depois de uma tirada de Mestre.
António Roque