Pedra de Toque - O Tonho da Lela
O Tonho da Lela
A Lela era a mãe.
Pariu solteira. O Tonho fora o presente muito querido que o Zé Lameiras lhe deixara antes de embarcar para o Brasil, donde nunca deu notícias.
A Lela, por saudade, vestiu de negro até à hora da morte.
Não se lhe conheceu mais homem.
Trabalhou mouramente a terra, para que nunca, a ela e ao filho, faltasse uma côdea de pão, uma malga de caldo.
Morreu mirrada pelas agruras do tempo, pela rudeza da vida.
Os mais idosos da aldeia ainda a recordam com simpatia, sachando as poulas com o vigor de um homem, acarinhando o filho com a ternura de mãe.
O Tonho cresceu.
Criou amigos.
Foi companheiro de animais em pastos extensos.
Foi ás no peão, ágil no eixo, certeiro na malha, brincalhão com o Palhuças, um rafeiro que seguia ladino a pedra que lhe atirava à distância.
Soube o que era mulher no dealbar da adolescência.
Com os montes e a brisa por testemunhas, num casebre de madeira carcomida, embrulhado numa manta, desfrutou o corpo roliço e tímido de Maria.
O casório foi bonito de ver.
O Padre Luís celebrou-o com simplicidade.
Na prédica lembrou a memória da Lela e o misterioso desaparecimento do Zé Lameiras, pasto, quiçá, de piranhas nas águas do Amazonas quando peneirava a fortuna.
Falou tão bem e tão lindo que a lágrimas afloraram em muitos dos olhos que enchiam a transbordar a granítica Capela.
Do casamento vieram dois filhos – um rapagão e uma moçoila - que cresceram, fizeram o segundo grau e ajudaram os pais no amanho do campo, na criação do gado.
Até que, já passavam dos vinte, casaram no povo e rumaram a salto, até França, onde hoje, legalizados e afrancesados têm vindo a prosperar.
O Tonho quedou-se com a Maria no velho casebre, suportando os frios de longos invernos, transpirando nas colheitas em tempos mais quentes, refrescados pela água da bilha ou pelo vinho escorropichado do pipo.
Um dia o destino levou a Maria.
Tresmalhou, diziam no povo, as velhas sabedoras dos grandes segredos da vida.
Nunca mais foi vista.
O Tonho levado à França pelos filhos, não se entendeu com a conversa, confundiu-se com o bulício e tossiu violentamente com o fumo das “usines”.
Voltou breve aos ares que na sua terra lhe enchiam os pulmões de saúde.
Sem a família, faltava-lhe tudo.
Restavam-lhe os amigos que o animavam, convidando-o para uma bisca lambida ou para uma sueca regada na taberna acafesada, propriedade do Manuel, definitivamente regressado do Luxemburgo devido a um acidente no trabalho.
O Tonho esboçava um agradecimento mas recusava de imediato.
Era visto, com o olhar parado, sentado em imponentes fragas entre urzes e carqueja, vara na mão, espreitando o horizonte horas a fio.
Descobriram-no dialogando com a enxada, discursando para o Palhuças, rindo até ao choro quando alustrava e trovejava e a chuva caía forte molhando-lhe os ossos.
Na luta que travava com a solidão, reconhecia, em momentos de profunda lucidez, a sua incapacidade para o combate.
Um dia, em Maio-Junho, aproximou-se da majestosa Cerdeira que escalara nas suas brincadeiras de infância.
As cerejas, vermelhas de rubras, enfeitavam a árvore.
Então, com o respeito que merecem todos os actos solenes, num ritual pensado, o Tonho prendeu uma corda no braço mais grosso da cerejeira.
Depois, formou um laço seguro que colocou à volta do pescoço.
Pontapeou o banco para onde tinha subido e, num ápice, ficou pendurado e suspenso, de olhos abertos para o espaço, face arroxeada.
Nos olhos espelhavam-se as cerejas carnudas e vermelhas que permaneciam na árvore.
Sem respiração olhava o firmamento com um esgar de felicidade, como se num sofá de plumas, bem lá longe, tivesse descoberto a Lela sua mãe, ou revisto seus filhos viajando em carros franceses.
Quando a gente do povo o descobriu, já o sol se escondia, os olhos do Tonho eram manchas de sangue, depenicados por pássaros que os confundiam com suculentas cerejas.
À entrada da aldeia ouvia-se uma concertina tocando ritmada uma triste melodia.
António Roque