Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade
O Palhaço
Chega sorrateiro, colorido e com sorriso amigo, atraído pela sombra de uma árvore num parque público onde já há balões, risos e guitarradas. Apresenta-se aos presentes com uma piada em vez do nome. Risos. Sai-se com duas carretas atrevidas. Mais risos. Enche mais balões para somar aos que já existem. Cada vez mais gente à sua volta. Pede também um "copito", sem cerimónias. Já faz definitivamente parte da festa.
Risos e mais risos. Uma personagem, este palhaço! Um "infiltrado" que não foi convidado para a festa, mas anima-a, sem pedir troco...
Em terra alheia, ninguém se detém no sotaque de quem não fala a sua própria língua, na forma como cada um pronuncia a palavra à sua maneira, denunciando de onde vem. Mas o deste palhaço é inconfundível, único, tremendamente acusador. É o "tuga".
"Sou do Porto. Fiz muita coisa, estava farto do meu emprego, era mal pago, e vim para aqui, tentar a sorte..."
Não se ganha a vida a despertar risos na rua, mas que admirável o mundo deste artista!
Depois do "copito", um cigarro "cravado" e mais alguns devaneios cómicos, a "personagem", que gravou um bonito instantâneo no coração de um grupo de amigos, segue o seu percurso, buscando animar outras gentes, que talvez escondam pelo meio uma pessoa que, ao ouvir uma palavra estrangeira lhe soar inesperadamente familiar, grite de emoção e saudade: "É um tuga, só podia!"
Parc de la Ciutadella (Barcelona), Verão 2013. Foto de Darryl Eisden.
O Pedinte
Entra discreto, anónimo, cinzento, e de olhar cabisbaixo. Só não tem o olhar triste porque, no final da trela que segura, tem por companhia fiel uma ternura de cão. Enfrenta o olhar das pessoas que se preparam para iniciar mais uma jornada de trabalho e começa a entoar baixinho uma ladainha famigerada. A firmeza do rosto confirma que está preparado para enfrentar também o desprezo e a pena. Cada vez mais olhares se cravam nele. Já faz definitivamente parte da estação de metro.
Olhares e mais olhares. Uma personagem, este pedinte! Um "infiltrado" que não foi convidado a entrar na carruagem, muito menos a quebrar o silêncio do anonimato egoísta que se cheira nos transportes colectivos das grandes cidades, mas aí está ele, sereno, paz no rosto e delicado nos gestos, ansiando por um "troco" cravado...
Em terra alheia, ninguém se detém no sotaque de quem não fala a sua própria língua, na forma como cada um pronuncia a palavra à sua maneira, denunciando de onde vem. Mas o deste pedinte é inconfundível, único, tremendamente acusador. É o "tuga".
"Sou do Porto. Há três anos que trabalho e paro, trabalho e paro... Agora as ajudas do Estado acabaram, e não me adianta regressar a Portugal, que lá também nada se arranja... Vim para aqui, tentar a sorte..."
Não se ganha a vida colmatando o desespero com compaixão na rua, mas que admirável o mundo deste pedinte!
Depois da recolha da esmola, a "personagem", que gravou uma breve emoção no coração dos mais altruístas, segue o seu percurso, buscando comover outras gentes, que talvez escondam pelo meio uma pessoa que, ao ouvir uma palavra estrangeira lhe soar inesperadamente familiar, grite de emoção e saudade: "É um tuga, só podia!"
O "Tuga"
Dois retratos "tugas" com duas histórias verídicas ocorridas na emigração. Tristes, ou alegres, diferentes, ou comuns a tanta gente, mas ambas demonstrativas do inconfundível e único "ser português lá fora". É o "tuga".
Na aventura, o "tuga" é um optimista totalmente incurável, e dotado de uma inexplicável ligação telepética aos outros compatriotas "tugas". Disto fala Miguel Torga no seu "Reino Maravilhoso" (e fazendo juz à minha costela transmontana e flaviense): é "... o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada."
Na aventura, o "tuga" é animalesco. Adapta-se com admirável e reconhecida destreza social à "vida capitalista selvagem", tal como outrora ao campo e à "vida dura". É disto que sentimos sempre saudade nas nossas gentes, cujos melhores exemplos estão nas famílias e amigos que deixamos na nossa terra. As "personagens" que são unicamente "portugueses cá dentro". É por isto que, quando está expatriado, o coração grita de emoção ao ouvir uma palavra estrangeira soar inesperadamente familiar. E quanto mais o sotaque é parecido ao nosso, mais ele grita de saudade...
Nesta aventura da nova emigração "tuga", na moldura não cabem apenas os qualificados "à rasca". Há também os desqualificados, os marginalizados, os desaventurados, os que procuram um lugar e um mundo, longe da pátria. Em Espanha, diz-se que são "muy listos". São os "tugas", só podia.
Sandra Pereira