Ocasionais
“Adãos?! É o que há mais!”
“O homem corre o risco de perder
os seus amigos se estes
se encontram em dívida excessiva
para com ele”.
-D. Hume-
O peixe não picava.
As campainhas continuavam silenciosas.
O pescador lá do fundo, a jusante, na curva da mimosa, veio ter comigo.
Fechei o livro e o bloco de apontamentos, como que a dizer-lhe estar disposto a prestar-lhe atenção.
Mal tivemos tempo para as habituais cortesias entre dois pescadores que se falam pela primeira vez: um carro-patrulha da GNR surgiu da curva do ribeiro que se escangalha pela ravina abaixo.
A patrulha estacionou. Perguntou se «estava tudo em ordem» e se a pesca «estava a dar».
- Nem para amostra! - respondi.
E, depois de saber por nós que não havia mais ninguém a pescar, a patrulha deu meia volta e seguiu para outro destino.
O pescador da mimosa, inspirado por esta visita inusitada, disse-me que, sem saber explicar lá muito bem por quê, veio-lhe à lembrança uma história passada com ele, e, que se calhar, eu nunca teria lido nos meus livros nenhuma parecida.
Percebi o convite para eu o convidar a contá-la.
Assim fiz.
E o pescador da curva da mimosa, lá ao fundo, contou:
*.*
♥ Feita a 4ª classe, continuava, lá na aldeia, a levar as vacas para as bouças e os lameiros; a regar o milho, a podar, a segar erva e a levar a comida aos recos.
Matriculou-se na telescola.
E, atrás das vacas, a semear batatas, a fazer a poda, a deitar «sulfate», a ir ao estrume, chegou a hora de «assentar praça».
Cumprido o serviço militar, aspirou a ser «Guarda» (da GNR).
A estatura não ajudava. Mas deu o nome.
Foi chamado aos testes.
No meio daquele rancho de candidatos, o sargento-mor examinador perguntou-lhe:
- Ouve lá, o que é que tu és ao nosso capitão?
Acabrunhado, enjoujado, responde:
-“Eu não sou nada. Mas o meu tio e ele são amigos”.
- Vai pr’àli! Estás admitido! - sentencia o examinador.
E o rapaz da poda e pastor de vacas em bouças e lameiros entrou para a GNR!
Foi para Lisboa.
Com avenidas tão largas e convívio com tanta gente diferente, também as suas vistas se alargaram! Aprumou-se. Apanhou algum jeito no falar das margens do Trancão. E, finda a Instrução, veio à terra, numa «excursão» de fim-de-semana, habitual e regularmente organizada por um conterrâneo, mostrar como a farda a estrear e o brilho das botas e da solarine dos botões lhe ficava tão bem!
Foi aberto concurso para a Escola de Cabos, e o especialista em fazer a poda e deitar «sulfate», encheu-se de «coraije», ainda mais atrevida por empertigada com o apoio de familiares e amigos que lá pelas moiramas de Lisboa labutavam e com ele partilhavam «bejecas», copos e feijoadas!
Candidatou-se. «Chumbou»!
Surgiu outro Concurso.
Os tios, os primos, e os amigos lá da terra e os amigos feitos na capital, entre copos e palmadas nas costas, entre «bejecas» e bifanas, bem que lhe aumentaram a convicção de que ele estava destinado, destinadinho, a ficar bem desta vez!
Candidatou-se. «Chumbou»!
O tempo decorria.
Surgiu a notícia de um novo concurso.
Quem «chumbasse» três vezes jamais poderia candidatar-se a subir de posto: - ÀS TRÊS É DE VEZ !
Afinal, os tios, primos e amigos, que entre copos, «bejecas», «jaquinzinhos» e feijoadas o enchiam de elogios, de razões para a gabarolice de não precisar de nenhum tio por afinidade, (pois eles ali estavam para o apoiar), não eram suficientes para fazer dele Cabo!
A vida na capital também serve para os «atados» se «desenvolverem»; perderem o acanhamento e ganharem o atrevimento; perderem a vergonha e ganhar descaramento!
E o rapazote que cresceu a sachar milho e a guardar vacas, podado e enxertado pelos ares da capital, angustiado, aflito, desesperado, telefona para o tio por afinidade que o «meteu» na Guarda.
E dá-lhe conta da oportunidade de ser Cabo, mas sem lhe revelar as tentativas falhadas. Pede-lhe ajuda.
O palerma do tio mete-se no «Foguete», e segue para Lisboa.
Fala com um coronel amigo.
Ao tratar-se do assunto, descobre-se que o guardador de vacas em bouças e lameiros e regador de milho tinha reprovado em duas anteriores oportunidades.
Topou que o sobrinho por afinidade estava a ficar «reguila».
O tio palerma lá arranja uma explicação psico-sociológica, e o coronel «mete a cunha».
Bem, com a sua telescola e seguindo à risca as recomendações do tio por afinidade, ÀS TRÊS É DE VEZ! conclui o curso com uma classificação à frente de competidores habilitados com o 12º ano!
Num dia de Verão, o tio por afinidade estava sentado à beira da ruela lá da aldeia, na companhia de outro tio «direito», irmão do pai do apanhador de estrume e guardador de vacas.
O Cabo passou de carro, novinho em folha - vinha mostrá-lo à família, orgulhoso por lhe estar a correr bem a vida!
A «dez à hora», a velocidade é demasiada para se conhecer seja quem for, e nem tempo dá para um aceno de mão!
O ar de desafio de quem deixou para trás andar com uma sachola a apanha bosta para esterco e agora passeia pela aldeia a conduzir um pópó, impede, a cretinos e ingratos, o reconhecimento de quem os baptizou, de quem os apoiou, de quem os apadrinhou, de quem lhes acudiu!
Hoje, o Cabo está perto da reforma.
Desde a promoção que se esqueceu da existência do tio por afinidade - e que até lhe ofereceu a Carta de Condução antes de ir para a tropa, numa época em que as Escolas de Condução não estavam à mão de semear … ou de conduzir como hoje - ficavam a mais de 50 kms da aldeia! ♥
*.*
O meu companheiro de pesca calou-se.
Pareceu-me até que nem estava a dar conta da minha presença.
O toque de uma campainha e o abanar frenético de uma cana, lá ao fundo, na curva da mimosa, fizeram-no dar uma entusiasmada corrida.
Peguei no meu «ganapão» e fui ajudá-lo a tirar um rico barbo de 2kgs e 300, mas que aos meus olhos parecia pesar bem mais perto de seis e seiscentos!
Pitigrilli tinha avisado: - “As boas acções são a base de um próximo ou remoto arrependimento”!
M., doze de Maio de 2019
Luís Henrique Fernandes, da Granginha