Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

31
Out24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis - 13


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

13

 

Há rios que deviam ser impossíveis, mas que nascem para matar, como na tragédia do sul de Espanha, nestes terríveis dias de finais de Outubro.

 

E fica-nos apenas o refúgio da poesia, única forma de perdoar esses rios.

 

Poema 1

Caminho na memória, junto ao rio

Na mesma madrugada, em tantos anos

E mesmo se sozinho, estou contigo

É nesta solidão que caminhamos.

 

13- cabril (7).jpg

 

Poema 2

Um rio perdeu-se das suas águas

Esquecendo-se das pontes cardeais

Que lhe tinham montado entre as fragas

Não ouviremos falar dele jamais.

 

 

Poema 3

Há um rio que nasce

Das palavras

Reúne fios de água

Em cada letra

Inunda-me o papel

E as suas margens

Desagua e renasce

Em quem tem sede.

 

Manuel Cunha

24
Out24

O Factor Humano

Os rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

12

 

Fora daquele vale era um rio comum, com as suas águas ora lentas ora rápidas, limitado por amieiros frondosos, no Verão.

 

Mas entre as duas montanhas era bem diferente, só se deixava ver a espaços, oculto numa floresta de granito, e era preciso conhecer bem os caminhos, os seus recantos e os seus encantos, para a ele chegar.

 

12-1600-olas (121)-pite.jpg

 

Uma abertura nas rochas, por onde os mais ágeis e menos volumosos conseguiam penetrar, e depois o deslumbramento de uma grande gruta, como uma catedral gótica, coroada por um céu azul, nos dias despejados de nuvens. Um rio que corre direito ao altar, debruado de fetos, até desaparecer debaixo do sítio onde deveria estar o crucifixo, e é engolido pelo futuro.

 

Vários metros à frente, noutro recanto do caminho, uma nova entrada, bem oculta para quem não a conheça, dá acesso a quatro toscos degraus, por onde se desce até um varandim de pedra. Quem aí se ajoelhar, pode espreitar outra vez o rio, que agora corre numa caverna menor, fazendo lembrar uma igreja cristã primitiva. Após os olhos se adaptarem `á luminosidade diminuída, podemos ver, nos dias de sorte, uma truta imóvel, voltada para a corrente, na expectativa de que esta lhe traga algum alimento.

 

Mas Manuel quando visitava aquele mistério, levava apenas um pequeno gravador, e escutava, ajoelhado, o canto Gregoriano do Convento de São Domingos de Silos.

Manuel Cunha

 

10
Out24

O Factor Humano

Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(10)

 

Ainda hoje, tantos anos depois, Manuel se lembra da primeira vez que viu a presa da M. no rio R.

 

A memória não lhe ficou gravada por uma qualquer beleza sobrenatural, embora ela fosse realmente muito bonita, nem sequer pela meia dúzia de trutas pescadas, em poucos minutos, nesse dia.

 

Recorda-se de quando se aproximou do rio estar a pensar no seu avô, encostado ao velho Volkswagen azul celeste, o cacifo de vime a tiracolo, a cana encostada ao ombro, o cigarro aceso, na mão direita, num longínquo mês de Maio. Teve então o sobressalto de olhar para o rio e ver, com uma nitidez tal que jura ter visto o próprio fumo a subir do cigarro, toda a cena que estava a circular na sua cabeça.

 

10-rios-20240720_135043-a.jpg

Fotografia de Inês Torrado

Esfregou os olhos lentamente, para não espantar as trutas, e voltou a olhar, na expectativa de ver reflectidos nas águas, os robustos amieiros que na outra margem bordejavam o rio. Mas lá estava o seu avô, o bigode de sempre, o sinal debaixo do olho esquerdo, do qual pensava já não se recordar, o olhar triste de quem pressente que já não vai viver muito tempo, que já não vai pescar tantas vezes quantas necessitava.

 

Ficou imóvel a olhar fixamente o rio, vendo correr nas suas águas paradas as imagens do seu avô, fragmentadas mas nítidas, como quando sonhava.

 

Mas... um pescador é sempre um pescador, e ele lança a amostra e esta voa quase vinte metros até mergulhar no rio, mesmo encostada aos raizeiros da margem oposta. Um violento sacão, ainda antes de completar a primeira manivelada do carreto anuncia um trutão daqueles que são o sonho quotidiano e o motor dos pescadores.

 

Evaporam-se as imagens que corriam no rio, a vida reafirma-se, o sonho volta às profundezas, talvez onde antes estava a truta, sem saber que lá não estaria muito tempo.

Manuel Cunha (pité)

 

 

 

19
Set24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(7)

 

Quando se olhava desde o cimo da serra, era nítida a definição de um trajecto, de nordeste para sudoeste, como quem procura o mar.

 

No entanto era um rio sem correntes, descontínuo. Ia nascendo múltiplas vezes, em cada um dos seus generosos poços, alguns com mais de dez metros de diâmetro.

 

Apesar da transparência das suas águas, a profundidade dos poços não permitia que se avistasse o seu fundo, indefinido e misterioso.

 

A cor e o sabor das águas eram iguais em todos os poços e quando trovejava no cimo da serra, subiam os níveis das águas e estas tornavam-se barrentas, de montante para jusante.

 

Era neste estranho rio que Manuel pescava, com a minhoca, em especial nos dois poços iniciais, próximos da cumeada.

 

7-imagem.JPG

Desenho de Inês Torrado

Um dia prendeu, no poço a jusante, uma truta gigante, que acabou por lhe partir a linha, após um curto combate, e desaparecer na profundeza das águas.

 

Manuel sorriu, conformado, e substitui o fio por um nylon bem mais grosso, capaz de levantar um garrafão do chão.

 

Durante semana voltou ao mesmo poço, todos os fins de tarde, sempre sem sucesso.

 

Finalmente rendeu-se à realidade e foi tentar a sua sorte no poço a montante. Logo no primeiro lançamento a cana dobrou-se toda e o carreto "cantou", cedendo fio, que desta vez resistiu firme a um longo combate.

 

Quando finalmente venceu a truta Manuel afastou-se das águas e abriu-lhe a boca para libertar o anzol. Nessa altura viu, para seu espanto, um outro anzol igual, ainda com um pequeno nylon atado, na mandíbula superior do grande exemplar que tinha pescado.

Manuel Cunha (pité)

 

 

29
Ago24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(4)

 

Dizia chamar-se Manuel e nunca quis contar-me onde era esse rio.

 

Conheci-o na grande metrópole, sentado numa esplanada, costas voltadas para o mar.

 

Um dia falou-me de um rio que fascinava todos aqueles que com ele conviviam.

 

Era paradoxal a evolução do seu caudal: engrossava à medida que a seca se ia instalando na região. Quando o sol era constante e implacável, de nascente a poente, era ver a subida das águas, a ponto de galgarem as margens secas e sedentas desse néctar precioso e raro.

 

4-164.JPG

Fotografia de Inês Torrado

Mais estranho ainda era o seu comportamento quando começava a época das chuvas: o seu leito ia ficando progressivamente mais exposto, como se as nuvens estivessem a beber na sua nascente, antes de devolverem as suas águas, dispersas numa miríade de gotículas.

 

Sucedeu mesmo que, num ano de excepcional precipitação, o rio foi definhando, até as suas correntes se transformarem num ténue fio de tristeza.

 

Só então a chuva começou a diminuir, até desaparecer, no dia em que o rio se ausentou por completo.

 

Manuel Cunha (pité)

 

 

22
Ago24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(3)

 

No largo da aldeia cada um o via à sua maneira, quando ele ficava imóvel por longos períodos, sentado, sempre à sombra, no banco de pedra que rodeava o velho freixo.

 

Nunca chegaram a percebê-lo.

 

Só o seu olhar brilhava, numa felicidade nostálgica. Uma criança jurava que nele tinha visto correr um rio de águas vivas.

 

Na realidade, o velho Manuel estava a pescar, em silêncio, como mandam as regras, lançando e recolhendo, rio acima, persistentemente, como só o fazem os verdadeiros pescadores.

 

3-freixo-1600.jpg

 

Assim o viram, anos a fio, de madrugada e ao fim do dia, estivesse bom ou mau tempo.

 

Já no fim de um Verão seco e prolongado, todas as nascentes, na montanha, já ausentes, a sua imobilidade habitual, como se ele próprio fosse a montanha, teve um sobressalto.

 

Quem assistiu viu-o agitar os braços, aflito como quem procura respirar.

 

Quando o autopsiaram tinha os pulmões cheios de límpida água doce.

 

Manuel Cunha (pité)

 

 

08
Ago24

O Factor Humano


1600-cab-mcunha-pite

 

Italo Calvino escreveu " As cidades invisíveis", Quando li gostei tanto que tive de escrever "Os rios impossíveis". Nas próximas semanas saberemos como são e quantos existem. Nunca saberemos é onde.

 

Os rios impossíveis (1)

 

Aparece numa parede de pedra e cai de vários metros de altura, formando um poço profundo.

 

As suas águas límpidas ganham tons esverdeados quando os raios de sol as encontram, no seu caminho de poucas dezenas de metros, até se sumirem numa outra parede.

 

Ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai, o seu caudal é constante e preenche por completo as grutas de entrada e de saída.

 

Em vão se procurou, nas terras a montante qualquer curso de água que pudesse corresponder-lhe.

 

Era como se nascesse num local muito distante e viesse por um misterioso canal até se despenhar da muralha de granito.

 

1600-cascata (13)-pite-24

 

Ainda mais estranho era o destino das águas, sumidas na gruta a jusante e cujo rastro se perdia para sempre. Ninguém conhecia, nos campos a sul, um sítio onde emergisse um rio semelhante em caudal. As poucas linhas de água que existiam, eram pouco caudalosas e tinham tons azulados, como todas as daquela região, bem distintas do arco-íris verde do mágico rio.

 

Um dia, Manuel  deitou ao rio uma garrafa cheia de água que logo se afundou na gruta de saída.

 

Em vão se procurou, num raio de muitos quilómetros para sul e durante muitos meses, a referida garrafa. Parecia ter-se sumido para sempre, talvez encalhada nalgum recanto da inacessível gruta.

 

Um ano depois ele viu cair na cascata uma garrafa exactamente igual. Num primeiro momento recolheu-a como que para confirmar que era a mesma que ele tinha lançado, exactamente trezentos e sessenta e cinco dias antes, no mesmo local. Depois devolveu-a cuidadosamente ao rio, seguindo desde a margem, o seu trajecto, com atenção, até ela ser engolida de novo pela gruta da parede sul.

 

 Todos os anos, Manuel regressa ao seu segredo, esperando à beira do poço profundo o completar de mais um ciclo da sua vida.

Manuel Cunha (pité)

 

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

20-anos(60378)

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • LUÍS HENRIQUE FERNANDES

      *Jardim das Freiras*- De regresso à cidade-Faltam ...

    • Anónimo

      Foto interessante e a preservar! Parabéns.

    • Anónimo

      Muito obrigado pela gentileza.Forte abraço.João Ma...

    • Anónimo

      O mundo que desejamos. O endereço sff.saúde!

    • Anónimo

      Um excelente texto, amigo João Madureira. Os meus ...

    FB