![]()
Conheço o Fernando dos tempos de Coimbra, quando ele, após uma agitada vida universitária em Lisboa e a tropa, ali foi encalhar e concluir a licenciatura em direito. Fomos vizinhos na Rua da Matemática, porta com porta, melhor, janela com janela, pois naquele tempo, babado por um derriço, chamava-me a altas horas da noite da sua janela para me declamar a correspondência poética em louvor da inspiradora musa.
Já leva três romances publicados, sob o pseudónimo de Fernando Dadim - sendo o nome próprio o seu e o apelido em honra de um bisavô, natural daquela freguesia -, e como passasse pela Ladeira da Brecha, pedi-lhe que me autografasse o último – O Suicídio dos Pássaros -, que recentemente comprei na livraria Ana Maria.
E é a propósito do autógrafo, que escrevo estas breves palavras, por que sobre a sua obra literária, outros, lavrarão sentença, certamente favorável, pois disso estou inibido por amizade.
Em tempos o Fernando, ofereceu-me uns alfarrábios jurídicos, entre os quais umas Anotações ao Código e Legislação Penal do ano de 1903, publicado por Trindade Coelho.
E é das páginas iniciais do agora desactualizado calhamaço, que cito uma das mais impressionantes e emotivas dedicatórias que já tive ocasião de ler. Diz assim:
A
Manoel Barradas
Jornaleiro de Santa Eulália
Que
Por amor de
Uma mulher
Se deixou condenar por
Homicidio e roubo
Estando
Inocente
Dedica
O seu admirador e amigo
Trindade Coelho
No domingo passado decidi calcorrear algumas das povoações galegas da raia, com a intenção inicial de afastar o tédio, mais do que numa jornada nostálgica. Devo dizer que a partir do momento em que A – 24, começou a ter portagens - tantos anos de isolamento, tantas desigualdades em relação ao interior norte … -, há muito que não me fazia ver por aquelas ou outras paragens, afectas àquele ónus. No entanto, por necessidade - tive que efectuar uma ressonância magnética em Lordelo -, fui obrigado a comprar o aparelhómetro nos correio, e não bastasse isso, o raio das geringonça, a cada passo da côngrua, emite um pequeno e irritante silvido, que, mais ou menos causa o embaraço que sentimos depois de tudo termos pago ao passar pela caixa registadora de um estabelecimento e à saída, solta semelhante ruído ou mais prolongado. Depois de conferidas as compras, ao invés do que sucede na A – 24, pedem-nos desculpas.
Passei por Feces, pela “cafetaria Paco”, onde o Manolo teve a amabilidade de me oferecer um “cortado”, parei junto ao irmão de outro Manolo, já falecido, que foi casado com a filha da “Lixa”, reformado há muito dos “Altos Hornos de Viscaya”, que não me reconheceu, salvo quando lhe disse que era o Marinho; pelos comércios, agora fechados do Baldomero, do Quinto e a antiga tenda do Felisindo (pai), e junto à casa onde morava o Senhor Demétrio, encarregado postal; recordei o enorme mapa de Espanha, pendurado numa das paredes e as emissões da RNE, precedidas do hino espanhol, o tecto de madeira em forma de masseira, a larga mesa, onde nos dias de festa presidia o “cura” ladeado do mestre de escola, o cabo de carabineiros de tricórnio, o quarto obscuro onde dormia, quando lá pernoitava nas férias, a cama de folhelhos, que mal caído nela, parecia abraçar-nos…
A fachada brasonada mantém-se quase inalterável, mas a longa varanda está em ruína.
A casa do Senhor Agustin, que era natural de Puebla del Caramiñal e ali casara, estava fechada, mas ainda assim lembrei-me das longas folhas de tabaco postas a secar no alpendre e no palheiro.
Os incipientes amores sob os amieiros nas margens frescas do Tâmega…
As primeira pedaladas numa bicicleta manhosa e quando me enfiei contra uma meda de palha, o Sidrito, gritou:
- “Pero que te matas!”
Quando cheguei a casa de meus pais, então nos Correios de Vila Verde da Raia, ufano, o primeiro que disse, foi que já sabia falar espanhol. E a minha mãe:
-“Então fala lá …”
Quando lhe repeti o grito assustado do Sidro, ela, temerosa, murmurou:
-“ O que este rapaz teria andado a fazer …”
Como as recordações se soltassem naturalmente a catadupas, decidi rumar a Oimbra, onde tenho parentela, que revejo de anos a anos, para não dizer lustros e por isso não lhes conheço poiso certo.
Lá chegado, parei num pequeno café e perguntei se ali estava alguém da família Esteves.
De imediato, me indicou uma pessoa, que estava sentada de costas para mim, sozinho, frente a uma mesa.
Fui na sua direcção e perguntei-lhe se conhecia uns primos de Chaves. Respondeu-me, que, efectivamente, tinha uns primos em Chaves, onde ia todos os domingos com a mulher, à tarde, passear no Tabolado, até à ponte pedonal, junto às azenhas do Agapito.
E que ainda há dias ao passar por Vila Verde da Raia, dissera, apontando os Correios, que ali morara um primo.
Disse-lhe que era filho. A partir daí, não o conhecendo a ele pessoalmente, perguntei por aqueles de que tenho mais viva memória.
A Maribel, professora reformada do Conservatório de Música de Orense, estava doente, mas, ainda assim, cheguei à fala com ela através de telefone. O Toño, mais uma vez, andava pela América do Sul - creio que já conhece todos os países daquele continente -, à procura duma “chica”...
E foi por ele, durante a conversa, que tomei conhecimento que em Verin decorria a feira do Lázaro.
“ Em Chaves a Feira dos Santos e em Verin, a feira do Lázaro”
Despedi-me apressadamente e fui até Verin.
Oh! Decepção, tristeza…!
Aquele Lázaro, parecia que Cristo ainda não tinha passado por lá.
Uma feira, mais ou menos igual à dos “Saberes e Sabores” de Chaves e pouco mais. Nem me atrevi ir à praça.
Pedi um cartaz, não havia; o programa era mais do que humilde, pobre mesmo.
Não era a feira que eu recordava com um mar de gente e o tradicional jogo de futebol entre o Desportivo e o Clube local, ou outros de maior renome.
E não querendo comentar “em seara alheia”, apenas me limito a ilustrar esta crónica, com uma fotografia da autoria de Xosé Vasquez Árias (Rizo), que, recentemente foi objecto de uma merecida homenagem, com a publicação de um livro de fotografias por parte da “Diputacion de Ourense”, na qual falta esta, e que considero ter sido realizada numa feira do Lázaro de antanho, opondo as equipas do Desportivo de Chaves e o Ourensana.
Mário Esteves, capitão de equipa do Desportivo de Chaves, acompanhado de ilustre e bela dama, num jogo com o Ourensana,
por ocasião do Lázaro, vendo-se ao fundo o Gualter.
Fotografia Rizo propiedade de Mário Esteves - Direitos Reservados
O Vasco foi durante muito tempo empregado dos meus tios, salvo uns meses, por desinteligências da parte dele e provocadas por uma falsa amizade que lhe cobiçava o lugar. Tendo reconhecido o erro em que caíra, pediu para regressar e os meus tios, aceitaram-no novamente e ali permaneceu até a doença o impedir.
O Vasco morava na Travesso da Trindade, num prédio de rés-do-chão, no qual habitava, com a idosa mãe, em compartimentos separados por tabiques e à frente com uma simples cortina. A cozinha era ao lado dos quartos e resumia-se a um fogão de gás, uma mesa e poucas cadeiras.
Mas, a parte principal era um forno de lenha.
Recordo que a padieira da entrada do casinhoto tinha por baixo umas inscrições romanas, desconhecendo-lhe o paradeiro, após a demolição da humilde edificação.
Bem, o que interessa agora, era que nesse forno a maior parte das moradoras da Rua do Sol, Rua de Santa Maria, Correio Velho e outras ruas limítrofes, levavam os folares a cozer.
Para os distinguir uns dos outros, colocavam-lhes marcas. Acontece que algumas das marcas desapareciam após a passagem pelo forno, o que gerava discussões nada condizentes com a Páscoa, a decorrer; principalmente quando uns não tinham crescido o suficiente ou tinham um aspecto menos apetecível.
Então, o Vasco com a premência duma próxima fornada e para pacificação do mulherio, perguntava:
-“Querem ver que são meus?”
Era o suficiente para de novo reinar a paz e as senhoras, reconciliadas com o espírito pascal, colocavam os folares da discórdia nos tabuleiros de madeira cobertos por um pano alvo, e com com eles já na cabeça, protegida por um trapo enrodilhado ... ala que se faz tarde, transportá-los até ao destino, deles rescendendo um aroma que fazia crescer água na boca a todos quantos estavam no Largo do Pelourinho.
Mário Esteves