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A propósito dos desastres
um poema de José Carlos Barros
http://casa-de-cacela.blogspot.com
i.
em dezembro de dois mil e nove o que procuramos
na rua de santa maria ao fim da tarde além do perpianho à vista
e das varandas verdes das casas recuperadas que não seja
o poço fundo de passar o tempo por nós
como sob as pontes
a água?
ii.
em mil novecentos e trinta e nove já a administração central
sob vigência de sua excelência o marechal carmona
e em plena ditadura nacional
se gabava de desconcentrar os serviços. hoje o debate
sobre a regionalização não deveria ser contaminado
pela discussão da proficiência de ccdr’s ou arh’s
e não sei que transferências de competências centralizadas
sob pena de tomarmos a nuvem por juno
e apanhar-nos a chuva enquanto nos distraímos
a encanar a pata ao anfíbio.
iii.
agarramo-nos à memória e vivemos dela
ou procuramos viver a jogar às escondidas nas veredas
ou nos bosques de caducifólias
a partir do momento em que os imprevistos
telefonemas dos amigos
o mais certo é darem notícias de perdas sucessivas
ou acarrearem inventários de irreparáveis danos em
vez do relato das sombras das árvores
erguidas nas margens dos rios
onde todos os anos jurámos
regressar.
iv.
dona teresa de jesus teixeira rumou de chaves a mirandela
nesse preciso ano de mil novecentos e trinta e nove
e aí apondo-se retrato carimbado e
dilucidados dados pessoais
no fim da jornada trouxe consigo o cartão profissional
indispensável a que o tribunal dos
géneros alimentícios (assim uma espécie de primeva asae)
não começasse antes ainda de averiguar
corruptela nos comercializados produtos alimentares
a caçá-la logo por falta de licença.
v.
de uns senhores sabemos que devem topar uma grande
novidade no facto tão prosaico de já em
mil novecentos e trinta e um
a reorganização do ministério da agricultura
nos seus pressupostos realçar a necessidade imperiosa
de descentralizar os serviços: e por isso a
dona teresa de jesus teixeira do antigo pasteleiro
com sede em chaves na rua de santa maria
lhe bastou rumar a mirandela ao invés
de perder-se nos corredores em lisboa da inspecção
técnica das indústrias e comércio agrícolas.
vi.
num fim de tarde de dezembro de dois mil e nove
o que procuramos na rua de santa maria
é já o que perdemos: o antigo
pasteleiro com recortes velhos de jornais pendurados nas paredes
e uma sombra que o mais certo é começar no mais
fundo do coração de cada um de nós
a acompanhar-nos em redor de um prato de pastéis aquecidos
e de uns bucólicos e insípidos finos
com que persistimos em enganar-nos
a nós mesmos.
vii.
isto tudo descobri há bocado
(preparando-me para escrever em verso rimado
o relato inédito dessa manhã de domingo
de mil novecentos e quarenta e dois
em que dona teresa de jesus teixeira contou pormenorizadamente
a maria do carmo ferreira da silva fragoso carmona
o segredo verdadeiro dos pasteis de chaves)
ao receber o telefonema de um amigo
que se resumiu a versar os desastres
a que nos começamos vagarosamente a habituar
e a acomodar.
Nota: Agora os discursos também são publicados em http://chavesdiscursos.blogs.sapo.pt/