Do livro " Chaves, Olhares Sobre a Cidade"
Palavras do rio invisível
Por entre as margens recebemos da fonte e damos esta água que nos criou
E por nos criar assim nos separou…
Aqui, outrora, pé ante pé, encurtaram-se os lados,
Saltitando entre as pedras duras adormecidas sobre as águas
Além, depois, uniram-se as margens e o rio desapareceu…
Por entre as margens recebemos da fonte e damos esta água que nos criou
E por nos criar assim nos separou…
Agora, aqui, sentado, vejo o rio e o tempo passar
Vejo da fonte as memórias e o sonho da foz
Onde a água nasce e depois se perde na imensidão
E pelo meio nos criou e por nos criar assim nos separou
Depois, trouxe comigo esta memória e o sonho
E também um pedaço do rio neste pedaço de papel
Tornando sempre visível a quem um dia
Um dia do rio se separou…
Paulo Chaves
Ulmus procera, in memoriam
Já foi mais acolhedora de gentes, esta praça – também as outras, direis vós, pois sim, vos asseguro eu, que as recordo a todas sombreadas de frescura e alegradas de passaredo, mas é nesta que fixo agora a teia dos pensamentos… – nem todos podeis lembrar-vos, pela idade, já se vê, de quando o velho negrilho punha una altiva nota de nobreza e eternidade em frente do Hospital, onde sarandeavam atarefadas batas brancas, que tanto botavam ao mundo a muita canalha que as mulheres então pariam como fechavam os olhos aos que a vida resolvera substituir neste vale de lágrimas e trabalhos. Tinha até uma cercadura em ferro forjado, aquela velha árvore, como é costume fazer de roda dos monumentos, para que se soubesse que a sua sombra, grande como só a das árvores grandes, costumava resgatar dos séculos as lembranças, que depois sussurrava aos ouvidos atentos dos muitos passantes que nela se acolhiam. Porém, o tempo, que é coisa que não existe, mas que nós persistimos em medir e adorar como deus inexorável e impiedoso, resolveu pôr fim à vida longa daquele ulmeiro que já não sabia a idade. E vieram os machados e as picaretas, ao abrigo de um despacho autárquico, fórmula menos digna de sentenciar à morte quem apenas cometia o crime de estorvar o devaneio urbanístico de um decisor mais afeiçoado à aridez estéril das pedras picadas. Sabemos todos que, quem é grande em vida, também costuma mostrar grandeza na morte, mesmo a que é feita de cruel impiedade – assim que as suas raízes começaram a ser desentranhadas da terra que lhe dera vida toda a vida, jorraram delas moedas às centenas, cunhadas com as efígies desgastadas dos romanos cruéis que as tinham feito extrair das escuras minas de Jales ou das Freitas, ensopadas em suor lamentoso de escravos, para que depois fossem acumuladas avaramente durante milénios e acabassem a despertar a cobiça basbaque de um grupo excursionista que por ali passava, talvez em busca de memórias de um tal Luís que escrevera versos para uma aventura e que agora dava nome àquela praça, sem que ninguém arriscasse garantir que também ele poderia ter brincado aos soldados, à sombra daquele negrilho, ou, quem sabe, para confirmarem bisbilhotices velhas sobre a verdadeira paternidade dos sete filhos da Maria Mantela, que aquelas paredes mostram de redor dela, ou apenas seguindo um roteiro singelo e óbvio, de cicerone local, entre os restos de um castelo e as fontes fervilhantes das caldas, onde se curavam reumáticos e se depenavam galinhas…
Pouco tempo depois, outra vez o tempo que tudo resolve, veio a Ophiostoma novo-ulmi, grafiose dos olmos,e acabou por matá-los a todos, oferecendo uma oportunidade desculpante ao malfadado despacho autárquico – ‘se não tivesse sido cortado e arrancado, teria morrido da doença…’ É assim a pequena história dos povos, sempre a justificar os erros e a reconstruir os factos.
Herculano Pombo