Palavras colhidas do vento... por Mário Esteves
Quando me afasto do trabalho para escrever estas crónicas, escritos ou que lhe queiram chamar, pela tardinha, não chega a um dia antes da sua publicação, assaltam-me toda a espécie de personagens, pessoas que na realidade conheci ou conheço; deixo para trás lugares como se os visse através dos vidros de um automóvel, respiro a resina dos pinheiros, o odor dos eucaliptos que me suavizava as longas viagens para Coimbra e me aplacavam os enjoos, sinto a areia ou alguma pequena pedra no interior do calçado e que me trilha os dedos dos pés, enquanto rumo, pelos caminhos da outrora Veiga úbere - agora em parte, terra maninha -, do Açude ou do outro lado do rio, Vale de Lagares, onde ao lavrar as leiras, diziam topar restos de tégulas romanas e se ocultar um caldeiro cheio de ouro, acompanhado de outros dois, que destapados, um deles libertaria um nunca acabar de flagelos, doenças, guerras e o outro cheio de excrementos para os coscuvilheiros, intriguistas …
É assim que nascem as crónicas, tão espontâneas como o vento que as traz.
Ora sereno, mal se apercebe, ora revoltado, abalando antenas de televisão e ramos de árvores, fazendo cair algumas folhas, mas não derribando árvores ou voar telhados.
O autor tem muitos defeitos e um deles, o maior - “gaba-te cesto que vais prá vindima” -, é ter bom coração!
Seguindo nas suas asas, o vento, esta manhã, trouxe-me um pregão que escutei na rua Direita: “Ólhaaa a sardinha frescaaa…”!
Não era a Tia Ana, que deve estar reformada.
Era uma mulher de meia-idade, mas o aspecto gasto e desmazelado, aparentava mais, baixa de estatura, cabelos curtos e esfiapados, trazia uma rodilha entrançada no alto da cabeça. Não usava canastra, fora substituída por uma grade de plástico, nem trazia balança. A sardinha era vendida a unidade e em vez de papel de jornal, as sardinhas eram acomodados num higiénico saco de plástico.
Há tempo que não ouvia este ou outros pregões, quase tanto … como deixaram de se ver nas ruas de Chaves, as leiteiras, as lavadeiras ou as vendedoras de carqueja, que “se bem se lembram”, antes de desaparecerem de vez, deixavam os burros nos quais transportavam os cântaros, as trouxas de roupa ou os molhos de carqueja, presos a alguma árvore - proibidos que estavam de circular nas ruas da cidade -, para os lados das hortas, antes do Mercado Velho ou entre o Jardim do Tabolado e a Ponte Romana, o que para alguns era uma tentação para lhes pregar uma partida, soltando os animais.
Bem, reconheço o exagero, e numa tentativa esforçada de remediar o despropósito imaginativo e temporal, direi que há tanto como desapareceu a venda de carvão e carqueja que existia na rua do Tabolado, numa das últimas casas, de uma fileira de iguais frontarias, antes de começar o jardim.
Ainda recordo um edifício, já no jardim, no qual existia uma taberna no rés-do-chão e onde assisti enlevado e depois receoso, a um cantar ao desafio, sob o mando de um acordeão, num entardecer da feira dos Santos, e no qual os contendentes puseram tamanho empenho, que por pouco não acaba em sangue.
Do outro lado da rua, a seguir à Pensão Termas, que ficava na esquina com a rua do Sol, existiam umas casas baixas de rés-do-chão, numa das quais habitava um fotógrafo ambulante cujo apodo é hoje ilustre denominação de uma associação de fotógrafia e gravura da cidade, e noutra havia uma oficina de ferreiro.
E por falar em vendedoras de carqueja, que me perdoem a leviandade, mas não resisto trazer a esta crónica, um pouco diferente das outras - há dias… -, uma história que não sendo do meu tempo, é como todas as outras, fidedigna, assim me asseguraram, e espero que o amigo e colega Herculano Pombo, desta vez não venha a confirmar a sua veracidade, pois nem ele, nem eu, estivemos presentes.
Uma "vendedeira" de carqueja, já entrada na idade, vinha pela rua de Santo António com o burro preso pela arreata e carregado de molhos. O burro por razões que se desconhecem e que certamente pertencem à sua natureza, deu em exibicionista e toca a mostrar o membro reprodutor – algum nome tinha que lhe dar …-, de apreciáveis proporções, também próprio dos asnos.
A velhota não se apercebera, mas o mesmo não sucedeu com um grupo de estudantes do liceu próximo, que no passeio, começaram na galhofa, tendo um deles decidido vexar a pobre senhora.
Saiu do grupo e interpelou-a:
-“Ó vózinha, vossemecê já viu como vem o burro?”
A mulherzinha alheia ao que se passava, perguntou:
-“ Como, Senhor…”
O jovem, então, por gestos fez que a mulher se apercebesse e insistiu:
-“Já viu bem …” E olhou para os restantes, que se dobravam de tanto rir.
A idosa, imperturbável, aproximou-se mais do seu interlocutor e imperturbável, disse-lhe:
-“ Ah…! Sabe, o estafermo fica assim, quando vê pessoas como o Senhor …”