A Pertinácia da Informação
De pôr-do-sol a pôr-do-sol
Não reparo bem na casa, mas fico com a sensação que há uma mistura de casa antiga com algum cimento nas paredes e alguns azulejos. O conjunto é desarmonioso. A organização do espaço, salvo raras exceções, como por exemplo quando não há autonomia para o organizar, reflete a maneira de estar das pessoas que o ocupam ou das que o possuem.
Não é importante a comodidade para além daquela lareira e dos velhos escanos.
A cara está enrugada e a pele escurecida, mas, à medida que a conversa se prolonga, consigo vê-la com nitidez e bem definida: uma personalidade vincada.
A Fé. A Fé é algo forte, uma crença à medida de cada um. Que mal tem? Que mal tem se nos faz bem? Ela diz que a nossa Senhora de Fátima a ajudou durante a operação e, por isso, envia-lhe, religiosamente, “dez contos” sempre que alguém vai lá. Questionei-a sobre a necessidade da Nossa Senhora receber esse dinheiro: “Acha que lhe faz falta?” Ela respondeu séria e convicta: “Pois sim, se não como eles iam fazer aqueles prédios todos, lá em Fátima?”
Nunca foi lá. Mas não sente falta. Ninguém a visita, mas também não lhe faz falta, sempre viveu a contar apenas consigo mesma. Não fosse estar velha e as doenças… mas da vesicula ficou bem.
Que mais tem para me contar? Absolutamente mais nada, mas eu que faça as perguntas que eu é que sou a entendida. Assim o entende ela.
Antigamente? Antigamente não havia absolutamente nada: crianças descalças na rua, batatas e couves cozidas no pote e carne gorda grelhada no lume. Havia crianças? Havia, ter muitos filhos era ter muita mão-de-obra. Havia muitos rebanhos, havia vacas, colhiam-se batatas para vender… vendiam-se cordeiros na sua época. O cordeiro assado era presença assídua nos banquetes, todos o mencionam.
“Tenho forno, sim senhora”, diz-me na sua habitual segurança, “coze?” [pergunto se coze pão], já não coze, mas assou cordeiro há uns tempos, no Natal, quando teve cá a família. “Não, não cozo, mas não vou deitar o forno abaixo.”
Certamente.
As aldeias são assim, povoados fantasmagóricos de gente e histórias. Não se vê ninguém, pouco passa das 17:30, em pouco tempo já todos jantaram. Sai fumo de algumas chaminés e o resto são ruinas. Havia um pombal… imaginamos um magnifico quiosque, um posto de venda de souvenires… nós somos assim: sonhadores.
“E a menina a mor de quê faz tantas perguntas?” Achei que não tinha escutado bem, peço para repetir e, por fim, admito a minha ignorância e digo que não percebo nem conheço a expressão. Já ganhei o dia, penso feliz: apropriei-me da expressão, como uma menina de uma caixinha de música.
Gesticula muito e fala alto. Dá pancadinhas no braço e às tantas dou com ele a apertar-me a mão num passou bem demorado. Tusso e preciso da mão direita. É uma personagem interessante, muito requisitado em todas as áreas. Poderia dizer-se que é daqueles que nascem para mexer e movimentar. O homem movimentou, fez e aconteceu. No dia seguinte conta-nos para além das informações necessárias “a mor” do meu trabalho, pergunta se vimos “a pedra” – foi graças a ele que não a deitaram a baixo. Vai-nos buscar o livro. Então entendi.
Fotografia de Emanuel Teixeira
É mais uma das tantas aldeias, mas uma das que vejo e calcorreio. Calcorreamos em desespero. Olhamos para as coisas, vemos potencial e não entendemos porque outros não o viram.
Apetecia-me morar naquela casa e “tu” podias morar na outra ao lado, têm uma varanda- ponte, há cada coisa tão engraçada!
Fotografia de Emanuel Teixeira
Mas o desânimo, o desgaste e desilusão são tão grandes que me apertam o coração – estragado de um mau jeito de amor a causas, talvez. Quando isso acontece, tenho dificuldades em fugir ao que sinto e olhar de frente essa realidade de abandono.
As pessoas precisaram de ir embora, à procura de melhor vida… à procura de vida! Trabalhar em quê? Os terrenos são férteis, podiam-se ter feito projetos agrícolas interessantes … e dá-se-me um nó na garganta e uma dor nas articulações dos dedos que teclam. A seu tempo, serei concisa.
Há uma escola – o edifício. Reparo que nunca vejo crianças. Em tempos houve crianças, as tais que corriam descalças, as tais que eram uma mão-de-obra fundamental para as famílias. Houve um tempo que foi preciso construir uma escola e depois veio outro tempo em que foi preciso fechar a escola. Uma vez ouvi-te dizer: “Ó minha linda, claro que fizemos bem fechar as escolas… aquelas criancinhas infelizes sozinhas uma professora e uma criancinha… coitadinha… Ah numa escola grande com mais crianças, isso sim! Até ficou mais feliz!” Claro que me revoltei e disse tudo aquilo que penso quando a na maior parte do tempo estou calada e a fazer cálculos no fígado. Agora explica-me como pode alguém querer voltar para uma aldeia onde não há escola, onde não há transportes… e tudo se justifica porque já não há gente.
Se calhar a lógica é essa: não haver gente em lado nenhum. Talvez o que se pretenda mesmo seja não haver música, nem risos, nem palavras de amor. A lógica é vestir a albarda e pôr o açaimo enfiar as palas e puxar. Com o tempo eu moldo-me à cadeira, ao frio e o frio a mim.
Mas ele continuou a explicar as façanhas e as aventuras. Dá uma imagem dele mesmo como um indivíduo perseverante e fazedor do bem comum. Aprendi com alguém que devemos evitar o “eu” em algumas circunstâncias discursivas. Fico a saber, ao fim de algumas conversas que houve um tempo em que se faziam trocas sem moedas. Aos galegos levavam castanhas e de lá traziam ovos, por exemplo. Há algumas anedotas que se vão repetindo nas conversas como aquela de alguém que “comeu os ovos antes que os guardas a apanhassem”.
E no meio do cenário fantasmagórico, ali está ela: “a pedra” que ele “salvou”. Graças a ele não derrubaram a pedra. Mas a Sinagoga foi-se.
Em 1998 foi editado um livro por um grupo de pessoas empenhadas em fazer um levantamento do património histórico e cultural da zona, a fotografia e a explanação evidenciam essa preocupação e esse interesse em preservar as coisas importantes. Mas porque será que o levantamento e registo desses roteiros não surtiram outro efeito? Seria preciso que alguém mais percebesse o valor das coisas e a “pertinácia da informação” dos livros exclusivos para pessoas exclusivas… seria preciso que as pessoas do concelho percebessem a importância dada às coisas importantes da sua terra, tipo o efeito espelho: “Que bonita a minha terra no livro!”, “Que bonita a minha terra na televisão!” . E, depois era preciso alguém a fazer com que se visitassem esses sítios, e para que alguém visitasse os sítios era preciso haver que ver nos sítios, que comer e onde comer e maneiras fáceis de ir. E depois era preciso “insistir”, “insistir muito”, coisa que nós transmontanos sabemos fazer, ou pelo menos aprendemos a fazer ou vimos fazer: “não querem comer nada?”, “ora comam!” e foi assim que eu, então lá peguei nos doces e meti ao bolso e disse muito obrigada. Eu habituei-me a pensar que é de má educação aceitar, mas também aprendi uma vez que é ofensivo recusar o que nos oferecem insistentemente. Já fiz outros trabalhos em que é preciso fazer preguntas “a mor” de qualquer coisa, mas nunca me senti como se andasse a cantar os reis. Venho com os bolsos cheios de tangerinas, surtidos… chocolates e até uma madalena. Eu adoro madalenas, são doces flor.
Pergunto-me e pergunto-vos como é possível? Pelos vistos deve haver algo errado comigo por ficar tão indignada. Mas, por muito que me esforce não consigo ficar indiferente e seguir em frente sem primeiro espernear um pouco. E se calhar é muito pouco e devia ser mais.
Uma vez perguntei: “Mas como é que essas casas antigas com relógios de sol, outras com brasões, com histórias… como é que estão a cair?” a resposta foi óbvia: os donos.
As casas são dos herdeiros. Os herdeiros moram e trabalham longe. Às vezes as nossas vidas fazem-nos quebrar laços, há zangas e desamores com as famílias, nas famílias… somos do mesmo sangue, talvez, mas de almas diferentes e, por isso, há entendimentos que são impossíveis e roturas para sempre. As roturas dolorosas exigem distância, das pessoas do passado e desprendimento das coisas. As casas abandonadas escondem também esses dramas e esses segredos. Ficam histórias por contar e as histórias são importantes por serem por si só ensinamentos. As casas nunca são vendidas, nunca são recuperadas. Não se vendem porque não há entendimento, não se vendem porque se pedem preços impossíveis… seria justo haver uma lei que desse ao Estado a tutela dos bens que se deixam ao abandono, sempre que sejam considerados de interesse histórico cultural e identitário? Não sei. Era preciso confiar nos órgãos decisores.
Sou precisamente assaltada por esse pensamento quando vejo a placa torta na estrada – até parece que alguém a torceu de propósito! Sou assaltada e aos saltos, porque tenho a sensação há uns tempos para cá que todos os sítios onde vou estão cheios de buracos, não há um asfalto direito.
Paro. Saio e vou ver. “ON OPERAÇÃO NORTE”, “Designação do projeto: Saneamento básico XXXXXX”
Tiro fotografia.
O céu está negro, cheio de nuvens, e o Sol, com esforço procura projetar alguns laivos de luz. Acho que o sol está a ficar cansado pelo esforço que faz em iluminar os homens.
Saneamento básico? Estamos em 2018, tiramos escolas, reduzimos transportes, não tornamos os sítios atrativos… e ainda estamos a tratar de saneamento básico!? Já vem tarde, não é? Os emigrantes fizeram casas bonitas conforme os gostos. Foram sonhos construídos no deserto, por vários motivos, mas um deles tem a ver com o facto que ninguém orientou essa construção. Uma construção de sonhos arrancados do sacrifício – eu sei, eu entendo. Se calhar agora o saneamento não vai ser útil, há casas e fossas feitas a cotas diferentes… há casas que nunca vão ligar os esgotos à rede pública… e há sítios onde afinal nunca foi concretizado o tal projeto de saneamento básico… mas isso fica para outro dia.
Eu, e peço desculpa por não dizer nós, continuo a viagem, porque agora vou sozinha. Se calhar vou de carroça, não oiço os eixes chiar por causa da carga que levo, nem as rodas de ferro a fazer barulho… mas este raio de trupitar das estradas está dar-me cabo da paciência: buraco… buraco… buraco.
Continuo a achar que há uma solução, e peço desculpa por rimar, mas eu acho sempre que é a educação. Ainda continuo a acreditar no desenvolvimento e no crescimento do ser Humano e na “pertinácia da informação”. Não sei porquê, mas acho que deve ser Amor.
Lúcia Pereira da Cunha
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