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A modernidade e as novas tecnologias aliadas também a agressividade de novas indústrias e às exigências de novas Leis, têm vindo a contribuir para o desaparecimento de muitas profissões que no século passado eram rainhas e serviam de ganha pão a milhares de famílias portuguesas.
Os da minha geração (colheita de 60) ainda se lembram das lavadeiras de São Lourenço, das leiteiras de Outeiro Seco (e quantos deles não foram criados com esse leite), dos carvoeiros ou dos carquejeiros que desciam à cidade e porta a porta vendiam os seus produtos. Mas também ainda se lembrarão das oficinas de latoeiros, de ferreiros, dos peliqueiros, e dos albardeiros, ferradores e um sem número de profissões que os poucos foram acabando e desaparecendo.
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Se algumas dessas profissões e oficinas estavam condenadas a morrer por não se adaptarem aos novos tempos e às novas exigências, outras há que foram sendo obrigadas a fechar pelo aparecimento de produtos alternativos e mais baratos, mas também pelo desfavorecimento da Lei, pela alteração de actividades a elas associadas mas também por falta de nova gente que aprenda a profissão, é o caso dos Tanoeiros, que têm uma rica e interessante história em Portugal.
Em Chaves ainda existem um tanoeiro, o último tanoeiro, e continuará a existir enquanto for vivo, mas só até lá, pois não há ninguém que lhe herde a sua arte. Mas ainda antes de passarmos ao nosso último tanoeiro, vamos deixar por aqui um pouco da história da tanoaria do Séc. XX até hoje, em Portugal, da qual o nosso tanoeiro também é parte integrante.
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Nas primeiras décadas do século passado, o grande centro tanoeiro de Portugal era em Vila Nova de Gaia, onde os números do início de século apontam para os 5000 trabalhadores, distribuídos por 150 pequenas oficinas e 20 unidades industriais, associado que estava à comercialização e transporte de Vinho do Porto, mas também ao envelhecimento do vinho em bons cascos. Contudo, um grande número de trabalhadores dessas tanoarias eram gente das redondezas e que chegavam a percorrer 20 ou mais quilómetros para ali trabalharem diariamente. Muitos desses trabalhadores eram de Esmoriz, que durante muitos anos trabalharam em Vila Nova de Gaia e que aos poucos, aprendida a arte, foram ficando por Esmoriz em acanhados alpendres e cobertos. De Gaia, traziam a força do trabalho e arte, como ferramentas adoptaram as que os velhos tanoeiros já usavam há muitas dezenas e até centenas de anos. Um trabalho e uma arte que pegou em Esmoriz, tanto, que Esmoriz logo se tornou no grande centro da tanoaria em Portugal, inicialmente manual e depois gradualmente mecanizado nas operações mais morosas, sendo em meados do século obrigados também a ampliar as suas instalações, não só pelo aumento de trabalho mas também por força da Lei nº 42808 de 1960, que obrigava as industrias viradas à exportação a remodelarem as suas instalações.
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De facto os anos 60 foram anos doirados para a tanoaria de Esmoriz tendo como principal cliente a manutenção militar que comprava enormes quantidades de vasilhame para transporte de vinho para os militares no ultramar e assim continuou a ser até 1967 em que a polémica Portaria nº224, proibiu a exportação de vinho em barril, portaria que daria início à crise da tanoaria de Esmoriz, pois as empresas que com o D.L. de 1960 foram obrigadas a remodelar e modernizar as suas instalações, onde foi investido muito dinheiro, passados 7 anos uma nova Lei roubava-lhe o seu principal cliente. Crise que abalou para sempre a actividade da tanoaria em Esmoriz, tanto, que a maior parte dos tanoeiros se viram obrigados a abandonar Esmoriz e de trouxas às costas partir pelo nosso Portugal à procura de novos mercados.
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Dois desses tanoeiros vieram para a Chaves e por cá ficaram. Um deles, instalou-se junto à Escola Industrial e Comercial de Chaves, no local onde hoje está a rotunda de acesso à ponte de S.Roque e que há muito fechou as suas portas, o outro, ainda resiste, no Campo da Roda. É o último tanoeiro de Chaves e é ele o nosso convidado de hoje.
Salvador de Jesus Gomes, nasceu em 1933 em Maceda, Ovar, começou a trabalhar com 14 anos nas tanoarias de Esmoriz onde testemunha que a força do trabalho eram os pipos de 100 litros com destino à ex-colónias, trabalho que de repente acabou e que ainda solteiro, rumou com destino a Chaves, ele e o Serafim, o outro tanoeiro de Esmoriz.
Também Chaves de então se apresentava como terra de oportunidades e por aqui ficaram e desta fizeram a sua casa, com a pronúncia de Maceda.
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Foi-me dizendo o Sr. Salvador que veio para cá com 22 anos ou menos. Lembra-se que foi daqui que partiu para a inspecção militar, ainda solteiro. Depois foi buscar a “rapariga à terra”, a Maceda, casou-se e para Chaves veio também. Ainda se lhes nota na pronúncia das palavras que não são de cá, mas esta já é a sua terra. Aqui tiveram os seus filhos, ia-me contando a D. Rosa de Almeida Mendes, a mulher do Sr. Salvador, e entre sentidas lágrimas pela perda recente de um filho, ia-me dizendo, “Que isto agora já não dá nada, mas felizmente ainda foi dando para criar, estudar e formar os filhos, que hoje estão todos bem” – maior conforto não pode ter uma mãe, não fosse a perda do seu filho e hoje era uma mulher feliz. Aliás conheci-lhe essa felicidade quando há meses atrás estive lá a conversar com ela, já a propósito desta pequena reportagem. O Sr. Salvador, aparentemente mais forte, mas só na aparência, vai disfarçando a dor com mais umas marteladas que vai dando nos aros de um pipo. Pipos com os quais quase fala e brinca, movimenta-os com a agilidade de um dedo, põe-nos a bailar girando sobre si mesmos, dá-lhes voltas e mais voltas com uma precisão milimétrica da mestria de andar naquilo já há muitos anos, tantos, que nem consegue contabilizar quantos pipos, pipas, dornas, baldes ou pipinhos fez em toda a sua vida, pois outra coisa não fez, nem gosta de fazer (confessou-me ele) aquela oficina é o seu mundo.
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Mas se em Esmoriz a Lei traiu os tanoeiros, em Chaves foram as cubas de inox, mas também o abandono das vinhas e das aldeias, o abandono das dornas no transporte de uvas, e uma série acontecimentos ditam a morte desta tanoaria com a morte do seu dono.
Lamenta-se o Sr. Salvador e a D. Rosa também, que o vinho “feito” nas cubas de inox não é a mesma coisa, não “encorpa” como nos pipos de carvalho ou castanho, não ganha o gosto da natureza da madeira. Para eles já pouca diferença lhes faz, o Sr. Salvador da está reformado e os filhos criados e formados sem ninguém que lhe siga os passos e aprendizes, em toda a vida de laboração em Chaves, passaram por lá dois, mas pouco tempo. Claro que nos tempos apertados de trabalho, todos trabalhavam, filhos e até a D. Rosa se “botava” aos pipos, os pedidos exigiam-no e os filhos tinham que se criar e “graças a Deus”, ia-me dizendo a D. Rosa, se não deu para enriquecer, deu para criar e formar os filhos, que hoje, humildemente, agradece uma mísera reforma do trabalho de toda uma vida. Mas claro, que mesmo reformado, ao Sr. Salvador a tanoaria ferve-lhe nas veias, e não pode estar parado na oficina de toda uma vida. Ainda vai fazendo uns pipos, concertando outros, naquele que foi o trabalho e a arte de toda uma vida. A vida do sr. Salvador que com a D. Rosa, naturais de Maceda fizeram de Chaves a sua terra, aqui tiveram os seus filhos, para Chaves trouxeram a tanoaria e com eles vai morrer. Mantêm a pronúncia de Maceda, mas fica-lhes bem.
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Tentei saber como se faz um pipo, que voltas dão e, embora nas mãos do Sr. Salvador eles até bailem, para um leigo, é complicado compreender , pois há muitos termos da arte que desconheço e os pipos dão muitas voltas antes de receber o líquido dos Deuses (Baco ou Dionisios se preferirem), entre nós pode ser branco ou tinto, desde que seja do “bô”, mas entre a rara literatura sobre a arte da tanoaria, lá consegui reunir os 15 passos para se fazer um pipo, e também consgui reunir algum do vocabulário utilizado na arte, que aqui fica em termos de curiosidade.
De Joaquim Leitão Couto, Médico e curioso por esta arte, recolhemos:
“Estes artífices e seus antepassados merecem que o seu passado tenha futuro e que as actuais e futuras gerações saibam o que é, na madeira (para fazer as aduelas), e depois nas vasilhas e nos arcos, as operações a que a seguir nos referimos, com vista a um breve glossário de tanoaria.
LAVRAR, TORNEAR, VAZAR, ESQUIVIR, JUNTAR, PAREAR, BASTIR, CORTAR, CHANFRAR, PERFURAR, CRAVAR, DESCRAVAR, REPUXAR, ENCAVILHAR, RISCAR, RODEAR, EMPALHAR, ARRUNHAR, PAREJAR, RABOTAR, GEBRAR.
Para os mais curiosos, e no sentido de melhor interpretar as funções das diversas ferramentas, damos a seguir o significado de algumas destas expressões: Lavrar, aparelhar ou desbastar (tornear ou tornar roliço, por fora, com raspilha ou com o supilho ou plaina pequena; depois vazar ou cavar com a volta por dentro, no .colete., isto é, na parte de aduela, correspondente ao seu comprimento, menos 5/10 cm, em cada ponta, chamando-se talha ao comprimento total de aduela e aba, à distância do Javre à ponta da aduela; a seguir esquivir na parte lateral, também com raspilha, tornando a aduela mais estreita a partir do centro para as pontas e, por fim, juntar com a plaina de três pernas, para que os juntos fiquem completamente desempenados e polidos, para que as aduelas se justaponham perfeitamente, constituindo a operação principal de construção para que a vasilha se não deforme e tenha duração).
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Parear ou medir o número de aduelas ou o perímetro máximo do bojo.
Bastir ou vergar a fogo, proveniente do fogareiro no interior da futura vasilha, obrigando as aduelas a vergar, através do cabo do macaco.
A seguir o artesão vai batendo nos arcos, de modo a que estes façam mais pressão sobre as aduelas e apertem mais a vasilha, utilizando a marreta de bastir (que pesa cerca de 5 Kg ) nos cascos de grande capacidade (superior a 800 l .), e a marreta de pena (com cerca de 2Kg de peso) nas vasilhas mais pequenas. Interpõe entre a marreta e o arco, o chaço.
Na bigorna, cortar ou talhar, chanfrar ou cortar em semi-círculo os arcos, perfurar com ponção, cravar ou fazer entrar os cravos, batendo, descravar, repuxar os arcos.
Encavilhar, riscar e rodear os tampos.
Empalhar os juntos.
Arrunhar as extremidades das aduelas, através do: Cortar, isto é, com a enxó, fazendo em cunha; depois parejar ou alisar; depois com o rabote, plaina de médias dimensões, rabotar, isto é, acertar, operação fundamental para que a aba seja igual em toda a circunferência, para que os tampos se mantenham desempenados; e por fim gebrar, isto é, abrir o roço com a gebradeira. Armar o casco é colocar em pé todas as aduelas, dentro do primeiro arco de bastição.”
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15 passos para obter um barril
Fase de serração
A madeira (de castanho ou carvalho), que chega em toros é cortada em abas e, depois, em aduelas. Durante cerca de meio ano, as aduelas vão permanecer em grades ou castelos para secar. Quando as aduelas "são chamadas" ao destino, procede-se à destrinca: as melhores, depois de aperfeiçoadas, são destinadas ao corpo dos barris; as outras servirão para os tampos; e um terceiro grupo das que têm nós ou estão rachadas ficam de lado.
Fase de tanoaria
Os tampos
Os tampos são feitos, unindo-se as aduelas de madeira fraca por intermédio de pregos de duas pontas. Em cada junção é colocada "palha de tábua", para vedar bem.
Seguem-se duas fases de aperfeiçoamento: a de arredondamento do tampo, um trabalho a que um compasso de ferro dá as coordenadas; e a da fundagem (alisamento da madeira).
Os arcos
São feitos em ferro importado da Alemanha. Cortam-se na medida exacta e unem-se as extremidades com cravos.
O corpo do barril
As aduelas utilizadas para este efeito - as mais perfeitas - são cortadas nas medidas exactas e "isquidas" e enlombadas (dá-se-lhe o bojo).
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A montagem
O barril é montado, não com os arcos definitivos, mas sim com os chamados "arcos de bastição", que se caracterizam por uma maior resistência, necessária para aguentar as pancadas com a malho.
Num desses cucos, encaixa-se o "moço" ( faz o lugar de um homem) e a ele se irão encostar as aduelas.
É com a "pareia" que se calcula o n.º de aduelas suficientes para um barril de dada dimensão.
Fechado o círculo, prendem-se as aduelas com outro arco de bastição.
Segue-se o espargimento ( os barris vão ao fogareiro para apertar os arcos).
Trocam-se os arcos de bastição pelos definitivos, mas antes da colocação dos últimos, aplicam-se os tampos, com a ajuda de um "alheta".
Veda-se o barril com parafina e barro.
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Fácil não é!?, - mas melhor mesmo é ter uma boa adega e um ou mais destes pipos ou pipas cheios de bom vinho e bem longe das cubas de inox ou cimento, pois a madeira dá-lhe o corpo e no corpo está s sua alma.
Só me resta agradecer ao Sr. Salvador e à D. Rosa a sua simpatia e o seu tempo sem o qual não seria possível esta pequena reportagem daquele que é o “Ultimo Tanoeiro de Chaves” e à arte da tanoaria em Chaves, à qual, pelos seguidores que tem, já nem os Deuses Baco e Dionísio juntos lhe valem.
Até amanhã!