Crónicas da Quarentena
Décimo Primeiro Dia
DÉCIMO PRIMEIRO DIA
Terça-feira, 27 de Outubro de 2020
Esta neblina que sobe da veiga e envolve, em mágicas e misteriosas imagens, as cores outonais de todas estas parras, e de todas estas vides que se apresentam à minha frente, faz-me sentir uma nostálgica necessidade de voltar às leituras, nunca acabadas, das visões que Torga teve deste reino maravilhoso.
Um reino dentro de outro reino, que levou o padre Avelino a dizer da profunda comoção de Torga ao andar por estas nossas terras. Uma comoção talvez semelhante àquela sentida por Alves Cardoso quando, há cerca de cem anos, por aqui descobriu a luminosidade desta veiga, o azul deste céu, as verdes tonalidades desta vegetação, as diferentes sombras das montanhas que cercam o vale. E as suas gentes.
A comoção torguiana não poderá ser dissociável das gentes e da sua terra e talvez isso possa explicar a maior simplicidade e o maior efeito das narrativas reunidas em Bichos, Contos da Montanha ou Novos Contos da Montanha, por oposição a um certo sentido de artificialidade, ou de algo que fica por dizer, em alguns dos contos de cenário urbano apresentados em Pedras Lavradas ou Rua.
Até nos textos de inspiração neo-realista que Torga veio posteriormente a excluir destas edições, como Firmeza ou Minério, se sente essa marca do genuíno. Mas é ao seu Diário que eu sempre volto.
Curiosamente, ocorre-me agora que Torga, ao contrário do Afrânio Peixoto ou do José Carlos Barros, nunca mencionou os pastéis de Chaves, nem no seu Diário nem em qualquer registo ficcional.
Talvez porque fosse um homem frugal e preferisse as termas, ou as peripatéticas caçadas onde o caçador era o olhar, sendo a presa a paisagem. Caçadas que eram devocionais caminhadas por entre montes e arvoredos, caminhadas de romeiro de olhar deslumbrado, como aquela que o levou a ver o Gerês a partir da Pedra Bela.
Ou talvez, ainda, porque os pastéis, já então, como hoje, não fossem o que antes tinham sido e defraudassem a memória e o paladar, defraudando-nos a nós próprios como quando pensamos no Largo das Freiras dos nossos quinze anos, achando que nunca voltará a ser tão encantador como era. Claro que não. Nunca mais o voltará a ser, tal como nós jamais voltaremos a ter quinze anos.
É por isso que agora, entre o cínico e o iconoclasta, não tenho qualquer pejo em reconhecer que alguns dos pastéis de molho da Covilhã, quando servidos sem molho, conseguem ser bem melhores que muitos dos pastéis de Chaves que hoje, por todo o lado, e até nas máquinas de distribuição automática, surgem às centenas.
Afirmação feita com a consciência de não ser este um saudosismo dos olorosos pastéis saídos de um forno a lenha, acendido com carqueja do Barroso, ou das frescas bicas de manteiga barrosã, chegadas de madrugada a Chaves, porquanto estas já não são recordações da minha meninice, antes do que então me contavam.
Em consciência reconheço, isso sim, antes ser este um suave e enevoado saudosismo da minha infância.
Augusto de Sousa