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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

10
Fev25

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717 - Pérolas e Diamantes: Os bombeiros de cima e os de baixo

 

Uma noite destas acordei sarapantado porque estava a sonhar (em forma de pesadelo) que havia fogo cá em casa. Eu, este vosso amigo, ainda de olhos remelosos, fui atacado pela dúvida metódica. Ou seja, se devia chamar os bombeiros devotos do rito do punho direito erguido ou os que são zelosos dos dois dedos esticados em V. Uns, segundo a tradição, são conhecidos como os Bombeiros de Baixo e outros são identificados como os Bombeiros de Cima. Eu, como sou agnóstico, não sabia bem para onde me devia virar. Ou a quem apelar. Ou para onde telefonar. Além disso, como tenho amigos nas duas corporações, fui invadido pela dúvida metódica, do tipo: se peço a uns, os outros acham que milito nos do punho; se solicito os serviços ponderosos dos outros, os tais que levantam os dedos indicador e o médio, também conhecido entre a criançada como o dedo do meio, quando vão assistir à missa das práticas eleiçoeiras, logo irão cochichar que me deixei subalugar por um qualquer irmão de aventalinho liliputiano regular. E daí, dessa suposição aleivosa, nem os seguidores de D. Nuno me conseguirão libertar. Enquanto os do punho insinuam e os dos dedos esticados comemoram, entre sorrisos, bifanas, croquetes e copos de vinho branco de pressão, alguém, a meu mando, assiste a uma indistinta tertúlia invasiva e procrastinadora, bem ao estilo de um qualquer Richelieu administrador dos escuteiros. E vem de lá bem comido e bem bebido, mas sem informação que valha a pena. Eu, já um pouco dividido, não sei se deva rezar ao São Caetano ou à Senhora da Aparecida. Na verdade, agora também vou com os da feira e venho com os do mercado. O melhor, mesmo, é rezar a São Floriano, o padroeiro dos bombeiros. Mas será que ele protege tantos os apaniguados do punho como os dos dedos estendidos em V? Se assim for, a divisão pode trazer-lhe alguns imbróglios argumentativos. Tanta santidade para coisa nenhuma. O problema vai ser quando os rabos de palha pegarem fogo. Nas paredes dos quartéis veem-se as fotos dos comandantes e dos presidentes, todos bem-postos. Alguns assemelham-se, de tão cândidos, a peixinhos apanhados no anzol. Temos de reconhecer que uns parece que sorriem por estarem em tão boa companhia. E os outros também. A verdade é que os quartéis de bombeiros são, atualmente, uma espécie de observatório. Todos sabemos que as estruturas dirigentes são recomendações umas das outras.  Os risos de outros e de uns aproximam-se ou afastam-se conforme as conveniências. Se sim, sim. Se não, sopas. Reparo agora que numa mão tenho um cesto cheio de gladíolos e na outra um repleto de margaridas. Mas estou atrapalhado pois se pouco percebo de bombeiros, sobretudo das suas diferenças, ainda menos atino com os protocolos, com as conveniências e com as intervenções territoriais confiadas a cada corporação. Afinal, como distribuí-las sem ofender as suas inclinações mais profundas? As escolas que frequentaram até podem ter sido idênticas, ou até as mesmas. Mas os rituais são diferentes. O objetivo é o poder. Sempre. Sempre o poder. O poder, sempre. E a qualquer preço. Que é um preço alto. Mas apenas ao alcance de quem possui os devidos sestércios partidários. Roma não paga a traidores. E saldos só nas grandes superfícies. Mas cada um possui a sua escada Margirus. A cada um o seu poleiro. E onde há galo não canta galinha. E onde há galinha não canta frango. Depois vejo e revejo o resumo das histórias e vai tudo dar ao mesmo. Objetivo. Uma coisa tenho que reconhecer, estes novos chefes dos bombeiros estão cada vez mais aprazíveis, mais elegantes, mais risonhos, mais enfarpelados. De fato azul, a sorrir e a falar, não há quem os distinga. Tudo neles parece maravilhoso. O sorriso, a mão direita colocada sobre o lado esquerdo, onde presumivelmente estão os seus corações, quando escutam e entoam o Hino Nacional. A verdade, verdadinha, é que tenho todas as razões para estar tranquilo. Tem chovido muito. E eu continuo a vê-los sorrir, sempre satisfeitos e com o olhar em movimento. Apesar de serem duas corporações, com a duplicação de chefias e outras coisas que tais, uma única ideia me tranquiliza, a de saber que zelam pelo aconchego do nosso lar comum: a nossa querida e heroica cidade. Esta espécie de pesadelo, em forma de sonho, ou vice-versa, é como um conto de fadas. Apenas arrisca acabar bem. Tudo pode parecer imobilizado, mas basta um pequeno toque da varinha mágica da fada-madrinha e toda a máquina se põe em movimento.

João Madureira

03
Fev25

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716 - Pérolas e Diamantes: Anjos, anjinhos, raposas e garnisés

 

Esta sociedade dita democrática é, existencialmente, constituída por personagens apaixonadas pelo arrependimento. Ou melhor, viciadas em reciclar disparates. Em construir estereótipos. Os da direita radical redimem-se num ladrão de malas de aeroporto. E os da esquerda ipso facto violam os princípios políticos e morais que defendem em público para, em privado, despedirem mulheres em período de licença de maternidade. A fachada do moralismo é a hipocrisia. O paradoxal é que os polícias da extrema-direita são, afinal, larápios de pechisbeque. E os defensores dos direitos das trabalhadoras, sobretudo das mulheres grávidas, são uns inverosímeis padrecas. Olhai para o que eu digo, não para aquilo que eu faço. A sua prática baseia-se nos princípios dos seus inimigos. De classe. De classe? Ah, ah, ah! “Esta lei é para os patrões de direita”, dizem eles. “A nós, os outros, os excelsos outros, é-nos permitido contorná-la. Basta enchermos a boca com os sagrados princípios da moral superior.” Afinal, os políticos são todos jesuítas. Mesmo os franciscanos. São todos iguais. Em direitos. Só que uns são mais franciscanos que outros. Venha de lá o Diabo e escolha. Se é capaz. Eu até podia dar uma ajuda. Mas já me vai faltando o rancor. Acreditei que quem propunha as boas ideias era porque acreditava nelas. Sinceramente. Antes destes episódios rocambolescos, soubemos que uma senhora política defensora dos direitos dos animais e da agricultura sustentável e ecológica era sócia de uma empresa que se dedicava a um certo tipo de agricultura intensiva de mirtilos e framboesas. E também soubemos de gente livre e socialista, à mistura com alguns bobos da corte esquerdistas, defensores da excelsa escola pública, que colocam os seus filhos em escolas privadas, onde pagam propinas proibitivas para a quase totalidade dos cidadãos portugueses. E até de um tal Gandra, cirurgião militar, que acumulou funções pagas em cinco hospitais do SNS, como tarefeiro, quando não estava autorizado a fazê-lo por ser diretor regional do Norte do INEM. Enquanto CEO do INEM, substituiu, em sete meses, dos nove que exerceu como diretor executivo do SNS, nove administrações de unidades locais de saúde, tendo afastado uma delas num telefonema que durou apenas dois minutos. No jornal do regime (Expresso) leio a notícia de que a Inspeção-Geral do Ambiente e Ordenamento do Território fiscalizou 59 municípios, tendo descoberto ilegalidades em 94% dos projetos urbanísticos. Entre os municípios com mais ilegalidades verificadas estão Mira (100), Almeirim (81), Ferreira do Zêzere (76), Silves (75) e Chaves (40). Será que Chaves está no Rumo Certo? Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa. Todo o efeito político é mimético. O recentíssimo ex-Secretário de Estado, e ex-presidente da Câmara de Bragança, Hernâni Dias, fundou, com a mulher e os filhos, duas empresas imobiliárias, já como membro do atual Governo e momentos antes da aprovação da Lei dos Solos. Lei que foi aprovada pelos de sempre, ou seja, com os votos dos partidos do Governo e com a abstenção do PS. Já o génio da inverosimilhança, António Costa, agora envergando o personagem de presidente do Conselho Europeu – mas ainda com um tal de Vítor Escária, uma PEN e 75 mil euros fechados no cofre da sua consciência –, foi considerado por Wolfgang Münchau, jornalista e autor do livro “Kaput”, como “um peão num jogo maior”. Mas voltemos ao nosso retângulo dourado. Desde o início da legislatura, já foram constituídos arguidos nove deputados (PS, PSD, Chega e IL), ainda sem contarmos com o hilariante Miguel das Malas ou Arruda Sansonite – também antigo agitador e destacado interveniente em campanhas do PS Açores – , que deverá ser o décimo. Na origem do descalabro está a corrupção e as zangas partidárias. A corrupção instalou-se na política e é através dela que põe os seus ovos de serpente na Administração Pública, onde se aprimora e fortalece. Se nada for feito será ela a dar o golpe de misericórdia na nossa democracia. É essencialmente por esta razão que Portugal continua a ser um Estado falhado. Em verdade, em verdade vos digo, que no que diz respeito à corrupção em Portugal, a realidade ultrapassa, de longe, a mais arrojada imaginação. Todos sabemos que é muito difícil fazer dos brutos, anjos. Mas, por favor, não queiram os políticos fazer de nós anjinhos. Ao que dizem, as raposas entraram há pouco tempo, e em força, dentro do galinheiro parlamentar. Mas, ao que todos sabemos, algumas já lá estão instaladas, mesmo que disfarçadas de galos e galinhas garnisés, há muito, muito tempo.  

João Madureira

PS – Por causa das subvenções vitalícias, dispara a despesa com as pensões dos políticos. O Orçamento de Estado prevê para este ano gastos de 8,9 milhões de euros, mais 37% do que o valor inicial atribuído. Apesar do valor das pensões dos funcionários públicos serem divulgadas no D.R., a ministra resolveu esconder a lista dos beneficiários políticos.

 

27
Jan25

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715 - Pérolas e Diamantes: As estoicas mulheres do ioga

 

Nas minhas voltas a pé, tanto na margem direita como na margem esquerda do Tâmega, reparo, com um sorriso de satisfação solidário, que, enquanto eu tento desfazer-me do excesso de calorias ingeridas às refeições, há senhoras corajosas espalhadas pela relva que, junto à alameda das árvores mais altas, das quais não me lembra agora o nome, a mando de um cavalheiro de porte atlético saudável, realizam exercícios em cima de tapetes ergonómicos que as colocam em posições atrevidas e de difícil postura física, talvez com a firme determinação de se nutrirem de ioga e de ectoplasmas. Esticam e encolhem o corpo de forma lenta, mas determinada. E, pelo que vejo, são mulheres que já não vão para novas. Algumas revelam mesmo um ou dois traços de celulite, desde a cinturinha até às coxas, e, quiçá, algum papinho. Às mulheres, salvo seja, tudo lhes fica bem. Gabo-lhes a coragem, pois eu, se tentasse, mesmo que só ao de leve, fazer tais acrobacias em câmara lenta, tinha de alguém chamar o INEM para me tirar dali e levar-me de urgência para o Hospital. Reconheço que Buda é um inspirador eclético. Entretanto eu passo perto delas, como se não fosse nada comigo, enquanto elas se contorcem, como se estivessem no circo e o sol se inclina mais um cibo na linha do horizonte. E ali vou eu a escutar mais um pouco da música dos Elephant Gym (especificamente “Feather” do álbum WORLD), ou Khruangbin (nomeadamente “Maria También” do álbum CON TODO EL MUNDO), nos auriculares ligados ao iPhone  através de Bluetooth, intervalada com uma humidade impregnada do aroma das flores que por ali desabrocham um pouco ao deus-dará. Tudo na santa paz do Senhor. Então penso: “Tu não és católico, pois não? Mas eras capaz de te ajoelhares?” “Acho que sim.” “E budista?” “Deus me livre, era lá capaz de rezar daquela maneira.” Se ainda não se aperceberam, este é um excerto do diálogo que eu tive com a minha própria consciência. Que é um pouco mais malandra do que eu… quero pensar dela. Peço desculpa por não o poder transcrever, na íntegra, por motivos óbvios de correção política e também por decoro, educação, etc. Mas. Mas claro que me compreendem. Os leitores, tal como os amigos, são para as ocasiões. Em que necessitamos deles. Sobretudo os bons. Leitores. Sobretudo os bons. Amigos. Claro que estou a partir do princípio que os bons leitores também são bons amigos. E que os bons amigos também são bons leitores. E olhem que não é só por me dar jeito nesta situação específica. É porque sim. Senhores leitores. E senhores amigos. Como ia dizendo, depois chego a casa meditativo e um pouco cansado de olhar para as senhoras do ioga, para as árvores, para as pessoas que passeiam os cães, para as pessoas que passeiam só por passear, para o rio, para as poldras, para as pontes, para o céu, para as esplanadas, para os carrinhos conduzidos pelas crianças, pelas crianças conduzidas pelos pais, pelos idosos conduzidos pelos filhos e noras e netos, para os ciclistas, para os jogadores de padel e sobe por mim uma vontade quase indomável, quase existencialista, de ir até ao escritório esfolar um livro do Sartre. Ou do Heidegger. Ou do Delleuze. Mas a verdade é que com tanto que fazer há pouco tempo para ler. No sossego da casa, olho para os livros arrumados, para a mesa deserta, para o computador a piscar e sou tomado, interiormente, por um vazio medonho, provavelmente filosófico, e uma tal melancolia, provavelmente existencial, que eu até sei lá! Sei lá! Sento-me então frente ao teclado do computador e tento escrever. Mas não me sai nada. Folheio então para aí uns vinte e cinco livros e não consigo ler nenhum, nem sequer o “Tintim no País dos Sovietes”. Vou até ao quarto, que está forrado de livros, e ponho-me a agrupá-los, agora, por ordem alfabética dos autores. Penso que a literatura é um mundo em si. Eu amo os livros, isso eu sei. Daí pensar naquela coisa poética de que o amador se confunde facilmente com a coisa amada. Penso nas estoicas mulheres do ioga, com objetividade filosófica, em tudo isentas de erotismo. E confirmo então o pensamento profundo de que aquelas senhoras são apenas dignas da pena de Petrarca ou de Dante. Lá mais para a noite, depois de esconjurar o existencialismo de Sarte, deito-me como gato a bofe, por junto ou separado, a 25 páginas de Proust (Sodoma e Gomorra), 32 de Virgínia Woolf (Orlando) e 27 e ½ de James Joyce (Ulisses). E por aqui me fico, por hoje, para não vos ralar ainda mais.  

João Madureira

20
Jan25

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714 - Pérolas e Diamantes: Há quem queira e quem não queira...

 

Há quem queira. Saber. E há quem não queira. Saber. Mas o que mais nos deve preocupar, enquanto sociedade, é quando a maioria não quer saber. E assobia para o lado. E põe os óculos escuros, mesmo nos dias cinzentos. Já nem o Sol é invocado para servir de desculpa. Deixo ao vosso critério o fio condutor deste texto. Essa é a menor das minhas preocupações. Contento-me com a sensação do tempo a passar. Com sentir, ou ver, a luz do Sol, as correntes de ar, escutar os ruídos da rua, a sensação de viver o tempo como um fluxo retardado que dizem levar-nos ao futuro. Viver um presente mesquinho provoca uma sensação desagradável. Devemos expulsar aquilo que é medíocre por aquilo que é nobre. Bem prega Frei Tomás! A sequência quase não existe. Evoquemos a desordem. O quê? Posso não ter lá grande planta física, mas em perseverança ninguém me bate. Não é preciso ser muito perspicaz para se perceber que o que eu pretendo é convergir. Convergir com os estimados leitores. A não ser assim, aquilo que se escreve não faz muito sentido. O problema é quando estacionamos o texto num beco sem saída. Vou contar até dez. Pronto, já está. Vamos lá continuar, mas sem abrir o jogo. Pronto, já sei, já vi isto muitas vezes, as íris dos vossos olhos a assumirem a função de pontos de interrogação. Pronto, está visto, pertencemos a um partido sem definição doutrinária. Isto eu faço de propósito, não quero tomar a iniciativa. Mas também eu li, a seu tempo, Marx, Engels, Maquiavel, Groucho e Goscinny. Também eu tive tempo para as causas, as ações e as respetivas consequências. Falava mal e agia pior. E levava tempo para me “indecidir”. Pesava os prós e os contras. E cheguei a gesticular de forma ridícula e suspeita. Desconfiava deles. E eles desconfiavam de mim. Todos tínhamos a vontade de mudar. De lugar. Quando não se vê nada à nossa frente, o melhor é dar uma guinada. O futuro continuava a ser a tal vontade de mudar. Mas o quê? Tínhamos uma vontade indómita de partilhar notícias auspiciosas. Mas não as havia. Entretanto, a vox populi alimentava os comentários, os desabafos, as opiniões e as queixas. E as pessoas sempre a contarem aquilo que as outras pessoas contam sobre aquilo que as outras pessoas ouviram da boca das outras pessoas que, por seu lado, o ouviram da boca de outras pessoas. Ninguém consegue saber onde a vox populi começa e onde acaba. Então quando a vox populi se transforma em oráculo, está o caldo entornado. Continuo a viver num ambiente doméstico. Provavelmente burguês. Hipnótico. Sedativo. A conversar com os amigos. A ouvir música. A falar da comida dos restaurantes. Este presente não está mal servido. No entanto, o nosso destino continua a ser uma esquina. Portugal continua a ser um país de esquinas, becos e quelhas, ligados por autoestradas que nos fazem ganhar tempo para o perdermos logo a seguir nos engarrafamentos à entrada das urbes. Urbi et Orbi. Ninguém é, ao mesmo tempo, anjo e soldado. Tenho saudades desse tempo, mas não lhe quero mandar recados. A esperança é um discurso. E também uma mensagem mandada numa garrafa. Continuo a ser teimoso. Não obedeço a gostos alheios. Há quem queira saber. E há quem não queira saber. Etc. E tal. Como dizia o Venceslau, o meu querido e saudoso pai. Vamos vivendo como sempre, entre este ambiente de confessionário e de festa de anos. Escada acima. Rua abaixo. Ou vice-versa. Continuamos cheios de ânimo. Entretanto vamos enrolando o fio metafórico dos dias. Entre o trivial e o... trivial. Entre a leitura e a escrita. E vice-versa. A construir alguma coisa que não seja a mera soma das partes. É provável que incorra em erros de continuidade e até de incongruência, entre as causas e os efeitos. Mas isso pouco importa. Devo apenas fidelidade à minha consciência. Quando estou cansado, vou para o sofá ler manuais de bilhar e pesca à linha. E faço-o com rigor e precisão. Como se estivesse a praticar. Olho para a plantação de rosas de uns. E para a plantação de cravos de outros. E também para os lírios roxos de um terceiro vizinho. Deleito-me, literariamente, claro está, com as cores exuberantes das pétalas, umas mais carnudas, outras mais delicadas. E cheiro o aroma discreto que elas espalham no ar. Há quem queira. E também há quem não queira. Saber.

João Madureira

 

 

13
Jan25

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713 - Pérolas e Diamantes: A ilusão foi bonita...

 

Flaubert disse uma vez que um escritor tem de escolher entre ter uma audiência ou ter leitores. Eu já fiz há muito tempo a escolha. Aos que me vêm com a treta da excelência de Moby Dick, respondo-lhes com Hemingway: “É um livro sobre banha, a que é acrescentado um louco para dar animação. Quinhentas páginas de banha, cem páginas de louco e cerca de vinte páginas sobre a habilidade dos negros no manejo do arpão.” Comentários? Pois, já sabia, por aqui é calar e andar. E depois é comer e calar. De uma maneira geral, a literatura é ousada a falar, mas não é por estar certa de que possui a verdade, mas por ter a certeza do seu deleite. No entanto, temos de convir que o mundo se tornou estúpido e sério. E que as nossas verdades ficam de tal forma entediadas que nos pedem a desforra. Quem quer impor-se ao mundo acaba por perder. Imposição é o inverso de compreensão. É um pouco complicado para o escritor, mas também para o leitor, perceber onde a ironia se torna séria, onde a irresponsabilidade se torna responsável e até onde a aparente imaturidade se torna maturidade. É necessário perceber as causas do jogo das palavras. Todos nós escrevemos para as pessoas e o seu julgamento, de uma maneira ou de outra, acaba por ser decisivo para nós. Há muita gente que quer chegar depressa ao fim do caminho, sem se aperceber que a beleza está em percorrê-lo com calma. Essa é a sabedoria do caminhante. Já ouvi dizer que um bom escritor é como um bom espião, pois, a par da sua cultura humanística, é capaz de juntar a capacidade de identificar e projetar as tendências do passado, da História, para o futuro. E eu a lembrar-me dos tempos do Liceu e do Magistério, quando, chegados os primeiros calores da primavera, caminhava junto ao Tâmega, quando as raparigas começavam a vestir saias e blusas coloridas, quando as árvores começavam a exalar o seu cheiro viçoso, as pessoas passeavam de um lado para o outro, e as crianças, aos sábados e domingos, corriam pelos relvados dos jardins. A liberdade estava a nascer por aqui. Liberdade ainda muito de uns contra os outros. Mas, mesmo assim, liberdade. Abril, maio. A ilusão foi bonita, pá. Agora a liberdade parece escangalhada, indiferente, como uma refeição demasiado tempo cozinhada em lume brando. A liberdade sabe já a requentado. Puseram tantas vezes as panelas ao lume que acabaram por estragar tudo. Pior foi ainda a distribuição dos tachos pelos consortes. Acabaram por calhar sempre aos mesmos. Os outros que se amanhem com as panelas de alumínio. Ou com os potes enferrujados e empenados. A democracia deu no que deu. E por nossa culpa. Esquemas sinuosos, sofisticados, perversos, uns a cruzarem fronteiras ideológicas e a dizerem que é tudo igual e outros a gritarem que desta vez é que vem aí o lobo. Agora há que engolir, ou vencer, repugnâncias culturais. Todos andam a mexer no passado que queremos esquecer. A verdade é que os lobos chegaram ao curral e possuem proteção democrática. Mas um lobo, por mais que se eduque, nunca será um cordeiro. A verdade é que vestem a sua pele e misturam-se na perfeição entre o rebanho do Senhor. São mesmo daqueles que mais se confessam, rezam e engolem a hóstia com os preceitos mais ortodoxos, de joelhos e a suar como se estivessem na pele dos outros. Dos que sofrem. Por aí continuam a andar os culpados disto tudo. Os que educam o rebanho, os que educam a alcateia, os que ensinam os lobos a disfarçarem-se de ovelhas. Parlamentares, banqueiros, empresários safadolas, académicos manhosos e medíocres, jornalistas de mão estendida e papo cheio. A mesma casta de políticos, de executivos, de gestores da coisa pública e privada. Todos iguais. Todos rolhas de má cortiça. Sempre a boiar à superfície. Esperando que os lobos e as ovelhas se digladiem, para armar confusão. Que eles lá estão para distribuírem a carne das ovelhas mortas, enterrarem os lobos envenenados e tratarem da avozinha dos olhos grandes engolida e regurgitada pelo lobo mau. Ai como eu gostava de ser o Corto Maltese, ter aquele ar irónico, nostálgico, misterioso, esotérico. E de poder, chegada a hora, embarcar no meu veleiro e ir para o meio do mar salgado ter uma aventura, depois dançar o tango na Argentina, percorrer a Sibéria, passear em Samarcanda, etc. Mas cada um é para o que nasce. Mitos e ritos é o que nos mantém de pé.

João Madureira

06
Jan25

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712 - Pérolas e Diamantes: Puerilidades

 

Todas as discussões ideológicas são pueris. Umas mais do que outras. Mas todas são pueris. Hannah Arendt tinha razão. As ideologias são, no essencial, ficções perigosas, porque não passam de teorias gerais da realidade. O intelectual francês Bernard Henri Lévy, que pensa que sabe alguma coisa sobre o que se está a passar por esse mundo fora, lembra agora, já perto do desespero, perante a escalada dos extremismos, que a Europa  vive uma espécie de tentação pelo suicídio. De facto, não é difícil concluir que “a civilização é uma mera película que mal cobre o abismo da loucura, da ignorância, do obscurantismo”. Dito assim, em letras gordas, parece um género de premonição devastadora. A verdade é que os democratas falharam por essa Europa fora. E ninguém fica calmo, ou com vontade de rir. Tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda estão a prensar entre as suas mandíbulas de crocodilo, o Velho Continente. Não devemos esquecer que, só no século XX, a velha Europa se suicidou duas vezes, em 1914 e em 1939. Há por aí, outra vez, muita gente a puxar-nos para o nada. Para o vazio. Para a guerra. A depressão é coletiva. Perdoem-me os otimistas, mas eu não estou nada seguro de que se vier por aí outra vez o fascismo, a maioria das pessoas lhe resista ou o combata. Os portugueses não são lá muito bons na resistência. São muito mais de se acomodarem. A ideia de que foi o povo português que derrotou o regime de Salazar e Caetano não passa de um mito urbano, como agora se costuma dizer. O 25 de Abril foi um golpe de Estado bem sucedido. A verdade é que o povo foi à festa e depois dançou no arraial. E quando viu o foguetório a rebentar no ar pulou de alegria e até bateu palmas. De seguida foi apanhar as canas. E, de um dia para o outro, um povo que era constituído maioritariamente por apoiantes do Estado Novo, transformou-se num país de democratas. Ora, deixem que vos diga, milagres destes nem Nossa Senhora de Fátima, a nossa portentosa Padroeira, consegue realizar. Por muito que lhe peçam, por muito que a invoquem, por muito que lhe rezem, por mais voltas que deem ao recinto de joelhos e por mais peregrinações que façam a Fátima, milagres destes não são possíveis. É muita gente a mudar de lado, a mudar de ideias, a mudar de postura, a mudar de ideais, de cultura e de ideologia. E agora vivemos num Nirvana dos sentidos. A verdade é que estamos todos sob escuta. A PIDE democrática vive da nossa intimidade absoluta. Nada de dizer coisas importantes ao telefone. Vá lá, não vamos falar muito sobre contestação interna, mas de imigração. Isso sim. Já fomos nós, em França, a tirar o emprego aos franceses, agora são os outros que para aqui vêm, para este paraíso perdido, tirarem o emprego a quem não quer trabalhar por um salário tão miserável, ou porque sim, ou porque não. Ou porque talvez. Os dissidentes vão todos para as escolas profissionais aprender a profissão de chef de cuisine, cozinheiros já não há. É tudo uma questão de lobby. Quem não quer ser lobby não lhe deve vestir a pele. E por aí andam os commies, os freedom fighters os media na sua luta ancestral. Entre a mentira e o desejo da verdade. Escrúpulos e consciência é uma coisa do passado. Agora é mais subserviência e blá-blá-blá, mais escrutínio e blá-blá-blá. E a democracia verdadeira no fio da navalha, à beira do abismo. Amanhã começa outra vez a dança. O que é antigo parece infantil. O que parece moderno é ainda pior. Nesta democracia de merda o que continua a contar é a nobilitação social. O que continua a valer é a confissão antes da missa. Católicos passam por agnósticos. E agnósticos passam por católicos. Vá lá, vamos todos seguir-nos uns aos outros e dirigir-nos ao confessionário. Este país parece a baía das águas paradas. Cheio de bairros periféricos. De vivendas parolas e de piscinas mal orientadas em relação ao sol e que roubam a água benta dos aquíferos. Isto não é um país, mas uma ONG. Sempre a entrar pela porta principal do palácio de inverno e a sair por alguma das portas laterais. Sempre a ir depressa para lado nenhum. Vamos ter de refazer o caminho até ao futuro. A democracia continua a ser uma bela metáfora. Apesar de tudo.

João Madureira

30
Dez24

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Pérolas e diamantes: Roupa velha

 

Já várias e distintas pessoas me perguntaram por que razão é que eu escrevo, dado que a escrita não me dá pão nem consolação. Eu respondo-lhes sempre com uma frase de Chesterton: “Escrevo, porque é preciso.” É esta a minha íntima filosofia.

 

Depois desta outras perguntas se lhe seguem, as quais evito escutar para não ser forçado à grosseria de mentir ou não responder. Perante a adversidade prefiro pensar que não há mal que sempre dure.

 

Hoje de manhã tive o impulso de um homem banal, e sinceramente tolo, pois deu-me para vestir fato e gravata, compondo com esmero a gola do casaco, de modo a que ela não destoasse da linha com que foi talhado e engomado. E saí à rua cheio de frivolidade, imbuído do espírito sublime de me manter direito entre os aprumados colarinhos da minha camisa e em equilíbrio dinâmico com o nó da minha gravata.

 

Mas rápido voltei para casa, pois senti-me deveras incomodado. O meu exercício de hipocrisia fez-me sentir estúpido. Definitivamente vesti as minhas calças de ganga e o meu polo azul e disse para a minha imagem fixa no espelho: “Eu sou o que sou.”

 

Depois ri-me baixinho. E perguntei à minha imagem parada no espelho: “É possível enganar o mundo?” Ao que ela respondeu: “É. Mas não te esqueças que a consciência do justo não é perturbada.” “E a culpa. Onde fica a culpa do passado?”, perguntei atrapalhado. Ao que a minha imagem parada no espelho respondeu: “A consciência do justo espera sempre.” “Deus do céu, pareces um evangelista!”, retorqui. A minha imagem riu-se muito.

 

“Mau Maria”, pensei eu. Tenho de admitir que hoje não acerto com nada nem coisa nenhuma. Mas mal remediado mal passado. Sobre o passado é melhor dar um ponto na boca. Com águas passadas não mói o moinho. Ou…

 

“Mau Maria”, voltei a pensar. Não consigo acertar com a minha imagem.  

 

Fui para o monte tirar fotografias. Mas acabei a apanhar flores. Flores silvestres. E deslumbrei-me com a sua condição. Elas para ali a nascerem, entre giestais e silvados. Pensei nas que são colhidas nos jardins, com muito esmero e carinho para serem centros de mesa ou adornos de lapela. Vieram-me à memória os versos de Ungareti: “Entre uma flor colhida e outra dada, o inexprimível nada.”

 

E a minha imagem, agora refletida no espelho da viatura, a azucrinar-me o espírito: “Menos política e mais romance. Concentra-te.” Entusiasmado meti-me no carro, rodei a chave da ignição e carreguei no acelerador, mas não mais do que o necessário para não voltar a ser multado por excesso de velocidade. E ri-me para a minha imagem no espelho. Quem não me conhecesse a mim e ao meu ar sisudo pensaria que era tolo.

 

A imagem disse-me assustada: “A pequenez das atitudes e dos valores de algumas pessoas está na razão inversa da grandeza das suas palavras.” Apeteceu-me partir o espelho, mas optei por orientá-lo de forma a que não fosse possível rever-me.

 

Depois pensei no estilo, no estilo da escrita, no estilo do discurso, no estilo da roupa e no estilo de estar sentado a uma mesa. E a imagem voltou a atormentar-me. Desta vez vi-me refletido no vidro da porta do carro. E a minha cínica imagem a incomodar-me, qual grilo falante: “O estilo é uma bonita forma de encobrir certos pensamentos.”

 

Hoje a minha consciência tornou-se arreliadora: “Faz honra ao teu caráter de transmontano. Um homem sério tem obrigação de ser franco e verdadeiro. Deixa-te de trampolinices. Por mais que queiras, não consegues ser artificial. Deixa-os. Tu não consegues servir-te das palavras para esconderes os pensamentos.”

 

E a minha imagem no retrovisor a rir-se desalmadamente: “Já que colheram as flores, deixa-os que colham também os espinhos. Bem o merecem. E eles cheiram tão bem!”

 

Eu disse: “A questão é toda moral.” Ao que a minha imagem trocista respondeu: “Então que a resolvam os moralistas.” De novo olhei para a estrada e fixei-me no risco contínuo.

 

Sim, a ficção acabou. Afinal não há heróis, nem heroínas. Em toda a parte se come, conversa-se, passeia-se, dorme-se da maneira mais trivial possível, dizem-se meias verdades, engana-se a razão, destroem-se os sonhos na proporção inversa dos sorrisos. Dos falsos sorrisos de ocasião. Os episódios poetizados de batalhas e desafios brilhantes não são possíveis.

 

E eu para a minha imagem: “Então, e a moral? E a diferença?” E a minha arreliadora imagem: “Se queres que te diga que existem, eu digo-te que sim para ser simpática. Mas em abono da verdade lembro-te Camilo Castelo Branco: «Dantes a imoralidade era a retalho, hoje é por atacado.» Ou se preferires cito-te La Fontaine: «O ridículo precisa de ser morto pelo ridículo.» E eles, todos eles, são tão ridículos. Deixa-os. Que se consumam. Que se queimem no seu próprio fogo.”

 

E eu para ela (para a minha imagem, claro): “Deslarga-me. Deixa-me em paz.”

 

E ela: “Não te armes em cândido.” E voltou ao Camilo: “A candura tem os seus pedantismos, assim como os pedantes, às vezes, têm canduras irrisórias. São os extremos que se tocam.”

 

E eu: “Deixa-os tocar-se. Merecem-se. É tudo vinho da mesma pipa.”

 

E então a minha imagem desapareceu por entre a luz e a escuridão. Nos lados da estrada, as árvores apareciam e desapareciam como fotogramas de um filme francês. Voltei para casa em paz e sossego.

 

PS – Já em casa, no remanso do lar (maumaria), estava eu a lavar os dentes após o jantar, quando me virei para o meu espelho e lhe perguntei: “Espelho, espelho meu, há alguém mais medíocre do que eu?” O meu espelho partiu-se… a rir. E isto é mau agoiro.

João Madureira

 

 

23
Dez24

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711 - Pérolas e Diamantes: Soluços de Natal

 

Há pessoas distintas, outras distintivas. E ainda outras que são nem sim nem não. São mais sopas de burro cansado. Umas atiram moedas ao ar. Outras aparam os cravos, de Abril. E as restantes veem e comentam. Umas sonham, outras fazem que sonham. E as restantes fazem de conta. Quando não há nada para fazer, ou nada a fazer, o melhor é fazer de conta. Umas fazem de conta que sim. Outras fazem de conta que não. E as restantes fazem de conta que talvez. A praça das celebrações está sempre fragmentada. E o pelourinho da minha terra, impassível, continua a olhar o céu com nuvens. Eu sonho, nisso sou como os outros. Pudera! Os sonhos dão-me coragem. São pequeninos. Pudera! Mas dão-me coragem. Uma coragem pequenina, mas sincera. Corajosa, mesmo na sua pequenez. Também os pesadelos são pequeninos, mas, talvez por isso mesmo, não me fazem sofrer. Tanto. O mundo, este nosso mundo, também é pequenino. Podemos desdenhar dele, troçar dele, mas todos temos orgulho. Nele. A sua pequenez é honrada, sincera. Pura. E verdadeira. Por isso fazemos tudo por ela. Para manter a nossa pequenez pequena é necessário um grande esforço. Lembro-me. Para pensarem que era orgulhoso, aprendi a ficar de pé e a andar, enquanto os outros ficavam sentados, de joelhos ou parados, a olharem a luz das velas ou da candeia. Eu à procura do meu tosão de ouro e ele a mudar de cor como se fosse uma coroa de flores no início da primavera. Lembro-me quando a minha mãe ornamentava a campa do meu avô com margaridas, crisântemos, lágrimas da Virgem Maria, dálias e outras flores de pétalas coloridas. Depois abraçava-se a mim. E chorava. E eu também chorava. Muitas vezes saímos do cemitério sobrevoados por abelhas. Provavelmente pensavam, por causa do odor que exalávamos, que éramos uma espécie rara de flores ambulantes. Quando chegava a casa, a minha mãe dizia sempre: “Senta-te, filhinho”, e depois sorria para mim. Depois dava-me um bombom de cereja e chocolate. Muitas vezes agarrava na minha mão e dizia-me que estava na hora de irmos apanhar amoras, pois as abelhas eram agora nossas amigas. À tardinha ia com a avó à casa da Dona Marquinhos da Ajuda, que morava no Bairro do Castelo, vê-la lançar as cartas como boa quiromante que era. A avó olhava para ela e sorria com beatitude. E eu, como criança pequena que também era, sentia-me imerso em felicidade. Aprendi então que um poeta, pode até vestir-se e despir-se como toda a outra gente, mas o que o distingue dos outros é a procura do homem novo. Os mais afoitos costumam planar por cima do nosso mundo. Gostava de pensar que os poetas eram anjos brancos que sobrevoavam a nossa aldeia, agitando as asas a recitar versos inteligentes. Enquanto lá fora cantavam, aos soluços, os perus que comeríamos no Natal.  Nós a trincarmos o peru e a olhar para o presépio, para o Menino Jesus, para o São José, para a vaquinha e o burrinho. E também para os três Reis Magos que nunca mais acabavam de chegar para oferecerem as suas prendas ao bebé com a perninha no ar e um dedo a indicar sabe-se lá bem o quê. Cada um é para o que nasce e o Menino Jesus nasceu para estar no presépio em palhinhas deitado a sorrir para quem lhe sorri. Nessas épocas era frequente apanhar amigdalites que tratava com antibióticos que me punham a boca a engrossar e os lábios a imitar os dos bonecos pretos que a minha avó comprava na Feira dos Santos, em Chaves, para darem sorte. E os perus continuavam lá fora a cantar, aos soluços, sem pensar no destino. O Natal de uns seres vivos é a desgraça de outros. Depois a febre subia e o vento amainava. Outras a febre descia e o vento aumentava. As grandes nuvens cinzentas do céu pareciam indiferentes. E o pelourinho também. A febre tornava a subir e eu olhava para as mãos aflitas da minha mãe. A meter e a tirar o termómetro nas minhas axilas. E eu ali continuava a ouvir os perus, no quintal, a cantar, aos soluços, e tornava a pensar na sorte que os esperava no Natal, enquanto a minha irmã saltava ao pé coxinho nos degraus da escada. As árvores continuavam a agitar-se. O pai bebia uma ginjinha e fumava um cigarro. A mãe trazia-me leite-creme e dava-mo com a colher pequena, não fosse eu engasgar-me.  Quando me lembro disto costumo ainda ficar com os olhos repletos de infância. A verdade é que nunca consegui comer peru assado no Natal. Dentro da minha cabeça ainda oiço os ecos dos soluços cantados dessas aves que os cristãos costumam sacrificar. No Natal. E noutros dias festivos.

João Madureira

16
Dez24

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710 - Pérolas e Diamantes: Música e músicos

 

Marcelo Caetano achava que em Portugal existia um “velho pendor nacional para a maledicência, para o descontentamento, para o criticismo exagerado e estéril que tudo compraz em denegrir e demolir”. Mas, garantia, coitado dele, que a insatisfação crónica apenas existia em “certos meios intelectuais”. Também nesse tempo as rendas das casas eram elevadas e a inflação fazia o seu desbaste nos baixos ordenados, que eram quase todos. Metade do país era constituído por invejosos e a outra metade por despeitados. Todos pobres, por sinal. Até os nossos ricos eram pobres, comparados com os ricos lá de fora. Metade do país gostava de música ligeira e a outra metade da música ligeirinha. Metade dos portugueses não gostava daquilo que a outra metade gostava e a outra metade respondia-lhe na mesma moeda. Até que se deu o suave milagre da “primavera marcelista” que pôs os portugueses a adquirirem discos sem possuírem gira-discos. Compravam pela capa sem saberem o que estava lá dentro. Foi dessa forma que o Marco Paulo se fez famoso. O cantor português tornou-se célebre com “Love Story” (1971), o tema do filme de Arthur Hiller, um sucesso internacional. Tito Lívio, um crítico musical da altura explicou desta forma o dislate: “Vive-se do êxito alheio, imitando-se os seus parâmetros. O produto de consumo diverte, não revela nada de novo, mas repete-nos o que já sabíamos, o que esperávamos ansiosamente ouvir e repetir e que nos diverte.” Entretanto, o grupo de bailados Verde-Gaio, criado por António Ferro no contexto da “política do espírito”, continuava na sua faina de interpretar os fandangos e os corridinhos, tanto em Portugal como lá fora, teimando em desenvolver uma política cultural do regime que tudo fez para institucionalizar a música folclórica portuguesa. Mas o lápis da censura da Direção dos Serviços de Censura nem o folclore poupava, riscando a vermelho as letras mais atrevidas, onde se encontravam os trocadilhos, as alusões sexuais e mesmo os erros gramaticais. Ou seja, também o folclore, ao contrário do que muita gente pensa, foi vítima do regime fascista. É caso para dizer que o famoso Quim Barreiros, com as suas letras, era homem para passar muita fominha barriguda e até ser forçado a desfrutar de uns meses de férias no Forte de Peniche. Paco Bandeira cantava versos deste calibre poético, revolucionário, militar e rural: “Fiz poemas fui soldado / E até cresci / Tenho saudades do gado / Do que perdi.” E, para não se ficar atrás, o cantor Luís Romão participava no I Festival da Canção da Guarda com o seu sucesso “Cavalgando Meu País”. Convenhamos que é muito cavalgar. Ary dos Santos, o Allen Ginsberg à portuguesa, escrevia então os versos do “Cavalo à Solta”, canção composta e cantada por Fernando Tordo, que concorreu ao Festival RTP da Canção.  Mas não ganhou, ficando atrás da “Menina” Tonicha, com letra de Ary dos Santos e música de Nuno Nazareth Fernandes. Em Março de 1971, o genial Carlos Paredes, gravava o “Movimento Perpétuo” da música popular portuguesa, depois de correr e saltar pelos consultórios a tentar convencer médicos a adquirir os remédios da farmacêutica Jaba. O seu fado, ou canção, de Coimbra, dizia ele, não tinha nada de extraordinário. Era mera canção ligeira. Carlos Paredes, em várias entrevistas, defendeu a doutrina do compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça,  que dividia a canção portuguesa em três segmentos estanques: canção ligeira, canção tradicional e canção erudita. A verdade é que “Movimento Perpétuo” subverte o conceito de FL-G, pois é, ao mesmo tempo, música ligeira, tradicional e erudita, pois sendo fado de Coimbra, evoca simultaneamente o folclore beirão e até a música de câmara renascentista. Em novembro de 1971 são apresentados na FIL, os discos “Cantigas de Maio”, de Zeca Afonso e “Gente de Aqui e de Agora”, de Adriano Correia de Oliveira, na Convenção Anual e de Catálogo de Natal, da editora Orfeu, entre slides, jogos de luzes e mariscada, para revendedores e imprensa. Na ousada estratégia comercial foram colocados à venda discos às prestações e foram oferecidos gira-discos na compra de dez LP. Bons tempos. Dizem uns. Outros dizem precisamente o contrário. Vá-se lá saber porquê.

João Madureira

09
Dez24

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709 - Pérolas e Diamantes: O rock’n’roll

 

Nasci em 1958, precisamente no ano em que o rock’n’roll começou a tomar conta do mundo. Os adolescentes ouviam aquela “música maluca” que as notícias definiam como uma música de dança para adolescentes, que provocava vários graus de ansiedade nos adultos e tinha a reprovação oficial. Todos pensavam que era uma moda passageira. Os setores mais reacionários gostavam de associar o rock’n’roll ao comportamento antissocial e à delinquência juvenil. A verdade é que a tal “música maluca” sobreviveu ao normal período de validade de uma moda passageira e até se transformou num dos vencedores culturais da era do pós-guerra. De onde surgiu ele?, perguntarão vossas excelências. Na verdade, ao que se sabe, o rock’n’roll surgiu de forma espontânea e imprevista, resultando de uma série de evoluções na indústria da música dos EUA, cujo efeito cumulativo permitiu a abertura de um espaço para a música direcionada aos adolescentes. O rock’n’roll, salvo melhor interpretação, veio a ser definido como rhythm and blues (música interpretada por artistas negros para ouvintes negros) redirecionado sobretudo por artistas brancos para um público maioritariamente branco. O que veio a desencadear o desenvolvimento do rock’n’roll foi a perceção do mercado discográfico de que nem todos os jovens que compravam discos de rhythm and blues, ou ouviam canções deste tipo de música, eram negros. Ou seja, o R&B era uma música descoberta por pessoas brancas. Eis a história paradigmática: Um disco-jóquei, de seu nome Alan Freed, foi a uma loja de discos em Cleveland e dizem que ficou espantado ao ver adolescentes brancos a comprarem avidamente discos R&B. Logo a seguir, abandonou o registo de passar música de “qualidade” no seu programa, criando um novo dedicado ao rhythm and blues, adotando um discurso radiofónico frenético, sendo uma das primeiras pessoas a promover o termo rock’n’roll. Só que esta história é uma criação à posteriori. Ou seja, o episódio da loja de discos é uma reconstrução. Freed foi levado à loja pelo seu proprietário, Leo Mintz, que o incentivou a lançar um programa de rádio na esperança de reforçar o negócio do seu estabelecimento. Ou seja, os adolescentes que ouviam a rádio e compravam discos eram essencialmente negros e foi o dinheiro destes adolescentes que tornou o R&B popular dando assim origem ao aparecimento do denominado rock’n’roll. Com a popularidade granjeada, Freed foi contratado por uma rádio sediada em Nova Iorque e o seu programa de rock’n’roll passou a ser ouvido por toda a região nordeste dos EUA. Corria o ano de 1954. Um ano mais tarde, Elvis Presley conseguiu o seu primeiro êxito de âmbito nacional: “Baby Let’s Play House”. A revista Billboard anunciou que “mil novecentos e cinquenta e cinco foi o ano em que o rhythm and blues invadiu o domínio do pop”. Mas foi dois anos mais tarde que esta “música maluca” teve uma exposição adicional, através do programa televisivo American Bandstand, que incluía atuações pop com grupos de adolescentes a dançar, e que era transmitido por todo o país. Passado apenas outro par de anos, já esse programa tinha uma audiência semanal de vinte milhões de telespectadores. Nos finais de 1958, mais de metade das canções nas tabelas de R&B eram de artistas brancos e 70 por cento das listas pop e R&B eram idênticas. O rock era o novo pop. Aconteceu ao rock’n’roll o mesmo que tinha acontecido ao jazz e ao swing antes da guerra. Ou seja, um estilo de música identificado com músicos negros e desfrutado por um público racialmente diversificado, foi assumido e acabou dominado por produtores e intérpretes brancos. No entanto, desta vez havia uma grande diferença entre o rock’n’roll e os estilos mais antigos, a faixa etária a que apelavam era distinta. O sucesso R&B, segundo os críticos, devia-se ao facto da sua batida ser sincopada. Era uma música que se podia dançar. O rock tomou conta do espaço social deixado vago pelo swing e povoado por uma população mais nova. O disco-jóquei Alan Freed, o produtor Sam Philips e o apresentador de televisão Dick Clark foram as três figuras centrais, e fundamentais, na produção, na interpretação e na disseminação do rock’n’roll, ajudando-o a passar de um bem de nicho para um produto de mercado massificado, estando diretamente envolvidos no processo que lhe conferiu um som, uma aparência e um nível de energia elevado.

João Madureira

 

 

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