Quem conta um ponto...
717 - Pérolas e Diamantes: Os bombeiros de cima e os de baixo
Uma noite destas acordei sarapantado porque estava a sonhar (em forma de pesadelo) que havia fogo cá em casa. Eu, este vosso amigo, ainda de olhos remelosos, fui atacado pela dúvida metódica. Ou seja, se devia chamar os bombeiros devotos do rito do punho direito erguido ou os que são zelosos dos dois dedos esticados em V. Uns, segundo a tradição, são conhecidos como os Bombeiros de Baixo e outros são identificados como os Bombeiros de Cima. Eu, como sou agnóstico, não sabia bem para onde me devia virar. Ou a quem apelar. Ou para onde telefonar. Além disso, como tenho amigos nas duas corporações, fui invadido pela dúvida metódica, do tipo: se peço a uns, os outros acham que milito nos do punho; se solicito os serviços ponderosos dos outros, os tais que levantam os dedos indicador e o médio, também conhecido entre a criançada como o dedo do meio, quando vão assistir à missa das práticas eleiçoeiras, logo irão cochichar que me deixei subalugar por um qualquer irmão de aventalinho liliputiano regular. E daí, dessa suposição aleivosa, nem os seguidores de D. Nuno me conseguirão libertar. Enquanto os do punho insinuam e os dos dedos esticados comemoram, entre sorrisos, bifanas, croquetes e copos de vinho branco de pressão, alguém, a meu mando, assiste a uma indistinta tertúlia invasiva e procrastinadora, bem ao estilo de um qualquer Richelieu administrador dos escuteiros. E vem de lá bem comido e bem bebido, mas sem informação que valha a pena. Eu, já um pouco dividido, não sei se deva rezar ao São Caetano ou à Senhora da Aparecida. Na verdade, agora também vou com os da feira e venho com os do mercado. O melhor, mesmo, é rezar a São Floriano, o padroeiro dos bombeiros. Mas será que ele protege tantos os apaniguados do punho como os dos dedos estendidos em V? Se assim for, a divisão pode trazer-lhe alguns imbróglios argumentativos. Tanta santidade para coisa nenhuma. O problema vai ser quando os rabos de palha pegarem fogo. Nas paredes dos quartéis veem-se as fotos dos comandantes e dos presidentes, todos bem-postos. Alguns assemelham-se, de tão cândidos, a peixinhos apanhados no anzol. Temos de reconhecer que uns parece que sorriem por estarem em tão boa companhia. E os outros também. A verdade é que os quartéis de bombeiros são, atualmente, uma espécie de observatório. Todos sabemos que as estruturas dirigentes são recomendações umas das outras. Os risos de outros e de uns aproximam-se ou afastam-se conforme as conveniências. Se sim, sim. Se não, sopas. Reparo agora que numa mão tenho um cesto cheio de gladíolos e na outra um repleto de margaridas. Mas estou atrapalhado pois se pouco percebo de bombeiros, sobretudo das suas diferenças, ainda menos atino com os protocolos, com as conveniências e com as intervenções territoriais confiadas a cada corporação. Afinal, como distribuí-las sem ofender as suas inclinações mais profundas? As escolas que frequentaram até podem ter sido idênticas, ou até as mesmas. Mas os rituais são diferentes. O objetivo é o poder. Sempre. Sempre o poder. O poder, sempre. E a qualquer preço. Que é um preço alto. Mas apenas ao alcance de quem possui os devidos sestércios partidários. Roma não paga a traidores. E saldos só nas grandes superfícies. Mas cada um possui a sua escada Margirus. A cada um o seu poleiro. E onde há galo não canta galinha. E onde há galinha não canta frango. Depois vejo e revejo o resumo das histórias e vai tudo dar ao mesmo. Objetivo. Uma coisa tenho que reconhecer, estes novos chefes dos bombeiros estão cada vez mais aprazíveis, mais elegantes, mais risonhos, mais enfarpelados. De fato azul, a sorrir e a falar, não há quem os distinga. Tudo neles parece maravilhoso. O sorriso, a mão direita colocada sobre o lado esquerdo, onde presumivelmente estão os seus corações, quando escutam e entoam o Hino Nacional. A verdade, verdadinha, é que tenho todas as razões para estar tranquilo. Tem chovido muito. E eu continuo a vê-los sorrir, sempre satisfeitos e com o olhar em movimento. Apesar de serem duas corporações, com a duplicação de chefias e outras coisas que tais, uma única ideia me tranquiliza, a de saber que zelam pelo aconchego do nosso lar comum: a nossa querida e heroica cidade. Esta espécie de pesadelo, em forma de sonho, ou vice-versa, é como um conto de fadas. Apenas arrisca acabar bem. Tudo pode parecer imobilizado, mas basta um pequeno toque da varinha mágica da fada-madrinha e toda a máquina se põe em movimento.
João Madureira