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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

18
Set23

Quem conta um ponto...


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651 - Pérolas e Diamantes: Permutabilidade

 

Porque é que as pessoas devem dizer a verdade se é tão fácil mentir? Tudo é permutável. O sistema de pensamento funciona assim. Quem não ama a igualdade e a liberdade? Aqui todos falamos de ideias. Os jacobinos, por muito que os pintem de vermelho de fogo revolucionário, não são tão terríveis como as suas palavras. E por aí anda essa gente nervosa e na defensiva, atrás dos liderzecos de circunstância, militando nas estruturas secundárias, dos seus partidos secundários, engalfinhados em estéreis debates ideológicos e em combates internos onde a ambição anda sempre disfarçada de pureza de princípios, enquanto o rancor se vai acumulando numa insipiente vontade de mudança. O declínio da política, deste tipo de fazer política, é irreversível. Agora são néscios e pusilânimes. E à sua volta apenas veem paisagens ideológicas calcinadas, ideias em ruínas e esperanças destroçadas. Muitos continuam a organizar-se como unidades revolucionárias dentro dos próprios partidos revolucionários. Podem ter abandonado quase tudo, menos o seu espírito de seita. Era bom que o seu poder se projetasse nas ruínas. A arte revolucionária nunca acaba. A revolução é sempre um princípio. Será? E depois? Morreram as vacas e ficaram os bois. Mas a arte, aquela que vale de verdade, preocupa-se sempre com as confusas ligações entre política e realidade. Estes loucos da velocidade furiosa da revolução, apesar de terem aprendido que é apropriado dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, quiseram, e tudo fizeram, para sentar o próprio César no altar. Transformar homens em deuses dá sempre merda. Por isso é que transformaram os respetivos países em açougues. Também eles, por muito que digam o contrário, acreditam na Bíblia, pois as obras de referência do marxismo-leninismo estão cheias de pilares, flagelos, presságios e milagres. A fé, tanto para cristãos como para revolucionários, é sempre uma questão linguística. Alguns tentam aprender alguma coisa fora das partes armadilhadas, mas dizem-lhes, ou fazem-lhes sentir, que dessa forma põem a sua fé em risco, ou à prova. Mas é sol de pouca dura. Com mais algumas rezas e benzeduras, hinos, ou palavras de ordem, volta tudo à estaca zero. Uns confessam-se e os outros fazem autocrítica. Mas alguém tem o desejo de ver a diferença? Será que ela existe? Eu interesso-me, sobretudo, pelos antagonismos. O problema é que, nós ocidentais, mais do que anti-históricos somos a-históricos. E sobre todas as evidências históricas e científicas deitamos água na fervura. Ou melhor, nós gostamos de deitar água no vinho para o fazer crescer. Mas daí apenas resulta uma água-pé que nem para lavar as mãos serve. Que o diga Pilatos. Dois europeus, três opiniões. O mito do poder vive nessa gente como um direito concreto à prática da arbitrariedade e a toda a espécie de aventura moral. Para uns são os anjos e os santos que tocam alaúdes e para outros são os proletários que sopram trombetas, pois, bem vistas as coisas, se não nos pomos a pau, o dia do juízo final é já amanhã. O Politburo do Comité Central e a Cúria Romana são a cara e a coroa do mesmo poder, da mesma forma de poder não democrático. E por aqui andamos a sorrir de medo, assustados com estes dois tipos particulares de inferno. Dos impérios, desses impérios, resta o ridículo, a derrota e a humilhação. Essas catástrofes são agora uma espécie de luta no vácuo. E depois lá se juntam todos no Monte das Oliveiras a trair a fé, a esperança e a caridade e os pais e os amigos e a Revolução e até o Divino Espírito Santo.  Uns a irem e outros a virem. A religião hoje é mais xaropes para a tosse, analgésicos e anti-inflamatórios para as articulações. E a revolução vive à base de injeções de penicilina para combater as infeções. A religião encarnada num jardineiro e a revolução encarnada num caçador. Uma a podar as silvas e as roseiras bravas e a outra a disparar sobre os melros e as aves pernaltas. São duas épocas históricas que se vão esgotando uma à outra. E que acabarão por se dissolver. Sempre absorvidas nas suas confusas violências e nas suas absurdas razões. A força e a glória. A glória e a força. Ave-maria. Avante camarada.

 

João Madureira

 

 

11
Set23

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650 - Pérolas e Diamantes: O poder das moscas

 

Max Weber disse que não há nada mais abjeto que praticar uma ética que apenas procura ter razão e que, em lugar de se dedicar a construir o futuro livre e justo, nos obriga a perder tempo discutindo os erros de um passado injusto e de opressão com o objetivo de retirar vantagens morais e materiais da confissão da culpa alheia. Por isso, por aqui andam, os que andam, dispostos a tudo: a renunciar ao mito da revolução, ao ideal igualitário do comunismo, à nostalgia do triunfo da revolução soviética, à mesmíssima ideia da justiça histórica. A justiça absoluta, como ficou depois provado, pode ser a pior das injustiças. O que mais custa é as coisas serem e não serem, ao mesmo tempo, boas ou más. O comportamento ostensivamente democrático dos que se julgam “os eleitos” do sistema irrita qualquer pessoa. A democracia ensinou-lhes a mentir, o que é feio. E antidemocrático. Disseram-se subversivos, os pais e o núcleo familiar achavam-nos irreverentes. Afinal, não passavam de putos malcriados. Depois chegaram à fase do charlatanismo. E bom proveito lhes fez. E faz. A sua autenticidade é uma graça, uma piada, uma mentira bem engendrada. Também existe da nossa parte, em relação a eles, algum afeto. É inevitável. Embora nunca seja num grau muito respeitoso. Ao que dizem, Portugal é um país de políticos e de poetas. Na realidade, a política e a poesia não são feitos de intenções. Provêm da esperança e do esforço. E quando alguém se chateia no desempenho da sua tarefa, o melhor é ir engraxar cuidadosamente os sapatos. E a virtude está em engraxar os sapatos dos outros. Se engraxares os teus dizem-te peneirento, egocêntrico, individualista. Se engraxares os dos outros és um cidadão solidário, fraterno e, sobretudo, interativo. Além disso nunca devemos esquecer que nós precisamos muito mais de pão do que de beleza. A beleza não se come, a não ser de forma poética. E nós espantados. Os estudiosos destas coisas dizem que o espanto aumenta a felicidade. E reduz o stresse. Ainda bem. O problema é que para os políticos já se acabaram os prólogos. E para os poetas já a metafísica se lhes escapou por entre os dedos das mãos. Andam por aí todos a argumentar em vez de observar. O futuro é sempre indefinido. Ser engraçado é muito cansativo. E a sinceridade também cansa. E até nos arranja inimigos. Por alguma razão nascemos egoístas. Já chega de uma pessoa se desconsiderar porque os outros a desconsideram. Se uma pessoa se não ajusta, o melhor é não se importar. O talento, cada um cria o seu. Os conceitos, e sobretudo os preconceitos, são uma gaiola. Nós semeámos heróis e nasceram-nos palhaços. Palhaços sérios e ingénuos. Sempre a fingirem ser quem são. Tenho saudades do tempo em que acreditava na imagem ética e estética da política, na aventura individual marcada por episódios dramáticos e por decisões intrépidas. Nós, heróis inocentes. Na primazia da ideias. Mas por fim, a chuva miudinha da realidade acabou por apagar a chama imensa da revolução. E cada um foi à sua vida. A realidade está cheia de lugares-comuns. A verdade é que a política dificulta o trabalho criativo. Sendo que o contrário também é verdadeiro. A presunção é uma doença grave. No ar paira uma leve consternação. Andam os moribundos a despedir-se do defunto. O denominado progresso tem o sabor vazio da caricatura. E depois lá estamos na festa, entre as autoridades locais e a brigada do croquete, entre presidentes de câmara, presidentes de junta e presidentes das mais distintas e abstrusas associações culturais, de solidariedade social e afins. Tudo politicamente alinhado. A situação, à primeira vista, até pode parecer incómoda. Mas não. É esta vida real que faz a nossa realidade. Este é o poder. O poder das moscas. Se o raciocínio for claro, falta ali qualquer coisa. Eu jogo o jogo. Sou normal. Até mais normal do que pensava. Mas perco sempre. Deve ser do olhar. Vou à casa de banho e vejo-me ao espelho. Talvez seja do olhar. Mas ninguém vê ao espelho o seu olhar. Apenas os outros o conseguem fazer com assertividade. Penso então naquilo que foi até agora a minha vida. Não tem ponta por onde se lhe pegue. Isso é o que os outros pensam. E quem sou eu para lhes contrariar a obstinação? Que bom proveito lhes faça.

 

João Madureira

 

 

04
Set23

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649 - Pérolas e Diamantes: É difícil fugir aos paradigmas...

 

É difícil fugir aos paradigmas e às leituras literais, especialmente neste tempo de letrados iliteratos, ou politicamente corretos. Se alguém usa palavras excelsas é ilustre; se utiliza palavras poderosas, é forte; se usa palavras ordinárias, é malcriado. Este liberalismo tosco domina até nas altas esferas da sociedade. O que se pode pensar do nível intelectual, cultural e social de gente que não sabe que uma palavra muda dependendo da forma como é usada? A palavra “cravo” pode perder o sentido, e mesmo o cheiro, quando aparece na boca de um fascista. E até a  palavra “merda” pode tornar-se certeira e objetiva se for usada no seu devido contexto. Lembro-me com elevada estima e consideração que Cervantes deu vida eterna a D. Quixote e aos moinhos de vento e aos carneiros. Eu acredito, tal como Witold Gombrowicz, que até os escritores mais humildes podem escrever sobre coisas perecíveis de modo imperecível. As obras de arte, pelo menos as que mais aprecio, revelam sempre um desvio misterioso que faz delas obras únicas. E por aqui andamos às voltas com a literatura, a filosofia, a fé, a religião, a arte e o amor. E até com o feminismo. E a celebrização da polémica. E do estruturalismo. E do pós-estruturalismo. Sempre às voltas. E a estimularmo-nos com as provocações. Com a ficção e as suas possibilidades especulativas. Sempre. Entre escombros. Entre a pandemia e o pandemónio. Entre Deus e o Demónio. Entre o Demónio e Deus. Os rótulos são sempre simplistas. E nós, mesmo sem querer, sempre a mostrar tudo e tudo guardar. A sermos formigas eternas com complexo de cigarra. Ajudar aqueles que são diferentes de nós também nos ajuda a nós. A vontade da realidade pode atrapalhar tudo. A verdadeira arte eleva sempre o homem acima da sua derrota. O problema é que o dito homem pós-moderno surgiu entre as pessoas que se menosprezam mutuamente. E nós atolados na mediocridade moral. Parece que a virtude passou a ser um luxo. Por vezes, causas pequenas produzem efeitos funestos. Cometem-se minúsculas adulterações em nome dos grandes ideais. E todos dão com os burros na água. Até temos museus nas cidades de província. Temos sim senhor. E modernos. E bonitos. E bem estruturados. Pois. Mas, afinal, quem frequenta museus? Pintores anestesiados ou incongruentes, alguns estudantes das escolas secundárias ou de belas-artes, mulheres e homens jubilados que não sabem o que fazer com o tempo que lhes sobeja, alguns amantes das artes e pessoas que vieram de longe e visitam a cidade. A mim não me surpreendem as presenças. Sempre assim foi e sempre assim será. O que me deixa preocupado, e de boca aberta, são as ausências. Arrepia-me ver aquelas grandes salas vazias com as telas penduradas à espera daqueles que nunca virão. Por alguma razão Vénus perdeu os dois braços. Eu sei que não se pode falar de arte neste tom. Mas… a sofisticação não exclui a simplicidade. Muitas das vezes, posto perante uma obre de arte, seja lá isso o que for, não me admiro, como é devido, mas confesso que me esforço por isso. Esforço-me por admirar. Eu quero ter a certeza de que aquilo que vejo é arte. Mas, por vezes, demasiadas vezes para o meu gosto, apenas consigo ficar-me pela forma. Pelo estilo. Ensinaram-me que o homem, e a mulher, já agora, está acima daquilo que cria. Mas, por aquilo que vejo, o artista é o que menos interessa nessa selva do comércio artístico. Provavelmente a arte está mais do lado da filosofia. Da filosofia da treta. Dos fariseus. Dos especuladores. A arte profunda também tem de ser honesta. Muita da arte moderna está cheia das distintas formas vazias da filosofia. No mundo da arte, dos críticos de arte, dos próprios artistas, das suas esposas e demais família reunida, é frequente quando dizemos que gostamos da obra de um outro artista concorrente, caírem-nos logo em cima. E se dizemos, para não sermos totalmente indelicados, que, afinal, não gostamos da arte nem do tal artista, e que apenas estávamos a tentar desanuviar o ambiente com uma pitada de humor, caem-nos outra vez em cima. Nós, afinal, bem vistas as coisas, gostamos é da arte dos artistas que nos são próximos. O resto é conversa de ocasião. Pretextos para se escrever algo que não interessa nem ao menino Jesus. Que, ao que se sabe, não se dedicava a nenhuma arte em particular. Mas lá que era artista, ninguém duvida.

 

João Madureira

 

 

28
Ago23

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Pérolas e diamantes: O ser e o nada

 

Como se já não bastasse venderem-nos como genuínos o patriotismo dos políticos, a integridade dos primeiros-ministros, ministros e deputados; o celibato e outros desvios sexuais de padres e bispos; o amor à camisola dos jogadores de futebol; o altruísmo e a honradez dos presidentes dos grandes clubes de futebol; a honestidade dos banqueiros e economistas; a honestidade intelectual dos escritores de sucesso; a independência da opinião dos comentadores políticos televisivos; a beleza estruturante e genuína das top-models; a maioridade das nossas instituições nacionais e da nossa democracia; a irradicação do sarampo e da cunha nacional; o cumprimento das promessas eleitorais dos presidentes das câmaras; o amor à democracia por parte dos comunistas e fascistas; o amor à social-democracia por parte do PSD; o amor ao socialismo por parte do PS; o amor à ecologia por parte do PEV; o amor aos proletários por parte do BE; e o amor ao cristianismo por parte do CDS; a ASAE veio confirmar que em Portugal há pota a passar por polvo, paloco a fazer a vez de bacalhau, peixe com aditivos que retêm a água para ficar mais pesado, azeite virgem aditivado com produtos vegetais refinados, mel com açúcar, produtos que em vez de carne de vaca contêm carne de porco ou de cavalo, queijo de cabra feito com leite de ovelha, vinho com adição de açúcar e água, e aguardentes vínicas adulteradas com destilados de frutos baratos – um negócio que gera lucros ao nível do tráfico de droga.

A fraude alimentar tem um custo global de 45 mil milhões de euros e afeta um em cada dez produtos.

No entanto, a fraude intelectual, política, social e económica ainda não foi quantificada. Mas é capaz de, feitas as contas, dar para pagar a dívida soberana do Estado Português e com os trocos fazer um país com superavit, possibilitando a todos os portugueses comprarem uma rulote e irem de férias por essa Europa fora para os indígenas estrangeiros verem como é dolorosa a pegada ecológica dos turistas.

Estas coisas dão-me sempre vontade de rir, de nervoso, claro está. Não vão os estimados leitores pensar que sou um intelectual masoquista subsidiado pelo Ministério da Cultura de Lisboa e arredores.

Quando assim acontece, e o tempo ajuda, vou para o campo à noite esticar o pescoço tentando identificar a Via Láctea e as constelações que aprendi na juventude: Órion, Cassiopeia, Ursa Maior, Ursa Menor, Andrómeda, Pegasus, etc. Cada uma delas eternamente perfeita. Depois pergunto-me com que finalidade terá o Divino Deus criado as estrelas no céu para um dia nos supormos cheios de inspiração e, no dia seguinte, verificarmos como somos insignificantes.

Sinto-me então como o príncipe Rostov, personagem de um livro de Amor Towles, que quando é subestimado por um amigo, fica ofendido, pois os nossos amigos devem sobrestimar as nossas capacidades. Devem possuir uma opinião exacerbada acerca da nossa força moral, da nossa sensibilidade estética e do nosso estofo intelectual. “Aliás, deviam praticamente imaginar-nos a saltar por uma janela, num abrir e fechar de olhos, com a obra de Shakespeare numa mão” (no meu caso o D. Quixote de Cervantes) “e uma pistola na outra.”

Temos de aprender a ser pacientes. Razão tem a Condessa Rostov quando comenta, muito a seu gosto, que se a paciência não fosse tão facilmente posta à prova, não seria precisamente uma virtude.

Por isso nos dá, a mim e ao meu amigo Conde, para as inclinações filosóficas que, tanto num caso como no outro, são também inclinações meteorológicas. Acreditamos na influência indeclinável dos climas clementes e inclementes, na influência das geadas temporãs e nos verões prolongados, nas nuvens agourentas e nas chuvas delicadas, na densidade mitológica do nevoeiro, na inclemência do sol e na beleza fria e densa dos nevões. Mas numa coisa diferimos. Ele acredita na transformação dos destinos causada pela mais pequena mudança de temperatura. Eu, pelo contrário, talvez mais agnóstico, acredito piamente que essa transformação se dá especialmente quando se muda de poleiro.

Ele costuma dar como exemplo da sua crença o facto de uma simples subida de temperatura média fazer as árvores florir, os pardais desatarem a cantar e os bancos encherem-se de casais, jovens e velhos.

Eu contraponho que a gente que muda de poiso e se senta na poltrona do poder vê elevar-se, como por milagre, a árvore das patacas no seu jardim, a sua frota automóvel melhorar consideravelmente, em qualidade e quantidade, consegue, também, por pura magia, adquirir uma ou várias vivendas, uns quantos apartamentos, frequentar os melhores destinos turísticos e colocar uma soma considerável de dinheiro num offshore à prova de investigação judicial.

Ele ri-se.

Eu também. 

Depois deita o primeiro milho aos pardais enquanto eu me entretenho a ler mais um livro a confirmar a minha tese.

Ele ocupa o seu tempo com jantares, conversa, leitura e reflexão.

Eu, no tempo que me sobra da escola, continuo a esgrimir a minha pena com os resultados que todos os estimados leitores conhecem.

 

Propostas genuinamente pessoais e pagas do próprio bolso: Música: Mesh Baghanny – Maryam Saleh; Leitura: Breve história de sete assassinatos – Marlon James; Viagens: http://www.destinosvividos.com/visitar-lisboa-dicas/; Restaurante: O Aprígio – Chaves.

 

João Madureira

 

 

21
Ago23

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648 - Pérolas e Diamantes: De beber eu não posso deixar...

 

Por aqui reinam as virtudes, sobretudo as virtudes cristãs, e em eco: a bondade, a bondade, a bondade… a humanidade, a humanidade, a humanidade… a piedade, a piedade, a piedade… em duplo eco… a piedade, a piedade, a piedade… o respeito humano, o respeito humano, o respeito humano… a moderação, a moderação, a moderação… a modéstia, a modéstia, a modéstia… a decência, a decência, a decência… a prudência, a prudência, a prudência… a sensatez, a sensatez, a sensatez… Sim, temos a virtude dos que fracassaram, a virtude da pobreza e a moral dos embuçados. A moral, para nós, é como o fogo de artifício em festa de aldeia. Soa estrondosa. E atinge-nos como uma bofetada na face esquerda, depois de termos oferecido a direita. A verdade é que o cavalo da nação, apelidado de lusitano, afinal é o resultado do cruzamento entre um burro mirandês e uma égua árabe, ou vice-versa, o que vem a dar no mesmo. Por isso, temos de celebrar a mútua consolação dos ânimos, a celebração das danças e das cantigas regionais e as palestras académicas para compor currículos. Antigamente, os burros davam coices, zurravam e espojavam-se no chão. Agora, disfarçados de garranos, passeiam-se pelos montes, ao deus-dará. Ou são desviados para fazerem parte de alguns capítulos de teses de mestrado ou de doutoramento sem préstimo nenhum. Mas, peço perdão, por estar a desviar-me do meu discurso, a cristandade, ou o que  dela resta, é progressista, mesmo sendo conservadora. Nós, os portugueses, somos gente de rituais ancestrais. Não vá o sapateiro além da chinela. Ninguém espera que das cerimónias religiosas surjam surpresas. As obrigações patrióticas e piedosas dão-nos satisfação. Calma. Vamos respirar de novo. Eco. Eco. Eco. Ioga. Posição de lótus. Respirar fundo. A genialidade lusitana existe. Será que existe mesmo? Diabos levem estes génios. Somos os parentes pobres deste mundo. Mas, talvez por isso, não abdicamos de tentar impressionar os nossos e até os outros. Nós declamamos a humildade e a ânsia, a integridade e a sinceridade. A seguir, pegamos na concertina e vamos cantar ao desafio. Por isso, a pátria é amaneirada. Inibe-nos. Mas nem por isso nos falta o desejo de a ajudar e de a elevar aos píncaros. A arte é uma frase feita? Pois será. Mas vamos ter de nos habituar a ela. Não é em vão que se constroem centros culturais e museus e anfiteatros para recebermos os artistas estrangeiros. Também não pode ser em vão que se manda a Amália para o panteão. Quatro paredes caiadas… a alegria da pobreza… um São José de azulejo… uma existência singela… e o vinho e o pão e o caldo verde verdinho e a alegria da pobreza da riqueza de dar e ficar contente… Nós somos a tal nação genial… mas desprovida de génios. Nós podemos não ser/ter nada de valor mas não paramos de falar… do Camões e do… e do… e do Cristiano Ronaldo. Claro que o nosso passado até pode ter sido grandioso, mas nunca será mais importante do que o futuro. Não devemos levar muito a sério a metáfora dos nossos egrégios avós. Nós não somos, não podemos ser, herdeiros diretos do passado heroico ou poltrão, nem da sensatez, nem da estupidez, nem da virtude, nem do pecado. Cada um tem de aprender a representar-se a si próprio. Enquanto não for assim, o cerne da nossa identidade nacional continuará a ser aquilo que sempre foi: a bajulação. Nós não podemos continuar a ser escravos dos cálculos medrosos. A grandeza do nosso passado é treta… De beber, de beber, de beber eu não posso deixar, se o vinho é que alegra a gente, eu fico contente por me emborrachar, de beber, de beber… Eco, eco, eco… bondade, humanidade, piedade, senhor da piedade valei-me, de beber, de beber, respeito humano, moderação, olha a brigada lá ao fundo, de beber eu não posso deixar, modéstia, decência, pru… pru… de beber eu não posso deixar… pru… pru… pru… se o vinho é que alegra a gente… pru… pru… prudência e sensatez e… se o vinho é que alegra a gente, eu fico contente por me emborrachar, de beber, de beber… para o carro que vou vomitar. Heróis do mar… de beber eu não posso deixar… nobre povo, nação valente e imortal… levantai hoje de… de beber, de beber… de novo… o esplendor… entre as brumas… de beber…

 

João Madureira

 

 

14
Ago23

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647 - Pérolas e Diamantes: O beneficiado sou eu...

 

O beneficiado sou eu. E por isso agradeço a este Estado Social o meu bem-estar e a todos os que o construíram, o governam, o mantêm, o alimentam, o ilustram, o desenvolvem e o acarinham. E também tenho de dar os parabéns a toda essa maravilhosa gente que, com sacrifício pessoal e profissional, o vem servindo com esmero e dedicação, revelando as suas extraordinárias qualidades. Todos esses homens e mulheres trabalham incansavelmente, não apenas para construírem uma carreira política e profissional, mas, sobretudo, para o bem-comum. A verdade é que nenhum de nós consegue fazer a mínima ideia de quando conseguem dormir. Toda esta gente troca o conforto e a segurança pessoais pela dedicação à causa pública. Mais do que eles e elas precisarem do país, é o país que necessita delas e deles. E dos seus amigos e parentes e correligionários. Isto, apesar, da impaciência do povo, dos escassos recursos nacionais e das grandes dificuldades internacionais. O seu zelo impressiona toda a gente de boa vontade. E faz mesmo aumentar o nível de qualidade da mão-de-obra nacional, o nível das qualificações dos trabalhadores, o nível cultural dos nossos jovens e a qualidade dos produtos regionais e da raça do porco bísaro, dos bovinos de lameiro, do cavalo lusitano e das galinhas do campo que, com a sua inteligência de aves ancestrais, sabem bem que uma raposa é um lobo disfarçado. A sua ideologia, mais do que ser socialista, social-democrata ou democrata-cristã, é baseada essencialmente no pragmatismo. Eles e elas não cometem erros, pelo menos deliberadamente, são apenas vítimas de embaraços provocados por jornalistas que não têm mais nada que fazer na vida do que andarem atrás de notícias fantasiosas. Eles e elas, mais os assessores que incansavelmente os acompanham, almoçam pouco e jantam tarde e a más horas. A sua vida é tão intensa, e a sua agenda tão preenchida, que chegam a entrar nas festas dos bombeiros ou das instituições de solidariedade social com fome e a saírem de lá com vontade de comer. Alguns, talvez muitos deles e delas, possuem um curriculum vitae com lacunas, mas quem é que nunca sofreu, mesmo que fugazmente, do síndrome Relvas? Claro que podem ter alguns pecados originais, mas, bem vistas as coisas, quem é que está acima deles? Penso que não é possível avaliar a dimensão dessas mulheres e homens, sem ter em consideração os fatores políticos, sociais e humanos em que foram gerados. Todos somos vítimas das circunstâncias. Mas enche-nos a todos de orgulho o facto incontornável de Portugal ser atualmente a terra das oportunidades, tanto para cidadãos nacionais como para indivíduos estrangeiros. E a quem se deve esse salto qualitativo? A resposta é óbvia e simples: a eles e elas. Esta gente muda paradigmas, sistemas e estruturas a um ritmo invejável. O amor, por tradição, é uma questão a dois. E é isso o que existe entre o povo e eles (e elas) ou entre elas (e eles) e o povo, pois, apesar dos arrufos e das discussões familiares, o povo acaba sempre por votar neles ou nelas. Claro que o conflito se renova de quatro em quatro anos, mas o povo lá se vai acostumando, ou melhor, aculturando. Claro que o povo sabe bem tocar bombo, ferrinhos, gaita de beiços e cavaquinho, mas, com os devidos apoios comunitários, aprenderá a tocar violino, fagote ou flauta transversal e a transformar o Malhão numa sinfonia apologética. O puro ato de escutar transforma a nossa erudição musical. Para já não falar das outras. O esforço de modernização do país até nos pode parecer excessivo, mas temos todos de colaborar. Convém não esquecer que esta é uma nação de artistas, um pátria de poetas e de primeiros-ministros que até fazem exames ao domingo. Nós somos o novo centro magnético da lusofonia. Claro que também existem pequenos problemas, sobretudo com os nossos filhos, já que, por causa das suas carreiras profissionais, costumam adiar o nascimento do segundo filho, muitos até do primeiro, mas com mais uns anos de intenso e consistente progresso, o putativo problema passará de ser meramente estrutural, para ocasionalmente instrumental. Ou apriorístico. Ou…

João Madureira

 

 

07
Ago23

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646 - Pérolas e Diamantes: David à espera do desastre

 

Deus está no desemprego ou é pago a recibos verdes. Eu estou detrás da cortina de um mago. E pelo trabalho dele, dá para ver que os feiticeiros não se divertem e nem sequer vão às compras. Este tempo é experimental, inspirador e emocionante. O mago não descansa. Isto já dura há algum tempo. Eu detrás da cortina e ele a fazer que não me vê. Ele é o mágico e eu o seu aprendiz. Não descansa, o mago. E depois de um dia de trabalho passa a noite acordado a rir, a sonhar, a conspirar e a planear. Uma das coisas mais importantes que me ensinou, a nível teórico, foi a diferença entre a valsa dançada em Viena e a dançada em Paris, também conhecida como valse-musette. A magia está nos pormenores. E Deus também. Mesmo estando ele no desemprego ou a trabalhar a recibos verdes. De certa maneira, para o patrão, o desemprego do seu empregado é apenas um pormenor que o Estado deve resolver, subsidiando. Muitas vezes, nem a magia ajuda, especialmente quando a realidade esmaga os pormenores. E lá se vão os láparos para o tacho, as pombas para a caçarola e os confettis para os casamentos de pessoas do mesmo sexo. Lembrei ao mestre que também vivemos tempos difíceis, ou mesmo cruéis. Como quando estivemos imersos no pesadelo de José Sócrates para depois concluirmos que acordámos numa realidade ainda pior chamada Pedro Passos Coelho. Depois de todos fecharmos os olhos, quando os voltamos a abrir já tudo valsava ao som da geringonça. A verdade é que a vida continua, não por causa deles, mas apesar deles. Ou apesar de tudo, pois aí estão Marcelo Rebelo, António Santos Costa e o sibilino Luís Montenegro Esteves, este último à espera de um desastre devidamente anunciado para tomar conta da governação do país. E nós lá vamos ganhando diferentes tipos de imunidade. Se conseguimos sobreviver ao vírus do COVID, também somos capazes de resistir a estes pândegos. As instituições políticas do país são uma espécie de Moulin Rouge com uma estrutura exterior parecida ao Mosteiro da Batalha, mas feito em esferovite. Andamos sempre a enfrentar ferozes ventos contrários, no meio de dúvidas e desânimos. Mas não é por isso que vamos desistir. Até porque eles, essa boa gente do poder, sabe que quando temos de escolher entre mentir e magoar, o melhor é escolher a delicadeza em vez da verdade. O melhor é sempre causar alegria, mesmo que para isso se tenha de mentir. A generosidade da mentira é sempre preferível à dor da verdade. Afinal, bem vistas as coisas, é assim que se governa desde os primórdios. Eles, os que se fazem à história, até são os génios da espera, mas, infelizmente, não têm jeito nenhum para tocar a música pela pauta. Gostam do improviso, mas detestam o jazz. Tocam a música dos outros há custa de muito porfiarem. A nós dão-nos a receita para imaginarmos o prato repleto de conceitos e ilustrações. Eles lambuzam-se com a travessa dos alimentos. Quem costuma fazer o pino tem tendência para ver as coisas ao contrário. O poder costuma projetar à sua volta zonas de sombra. Não há nenhum político democrático que não tenha desejado ser bombeiro, para brincar com o fogo e com a água, vestir o uniforme prazenteiro, andar com as botas do heroísmo, dar lustro ao capacete reluzente, fazer apitar as sirenes, ser admirado pelas raparigas, focar-se nos faróis de emergência, ordenar o pânico nas ruas e fazer andar os veículos vermelhos a uma velocidade relâmpago. E ainda de executar as manobras necessárias com a viatura das escadas, desenrolar as mangueiras, fixar na retina o reflexo das chamas e pegar em braços a bonita princesa inanimada, dando continuidade à ficção dos heroicos salvadores. E as suas imaginadas companheiras ou camaradas, aparecem sempre a seu lado com as cestas cheias de amoras, mirtilos, morangos silvestres, groselhas e cogumelos. O problema não está na sua imaginação nem mesmo na sua militância juvenil. O busílis da questão reside no facto de fazerem da política o seu sustento. Os melhores bombeiros são os voluntários. Neles é que reside a essência do humanitarismo. Lembram-se do jovem pastor David que venceu o gigante Golias? Foi em tempos um guerrilheiro corajoso que lutou nas fileiras dos movimentos emancipadores contra o jugo dos filisteus, mas na velhice transformou-se num monarca colonialista e imperialista, que conquistou outros países, subjugou outros povos, tirando aos pobres para enriquecer os cofres do Estado. Uma coisa vos asseguro: isto já é assim desde tempos imemoriais.

João Madureira

31
Jul23

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645 - Pérolas e Diamantes: E por aqui andamos...

 

E por aqui andamos nós a escolher entre o egoísmo e o egoísmo. Que tempos estes, Deus meu! Que tempos estes! Grande parte dedicados a ouvir ou a contar histórias sobre o amor felino e a fidelidade canina. Bons tempos em que se ia buscar ao quintal bons frutos e bonitas flores, enquanto os sinos badalavam, as procissões passavam, as mascaradas desciam as ruas e os bailaricos alegravam os outeiros. Agora tudo arde. O país inteiro, no verão, parece um paiol de fogo de artifício. A magia de outros tempos é agora um eco. E também um cliché. E nós, os pretensos saudosistas, a elaborar cenários kitsch. Sempre a apregoar os estereótipos ligados ao desejo e à solidão. Somos uma espécie de filósofos tristes. E agora que cada um pode ter um carro pelo preço da uva mijona, deu-nos para andar a pé, como os peregrinos ao redor dos santuários. Que raio de cisma! Desceu sobre nós o Espírito Santo dos escuteiros ou da Mocidade do tempo da outra senhora. Mas estou em crer que as abelhas ainda zumbem e as melgas picam. Antigamente moviam-se montanhas com a fé. Era tudo uma espécie de via-sacra com laivos de mater dolorosa. De uma coisa estou certo, podem não existir as outras almas, mas a alma lusa existe. Lá fora, os revolucionários foram sempre adeptos da aceleração. Por cá, as suas cópias funcionaram sempre ao retardador. E nunca mais nos libertamos disto. Nem daquilo. Nem dos outros. A alma portuguesa é apenas um desvio semântico. A nossa identidade ou não existe ou é um enigma. A nossa principal dinâmica é a divisão. As águas paradas também enjoam, sobretudo as gentes mais intrépidas deste país de marinheiros. Nós gostamos de conversar. Esse é o nosso principal divertimento. Pode-nos faltar cultura, mas compensamos isso com o excesso de doçura. Há lá povo mais doce do que o português. Claro que isso provoca diabetes, mas para alguma coisa têm de servir a metformina e o Serviço Nacional de Saúde. Ser burro no nosso país não é uma exceção. Do mal o menos. A regra segue dentro de momentos. A província continua a ser uma espécie de jardim zoológico que os políticos visitam em campanha eleitoral para observarem o povo povinho povo no seu habitat natural. E prometem promessas que logo esquecem quando estão de volta à capital. Está na hora de lhes dedicarmos uma música dos Galandum Galundaina: “Nós deiqui i bós daí / Sodes tantos cumo nós / Mataremos un carneiro / Ls cuornos são para bós  // Lá lá lá lá ra lá / Lá lá lá ra laia / Lá lá lá ra lá / Lá lá lá ra laia…” Podem até mudar os nomes às coisas e aos lugares, mas as pessoas continuam arreigadas aos seus defeitos. Bem vistas as coisas, o País está tranquilo. E hora a hora, Deus melhora. Nós até podemos não fazer nada, mas alguém o fará por nós. Essa é a nossa esperança. Neste país de solidó estamos sempre prontos a desviar com gracejos, as conversas que não nos interessam. A nossa realidade revela sempre uma pequena inclinação decorativa. Apesar de tentarmos fotografar o futuro, apenas se nos revela o passado. Somos gente muito autocompassiva e ressentida. Na maioria das vezes, transformamos a nossa ousadia em temeridade. A nossa suposta coragem é uma forma difusa de medo. A nossa realidade social é uma espécie de farsa vicentina. A democracia política é um teatro e, como todos sabemos, ninguém pode atuar num teatro sem fingir aquilo que não sente. O problema está naqueles que fingem com tanta convicção que acabam por sentir aquilo que fingem, acabando por confundir a realidade com a sua própria representação. São estes os que vão seduzindo os interlocutores com a sua simpatia e com a vontade insaciável de agradar a gregos e a troianos e os endrominar com o seu infindável repertório de historietas. A tudo nos habituamos: às mentiras, ao descuido, às modificações, ao lixo, às terras de poulo, à ineficiência, ao progresso, à cosmética. E lá vamos porfiando na nobre arte de estar sentados a olhar para os montes e a pensar na praia e no mar. E lá na aldeia o avô e a avó a cavarem a terra e a regarem as hortênsias. E na cidade os netos a entusiasmarem-se com facilidade. Tudo assim e assado. Tudo a agitar os humores. A dançar e a rezar antes da peregrinação a Fátima. Tudo reluz neste país de pastorinhos enfeitiçados por uma senhora que veste de branco e que costuma pousar nos ramos das azinheiras.

João Madureira

 

 

24
Jul23

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644 - Pérolas e Diamantes: A forma e o conteúdo

 

Os políticos de agora são atores da cabeça aos pés: jovens, atléticos, muito bem postos dentro dos seus fatos de galã de província, prontos para encantarem as senhoras de meia-idade, concebendo a política como um espetáculo, pois acreditam que já não é a realidade que cria as imagens, mas as imagens que criam a realidade. A maioria deles pensa que estão a posar para a história, mas, verdade seja dita, apenas posam, ou se arranjam, para a foto que vai sair no jornal local que eles subsidiam a seu belo prazer. Não posam para a posteridade, mas para o ridículo. Combinam a sua mediocridade com o melodrama. São devotos do poder. Sem ele não são nada. Todas estas coisas da política e da conquista de poder são feitas com um elevado grau de improvisação. Todos eles, sem exceção, acabam sempre por mudar algo para que tudo fique na mesma. Quem conhece esses meandros, sobretudo os do poder autárquico, sabe que por lá está tudo muito bem atado. E os interesses garantidos. A política autárquica, por muito que nos custe, é uma ilha, um eufemismo, rodeada de dinheiro e interesses por todos os lados. E a verdade é que o arquipélago autárquico já tomou conta do território. A sua autonomia e independência são apenas semântica ou conceitos vazios de substância que cada um vai preenchendo consoante os seus interesses. E a democracia é uma questão de forma, quando não um pró-forma. A legitimidade popular não passa de um conceito vago que quanto mais propalado é mais inoperante se torna. É triste, mas verdadeiro, ver os mais exímios democratas terem atuações de sabotadores da democracia que dizem defender e amar. Não é a realidade que luta contra a democracia, é a democracia que parece querer lutar contra a realidade. Sobejam argumentos, mas faltam as razões. A mediocridade é, especialmente no poder local, uma coisa de bradar aos céus. Alguns vereadores são manifestamente incompetentes, quer na sua dimensão política, ou meramente técnica. Quando o problema é político, dão respostas técnicas. E quando o problema é técnico, desculpam-se com os subalternos. Claro que o povo ri, esquecendo-se que foi ele, esse povo galhofeiro, quem os pôs lá. Democraticamente. Esquecendo-se que a legitimidade democrática não é o mesmo que competência. E que a competência não se compra nas farmácias e também não se adquire por eleição. E dá trabalho. Muito trabalho. Dá sempre mau resultado quando se promove o moço de recados a capataz, pois quase sempre passa a sentir-se o arquiteto do projeto. Depois, quando toma conta das rédeas do poder, é difícil conseguir devolvê-lo ao redil, pois começa a dar couces como uma mula desembestada. Já os mais afoitos dão sempre a impressão de saberem tudo, coisa que é praticamente impossível, porque revelam faro político e inteligência estratégica. Cheiram o poder, pois para isso foram treinados. Claro está que o magnetismo do poder cria sempre uma espécie de unidade aparente. O segundo sonha em ser o primeiro e o terceiro o segundo, etc. É então quando o caldo se começa a entornar, pois chegam sempre os ciúmes, as rivalidades, as discrepâncias políticas e, sobretudo, pessoais. Os partidos políticos são sempre capoeiras com vários ninhos. Há sempre ambições insatisfeitas. Por trás de cada líder de grupo existe sempre um séquito de aduladores incompetentes e descoordenados. Os subordinados que colam cartazes, que agitam bandeiras e que pagam as quotas também esperam que alguma coisa do exercício do poder chegue até eles e não interessa que seja em géneros: medalhas, prebendas ou cargos mais ou menos honoríficos pagos como despesas de representação ou senhas de presença. Com o avançar do tempo, iniciam-se as discussões e começam a surgir as divergências. Mesmo sabendo que o respeitinho é muito bonito, ele, o poder, começa a dar de si. E quando se perde o respeito a alguém é irrecuperável. O fogo da rebelião começa então a tomar conta do palheiro. A intuição de alguns dos mais avisados de que a equipa era uma manta de retalhos mal engendrada era até correta, mas foi extemporânea. A razão antes de tempo é a pior das verdades. E depois surgem sempre os críticos tardios, os que intrigaram laboriosamente contra o número um. E a balbúrdia instala-se. E depois cresce. Até ao golpe final. Parece que a realidade anda sempre a conspirar contra os políticos. Coitados. Pobres coitados. Quando a forma é o conteúdo, o conteúdo deixa de ter sentido.

 

João Madureira

 

 

17
Jul23

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643 - Pérolas e Diamantes: Isto faz parte...

 

Isto faz parte da história e do seu circo, as personagens reais parecem irreais. E as outras parecem contaminadas pela peste da mediocridade. Da realidade. E a ficção transforma-se em realidade. Que é, neste caso, sinónimo de mediocridade. E a realidade, para tristeza nossa, distorce-se, degrada-se, banaliza-se. A garantia de realidade é irreal, pois a ela se somam os assombros, a falsa magnitude histórica e as zonas de sombra. As hipóteses são mais reais do que a triste realidade. A História está cheia de dúvidas. A realidade exige sempre um romance. A História anda sempre à procura dos historiadores, para que não a deixem ficar mal. O problema surge quando os historiadores querem passar a ser os heróis da História que mais lhes interessa. Eles, que nunca foram parte, nem tida nem achada no processo, querem ser os heróis da transcendência histórica. A verdade é que as espadas, ou as balas, nunca silvaram à sua volta. As guerras, que é onde a História se decide, são feitas de gritos, disparos, golpes, berrarias dos intervenientes e um silêncio aterrorizado e ensurdecedor do povo. O povo sempre acagaçado a ver onde param as modas. Tudo, e todos, em estado de choque. Ou hipnose. E os lugares do circo vazios. Ninguém viu nada, ou quase nada, no momento. Mas todos viram tudo, após a refega. Todos perceberam, então, o significado do enigma. O alarme e o destino do que estava para acontecer. Quando se está no meio do facto histórico ninguém tem a noção do verdadeiro significado dos seus gestos. Aquilo é mais disparar e andar. E o que tiver de ser será. Ou não. Tanto de um lado como do outro, o que por lá mais existe são os oportunistas, reacionários/revolucionários, superficiais e manhosos. Depois existem os que triunfam. A História tem horror ao vazio. E com eles chega sempre o cheiro do sarcasmo, da afirmação inclusiva das reticências, da canonização da hipocrisia, do festejo da vulgaridade. Os festejadores festejam-se sempre a si próprios. Os que vencem banalizam sempre o triunfo do bem. Esse é sempre o seu mal. A canonização dos princípios, a vacuidade dos gestos, o enriquecimento ilícito. A sua biografia imposta. Na verdade, ou na mentira histórica, pois são sempre a cara e a coroa da mesma moeda, tudo parece ser tecido milimetricamente para que o que tinha de ser acontecesse: as teias conspirativas dos militares, a anuência dos políticos, o dinheiro dos empresários, a cobertura dos jornalistas e dos diplomatas. Todos em volta da mesa aglutinadora das ambições dispersas, por vezes aparentemente opostas. A verdade é que quanto mais se lê os históricos compêndios canónicos mais as certezas dos acontecimentos narrados se transformam em dúvidas. As incertezas, em vez de se dissiparem, acabam por se adensar. E as dúvidas multiplicam-se. A intuição sobrepõe-se ao medo. A base histórica da História, bem analisadas as coisas, é essencialmente falsa. Mesmo aquela que se baseia em pressupostos aparentemente verdadeiros. A verdade histórica nunca é coerente, simétrica e risonha. Antes pelo contrário, é desordenada, conturbada e imprevisível. Na História, enquanto ela se faz, apenas existe desordem e acaso. Caos. E mais caos. A História, por mais que nos custe, é uma amálgama de hipóteses teóricas, incertezas, efabulações, falsidades e recordações reescritas pelos tristes académicos que espremem os documentos como se fossem limões sumarentos. A realidade não tem a homogeneidade que todos lhe queremos conferir. A História é um labirinto feito de outros labirintos, cheios de memórias irreconhecíveis e quase sempre díspares. A História é sempre o campo da realidade alternativa. Os historiadores, os mais honestos, tentam fazer com que a História seja um pouco mais inteligível, pois não pretendem ocultar a sua natureza caótica, nem encobrir os sinais mais evidentes dos traços neuróticos ou paranoicos dos seus protagonistas mais emblemáticos. Tentam que a novela coletiva seja escrita com a maior nitidez possível. Sobretudo, com toda a inocência de que são capazes. Pois sabem que a História é sempre, para o bem e para o mal, uma recordação inventada.

João Madureira

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