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De vez em quando gosto de fazer um regresso às origens, ao passado, ao tempo de infância, aos meus percursos de liberdade pela veiga fora, a pé, de bicicleta, sozinho ou acompanhado, tanto fazia, toda a veiga, ou quase toda, era o meu (nosso) território de liberdade onde como único relógio, só havia aquele que a barriguinha ditava e que despertava com o despertar das aves e só encerrava ao anoitecer.
Caminhos e carreiros que todos eles conduziam à liberdade e a grandes aventuras de criança que dia-a-dia se faziam de fértil imaginário e no conhecer de cada esquina e canto ou cantinho, como também se conheciam as melhores árvores de fruto, as melhores águas, sempre frescas, que davam energia para mais uma caminhada ou mais uma aventura, sempre veiga fora com apenas a serra por limite, ou terras de outras aventuras e outras liberdades, que nisto das liberdades, também havia territórios.
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A casota do pastor que ainda hoje passados mais de 40 anos, se encontra no mesmo local
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O nosso, porque não era só meu, começava na Casa Azul, ponto de encontro e reunião, de programar aventuras e de cumplicidades também e prolongava-se veiga fora até à Serra do Brunheiro, que só no natal explorávamos, a Ribeira do Caneiro marcava outro limite, pois além dele era terra de ninguém onde também fazíamos as nossas incursões, na quinta da Condeixa voltava-se para trás pois pró Campo de Cima, só para ir buscar e devolver os livros da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian cujos livros a liberdade dos dias não nos deixava quase tempo para folhear, excepto nos dias de chuva, desses enfadonhos cinzentões, escuros e horríveis dias de chuva, e às vezes chovia tanto…
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Da minha rua e da minha varanda o Castelo dizia-me onde ficava a cidade
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Também havia por lá a vida de campo, não fossemos nós os rurais da cidade, e não era campo por opção, mas antes a obrigação de ir atrás da água que falhava nas regas, a obrigação das plantações e das colheitas, principalmente estas, pois o trabalho dava para todos e muitas vezes até sobrava para os amigos. Claro que não eram dias que tinham a liberdade que de manhã idealizávamos, mas não se contestavam porque eram obrigatórios e na altura a palavra contestar, nem sequer existia. Claro que andávamos como se as pulgas nos picassem e o sentido e ouvido, estava na rua, à espera de um assobio de código ou de outra combinação qualquer, mas trabalho era trabalho e estava proibido interrompe-lo, quando muito, uma aproximação do local de trabalho significava estarmo-nos a oferecer como voluntários para uma tarefa qualquer.
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Os Braguinhas e a Capela de S.Bento, mesmo ao lado da grande catedral do vinho
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Pensava eu então que esses dias de lides do campo, com plantações e colheitas eram piores que os dias de chuva e não me dava conta, então, que aquilo também era uma escola, onde se aprendiam as coisas mais primárias e simples, mas cheias de valor e valores. Deveria ter andando e aprendido mais nessa escola, mesmo assim, dava-me gozo ver os betinhos da cidade a conhecer só o nome das árvores quando tinham os frutos pendurados.
Claro que nas lides do campo, também havia tarefas que se faziam com gosto e até dias de festa, como na matança do porco depois (claro), só depois, de termos carregado a primeira pedra de afiar do matador. Mas era dia de festa pelos petiscos e iguarias próprias do dia e principalmente pela bexiga do porco que dava para uma pequena temporada de jogo da boca, mas o que mais apreciava mesmo (à distância) era ver os rojões do banco a saírem disparados e projectados para bem distantes do ambiente de trabalho.
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A velha fonte do Campo da Fonte, paragem obrigatória para refrescar
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Mas para além das grandes aventuras de verão havia a grande aventura da escola, das aventuradas caminhadas para a escola e do regresso também, isto no tempo em que a escola era um martírio onde aprender a ler, escrever e contar era obrigatório, quer fosse naturalmente por inteligência e raciocínio ou com a ajuda de uma cana-da-índia ou um naco de madeira redonda com cinco furinhos que às vezes o professor “acariciava” as nossas mãos e que eram um petisco nos dias frios de inverno com mãos cobertas de frieiras. Ainda era o tempo em que uma gripe das fortes eram uma alegria para a criançada e onde felizes trocávamos o carinho e aconchego de uma mãe por dois ou três dias de escola. Um bem haja para os professores de hoje que trocaram as canas e os “nacos de pau com furinhos” por e pelos interesses das crianças em que ir à escola é um dia de diversão.
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A velha estatueta continua virada para Portugal ditando o seu início...
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Mas era nos trajectos para a escola que íamos saído do nosso rincão e que até estávamos autorizados a passar (sem abusar) pelos territórios de outras liberdades. Claro que pelo sim, pelo não, preferencialmente fazíamos o trajecto acompanhados ou (quando as coisas ficavam sérias) até em grupo, mas qualquer dedo molhado resolvia o assunto e no recreio da escola, o território era neutro, ou quase.
Foram também tempos das grandes descobertas, de apreciação de locais de paragem obrigatória, de minutos roubados ao percurso ou até de terror, quando sozinho, tinha de enfrentar o ardina que eu conhecia pelo “ós contra sai macho”, quando me barrava o caminho e tinha de fugir por valetas e por baixo de pontões… regressos ao passado que hoje vou recordando e imaginando o gozo e rizadas de consolo que não deviam dar aquele ardina quando nos atormentava. Ardina que terminava a sua missão nos Braguinhas, mais ou menos onde nós recolhíamos os “malucos” dos irmãos Caios, aos quais todos guardavam algum respeito e que eram óptimas companhias para as confusões.
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O palacete das freiras ou de Sotto Maior, tinha bons diospiros...
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Também ao longo dos percurso íamos tendo contacto com as mais variadas profissões e actividades que hoje (algumas) só já existem na memória. Não raras vezes acompanhávamos as lavadeiras de S.Lourenço que com os seus burros, desciam à cidade com a roupa lavada, depois de termos deixado para trás o sapateiro remendeiro cada ponto cada… e lá vinha bota do sapato pelo ar… a sorte é que nunca acertava. Depois dos braguinas, o peliqueiro, mesmo em frente ao “papa couves” e ainda antes do bacatela, onde o alfaiate, sempre com o rádio em som bem elevado, ia ouvindo os parodiantes de Lisboa (era essa a hora da minha passagem).
No Campo da Fonte juntavam-se-nos outros dois gémeos, o velhote, o Gaspar, o Marco e o periscas, raparigas à parte, pois não sabiam jogar à bola, mesmo na escola, elas lá tinham a sua e nós a nossa.
Depois era tempo de apreciação, pois começávamos a chegar ao movimento da cidade. O Palacete da Freiras que só mais tarde soube que era do Sotto Maior, a Volkswagen e os seus carochas, que era um carro – carro, o Posto da Polícia de Viação, com as suas brutas motos, com continência obrigatória ao Sr. Ribeiro ou ao Sr. Andrade e a outro mais gordinho cujo nome não recordo e a seguir o mundo do Jardim Público, com parque infantil à entrada, com guarda porteiro a cobrar entradas e a qual nós pensávamos passar a perna com as nossa entradas clandestinas que tinham sempre mais sabor. É esse o jardim que guardo na memória e não o de hoje, mais que desvirtuado. Depois só restava mesmo a Ribeira do Caneiro, a taberna do Sr. Armandino e a escola, o martírio, mas que valia pelos intervalos e compra de cromos do futebol para jogarmos (mesmo na taberna em frente) ou pelos jogos do espeto, do pião, do já-estás com os sempre momentos grandes das trocas de dedos molhados, umas bofetadas e uns murros que com tanta emoção, raramente acertavam ou faziam moça, mas valiam para dizer que é que mandava.
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Prefiro recordá-lo assim...
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Um regresso à infância que eu dedico a toda a rapaziada de então, do tempo em que gozávamos da liberdade da veiga ou das brincadeiras e jogos à volta da taberna ou, de verão, à volta da nossa praia do fundão que se improvisava no canal de rega, mesmo ali onde ele passava por baixo da Ribeira do Caneiro.
Hoje um post de regresso à infância onde a maioria dos acompanhantes deste blog não se revêem, mas que fazia os dias da rapaziada da Casa Azul, aos quais dedico este post, mas também aos outros bairros (alguns até rivais) da cidade dos “betinhos da cidade”, como o do Stº Amaro, o Bairro Lopes bairro vermelho, o Aliança, o Campo da Fonte, os Aregos, a Canelha, o Bairro Operário e outros que já se misturam no tempo e nas recordações.
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A minha ficava ao lado, esta era a das raparigas.
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É bom, de vez em quando, descermos às origens e ao bairro onde nascemos, porque então ainda se nascia em casa e em Chaves, o que hoje, infelizmente, já não é possível, salvo raras excepções a quem o tempo não deu para ir nascer em Vila Real. Já não é tão bom, passar pelo velho bairro e não ver uma única (que seja) criança na rua, quando nos meus tempos, a rua, era das crianças. Outros tempos os de hoje, que lá terão os seus prós, mas também muitos contras. Pelo menos, hoje, vamos tendo a liberdade de poder dizer coisas, desde que…claro que o post já vai longo e termino por aqui, com os meus devaneios com mais um dia sem a prometida feijoada das quartas-feiras e, pela primeira vez, aproveito também para pedir desculpas pelos erros dos textos que por aqui vou deixando, mas continuo com o velho e mau habito de não reler o que escrevo com a espontaneidade com que me vai saído dos dedos. Está escrito, está escrito… e “prontos”.
Até amanhã, com coleccionismo de temática flaviense.