Chaves D´Aurora
Romance - Últimos Capítulos
- CHAVES DA ILUSÃO.
A última escada, o último apito, a última esperança já lá se foram. A rapariga se agarra firme à amurada, para não cair, enquanto se põe a contemplar a terra que mais e mais se distancia. Nela ficará, para sempre e tão distante, um certo gajo com luvas cor de morcela. Aquele pelo qual tanto ansiava e que a fizera conjugar, ao mesmo tempo, os verbos amar e desamar. Aurora prosseguirá, no entanto, a carregar consigo a tentativa de esquecê-lo, como a um indesejável inquilino de algum sótão em sua memória, ou, mais apropriadamente, de um porão cada vez mais sombrio.
Em vão.
Posto que entregasse a esse rapaz muito mais do que havia de si mesma, pressente que jamais o deixará de trazer dentro de si, no mais recôndito de suas esferas pessoais. Pelo menos até que, finalmente, a imagem de Hernando Camacho se venha a definhar, diluir-se, evadir-se da sua mente insana; porque também terá chegado o tempo de seu corpo insano apagar-se, diluir-se, inexistir. Ao cabo de tudo, agora ela percebe afinal quem é o homem a quem entregara muito mais do que amor, esse alvo tão perseguido e o mais complicado de todos os sentimentos humanos, mas que, não obstante, os próprios amantes o transformam, tantas vezes, em algo efémero, banal, fugaz.
Um choro de criança miúda, proveniente da terceira classe do navio, alcança-lhe os ouvidos e ela percebe, então, o inteiro teor das palavras de Totonha, a velha sibila. Sílaba por sílaba, Aurora as guardara de cor, ou seja, ao coração. Lá no camarote, a dormir junto aos avós, está aquela que será sua constante companhia por todos os anos do resto de sua vida. Um serzinho em botão que a ela caberá regar com o seu desvelo e ajudar a florescer, com todo o seu amor.
Aos dias seguintes, no navio e nas terras do seu destino, muitos homens como o tripulante alemão, ou mesmo esse jovem que ali estivera perto dela, com sua luva cor de morcela, olharão para si, então no esplendor de sua beleza e juventude e, sem saberem dos insucessos da rapariga, estarão a lhe transmitir educados, gentis e cavalheirescos sinais de interesse amoroso. O que se haverá de saber, no entanto, por todos os que com ela vierem a conviver, é que jamais voltará a se entregar a homem nenhum.
- CHAVES D’ AURORA.
O dia, finalmente, alvorece. As chaves dessa alba, Aurora há de guardá-las consigo, para sempre. A radiosa manhã, ainda que fria, favorece a que ela veja se distanciarem, cada vez mais, os últimos recantos desse Portugal que ela tanto ama e nunca deixará de amar. Terras que serão, agora, inversamente d’além-mar (e às quais ela não sabe, mas já prenuncia, ninguém de seu clã original irá volver, jamais).
Murmura então a si mesma – Ah, Hernando, eu te amei entre flores de giesta, mas nem mil pontas de tojo me fariam tanto magoar! – e a olhar para as águas do mar, alcança-lhe à lembrança o canto das lavadeiras, às margens do Tâmega:
“Olhos pretos roubadores
porque vós não confessais
dos débitos que fazeis vós
dos corações que matais?”
F I M
Chaves, Portugal, 22 de março a 27 de maio de 2010.
Rio de Janeiro, Brasil: revisão final em junho de 2015.
Lavadeira no Rio Tâmega. Chaves antiga (PT).
Postal público. Foto Alves.
FEITURA (OU “MAKING OFF”):
Os dados essenciais, sobre os factos que inspiraram este romance, foram-me fornecidos pela verdadeira Maria de Fátima, em Belém do Pará, pouco antes de ela vir a falecer. Era apenas um novelinho que conseguira amealhar, sobre a sua origem flaviense. Constituía, porém, o bastante para servir de fio condutor à narrativa desta saga familiar.
Procurei envolver os Bernardes com as tradições locais e os eventos históricos e quotidianos que eram noticiados nos jornais da região, entre 1912 e 1926, os quais se encontram disponíveis na Biblioteca Municipal de Chaves. Presumo que muitos desses episódios guardem, de uma forma ou de outra, alguma semelhança com os vividos de facto pelos protagonistas. Quanto à Belém do século XIX, os dados foram recolhidos na imprensa e na bibliografia local. Pesquisei também, outros temas, como os ciganos e suas tradições.
Foram numerosos os dados importados daqueles periódicos, que incorporei à história de Aurita, como se dela fizessem parte. Curioso notar que o anúncio sobre a “venda de mobiliário” foi publicado em uma data bem próxima à da partida dos Bernardes para o Brasil. Era deles, possivelmente.
Pessoas reais da época, citadas nos jornais, como o dentista, a pianista etc., misturam-se a personagens históricas, como António Granjo e Maria do Rasgão, e às lendário-urbanas, como a Moura da Ponte, Maria Mantela e outras. Quanto à Zefa, à Adelaide, ao primo Rodrigo e tantas criaturas mais, inclusive as que existiram de facto, como os Camacho, os Sidónio (o filho, foi o único do qual localizei o túmulo, no cemitério de Chaves), o Cazarré e Alice, foram todos desenvolvidos pela imaginação do autor, tal como a maior parte das ações e situações em que eles se envolvem, no romance. Já os Bernardes, com os quais, exceto o patriarca, cheguei a conviver, são híbridos de realidade e ficção. Fictícia, também, é Sant’Aninha de Monforte, uma síntese de várias aldeias trasmontanas.
No que se refere à Quinta Grão Pará, julgo tê-la reconhecido em um casarão ainda remanescente à Rua do Raio X, nº 135, ao comparar com um croqui trazido pelos Bernardes para o Brasil. Os interiores, todavia, são descritos de forma inteiramente imaginária.
Foram da maior importância os meses em que convivi com os habitantes da cidade, a recolher dados, linguagens e tradições locais, como a Festa de N. S. das Brotas, a Procissão do Senhor Morto, até ao Horto, em Santo Amaro, ou as viagens a aldeias próximas, à Pedra Bolideira e ao Castelo de Monforte
Interessante notar que as descrições do Carnaval em Chaves, conforme colhi aos jornais da época, assemelham-se às de escritores cariocas dos séculos XIX e XX, sobre o Entrudo no Rio de Janeiro. Da mesma forma, os folguedos portugueses de São João, parecem até resgatados da minha infância, em algumas cidades da Amazónia.
O texto sobre a lápide mortuária, que aparece no sonho de Aurora, foi tomado de empréstimo ao seu autor, Mário Fernandes Nazareth. Está esculpido no túmulo da família Bernardes, ao Cemitério de Santa Izabel, em Belém do Pará.
Por fim, um registo pessoal: certa ocasião, por volta dos anos 60, a verdadeira Florinda Bernardes, em uma casinha simples de um subúrbio belenense, ao manifestar sua imensa nostalgia de Portugal, que só a palavra saudade pode definir, olhou para mim e disse – “Quem sabe se tu, ó rapaz, que tanto aprecias viajar, não vais ter algum dia lá em Chaves?” – ao que Aldenora, ao seu lado, acrescentou – “E quem sabe se não serás tu, que tanto gostas de escrever, a contares, um dia, a nossa história?!”.
Rio de Janeiro, junho de 2010.
Raimundo Alberto.
POSSÍVEL LOCAL DA QUINTA GRÃO PARÁ, À RUA DO RAIO X, N° 135,
CF. CROQUIS EM PODER DO AUTOR.(Fotos comparativas):
Frente e lateral direita.
Lateral direita.
FONTES:
Ainda que se trate de uma obra de ficção, relacionarei, dentre as fontes consultadas, as que me foram de suma importância para a feitura do romance, listadas em formato livre, ou seja, fora dos padrões académico-bibliográficos:
- Site / blog www.chaves.blogs.sapo.pt, de Fernando Ribeiro.
- Jornais “O FLAVIENSE” e “A REGIÃO FLAVIENSE” – exemplares esparsos do período 1910-1926, na Biblioteca Municipal de Chaves.
- “ETNOGRAFIA TRANSMONTANA, VOL. I – CRENÇAS E TRADIÇÕES DO BARROSO e VOLUME II – O COMUNITARISMO DE BARROSO”, de António Lourenço Fontes, editados pelo autor, o primeiro em Braga, 1979 (2ª edição) e o outro em Vila Real, 1977.
- “A IGREJA DE SANTA MARIA MAIOR DE CHAVES”, de Francisco Gonçalves Carneiro, edição do autor, Braga, 1979.
- “ESTUDOS FLAVIENSES – 1 – O CICLO DO NATAL NA REGIÃO FLAVIENSE”, com ilustrações de Nadir Afonso e textos de Francisco Gonçalves Carneiro, João da Ribeira, António Granjo, Heitor Moraes da Silva e outros, editado pela Associação Cultural dos Amigos de Chaves, em 1963.
- “CIGANOS – ROM – UM POVO SEM FRONTEIRAS”, de Nelson Pires Filho, Madras Editora Ltda., São Paulo (SP), Brasil, 2005.
- “A TRAJETÓRIA CIGANA”, artigo de Patrícia Terra e a reportagem “MINORIA”, publicados na revista Terceiro Mundo, Brasil, em datas não registadas pelo Autor.
- “MAGIA CIGANA”, artigo de Anastácia Benvinda, no jornal O Povo Cigano, Rio de Janeiro, novembro de 2007.
- “HISTÓRIA DA LOCOMOÇÃO TERRESTRE”, da coleção “A Ciência Ilustrada”, de Erik Nistche, Livraria Morais Editora, 1966.
- “PARÁ, CAPITAL: BELÉM – MEMÓRIA & PESSOAS & COISAS & LOISAS DA CIDADE”, de Haroldo Maranhão, editado pela FUMBEL-Fundação Cultural do Município de Belém, Gráfica Supercores, Belém do Pará, 2000.
- Reportagens sobre BELÉM ANTIGA, publicadas (em datas diversas) nos jornais belenenses O LIBERAL e A PROVÍNCIA DO PARÁ.
- “GUIA VISUAL DE PORTUGAL, MADEIRA E AÇORES”, publicado pela Folha de São Paulo, Brasil (apud Dorling Kindersley Limited, Londres), em 1999.
- “DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA”, versão on-line.
- “DICIONÁRIO PRÁTICO ILUSTRADO LUSO-BRASILEIRO”, publicado por Lello & Irmão – Editores, Porto, 1995.
- “DICIONÁRIO DE PORTUGUÊS - SCHIFAIZFAVOIRE- CRÓNICAS LUSITANAS”, de Mário Prata, Editora Globo, 1993.
- Artigo sobre a “IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES EM PORTUGAL”, do sociólogo Carlos Nunes, publicado no jornal A VOZ DE CHAVES, março de 2010.
- Dados sobre PORTUGAL e outros temas do romance, colhidos à ENCICLOPEDIA BRITÂNICA, Editora Encyclopediae Britannica do Brasil Publicações Ltda., 1981.
- Artigos de autores diversos sobre a Pneumónica, Primeira Guerra Mundial, aparições em Fátima, os Ciganos em Portugal e outros temas abordados na obra, colhidos na Internet, via GOOGLE, WILKIPÉDIA e outros sites de busca e informação.
- Pesquisas de linguagem em obras de autores clássicos e modernos – Eça de Queiroz, Miguel Torga, Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, Ferreira de Castro, José Saramago, Inês Pedrosa, Miguel Sousa Tavares, o flaviense Rogério Ribeiro Gomes e outros.
AGRADECIMENTOS:
- Ao primo Mário Fernandes Nazareth e, em memória, à saudosa M. L., por seus informes essenciais sobre a saga dos Bernardes.
- Ao poeta, escritor, ator e diretor luso-português Jorge Carlos Amaral de Oliveira (Mané do Café) pela inestimável cooperação na revisão desta obra.
- A Fernando D.C. Ribeiro, pelos dados colhidos em seu blog www.chaves.blogs.sapo.pt.
- e por me fazer conhecer, in loco, várias aldeias ao entorno de Chaves, a Pedra Bolideira e o que resta do Castelo de Monforte;
- À senhora Maria Isabel Viçoso, da Galeria Antígona, em Chaves, que me cedeu os livros do admirável escritor Padre Lourenço Fontes, sobre o Barroso; ao Dr. Alfredo Carneiro, pela amável cessão das obras de seu pai Francisco Gonçalves Carneiro; ao Sr. Rogério Ribeiro Gomes, pela oferta de livros de sua autoria; e a Nazareno Tourinho, pelas obras sobre Belém antiga com as quais me obsequiou.
- A todos os gentis e eficientes funcionários da Biblioteca Municipal de Chaves, nos anos de 2006 e 2010.
- À Sra. Carla Sofia Simões Fernandes, do Arquivo da Universidade de Coimbra, pelos informes sobre exames de admissão à Universidade.
- À Fraulein Angelika Arlander, pela foto que fez de mim, junto à estátua de Fernando Pessoa, no Chiado, em março de 2010; e ao fotógrafo Sr. Carlos, de Chaves, pela recuperação de algumas fotos de Portugal que eu julgava deletadas.
- Aos senhores Ilídio, dona Ana, dona Alda e Patrícia, do Hotel Residencial 4 Estações, em Chaves, pelo apoio inestimável durante todo o processo de criação do romance; ao senhor Dinis Ponteira, que me ensinou a distinção entre urzes, giestas, tojos e outras plantas de Trás-os-Montes; ao senhor Amável (que faz jus ao nome) e família, pela acolhida em sua casa, na aldeia de São Lourenço; à dona Maria da Luz e senhor António Miranda Chaves, pelo contacto com outras aldeias do Concelho; à dona Miquelina e aos seus familiares, do Café e Restaurante Rampa; a Hugo Marceneiro e Paulinha Chaves, em seu Bar Bago, próximo à Ponte Romana, bem como a todos os demais participantes das leituras de poesias no Bago, às noites de quartas-feiras (primavera de 2010), pela boa acolhida e incentivos ao projeto do autor; a Eliana de Castela e a Fátima Guabiraba, por algumas observações revisionais.
- A todos os mais, enfim, cuja valiosa colaboração, por lapsos de memória alheios à minha vontade, deixei de registar.
Raimundo Alberto
Nota Final do Blog Chaves
Termina aqui esta longa caminhada de trazer todas as terças-feiras um ou mais capítulos do romance “Chaves D`Aurora”. Sim, já lá vão 4 anos, quando no dia 12 de julho de 2016 publicámos aqui o primeiro capítulo dos 241 capítulos do romance “Chaves D`Aurora”, pouco tempo após ter lido o romance pela primeira vez. Tempo apenas para obter autorização do autor, Raimundo Alberto, para o começar a publicar. Senti então que o deveria partilhar no blog, não só porque o romance se passa em Chaves e envolve a família flaviense “Bernardes” que mesmo com alguma ficção não deixa de ser uma família e uma estória real, mas também porque com ele se faz a História da cidade de Chaves do primeiro quartel do século XX, por sinal rico em acontecimentos, desde a queda da monarquia e a implantação da República, tentativas de derrube da jovem República com a última invasão monárquica de Paiva Couceiro em Chaves, abordagem a António Granjo, a pandemia da Gripe Espanhola tão idêntica à do corona vírus que hoje atravessámos, etc, etc, etc, tudo isso e muito mais do viver em Chaves nos início do século passado. É um romance que fala de nós flavienses e em particular de uma família flaviense regressada do Brasil que aqui vivia bem e feliz, até que um acontecimento transformou as suas vidas e a fez voltar ao Brasil, para nunca mais voltar, a não ser o autor do romance, Raimundo Alberto, descendente dessa família, que já nasceu no Brasil, mas que veio a Chaves para sentir na primeira pessoa a cidade e os locais que os seus antepassados aqui viveram.
E agora é o nosso tempo de agradecer a Raimundo Alberto a gentiliza de nos permitir a publicação total do romance neste blog, mas mais ainda, por ter aceitado o nosso convite para dar continuidade a esta crónica “Chaves D’Aurora”, não com o romance, mas agora com crónicas suas sobre as suas vivências em Chaves e outras temáticas, assim o
Chaves D’Aurora continua na próxima terça-feira,
com o mesmo autor, apenas lhe mudamos o cabeçalho para marcar a diferença sobre o romance, em que deixamos a Aurora mulher, para temos as auroras dos dias de Chaves, e não só, Raimundo Alberto é que sabe, as palavras serão suas. Fica o novo cabeçalho desta crónica, precisamente com uma aurora dos dias de Chaves, com uma imagem tomada desde o alto da serra de Soutelo, com a cidade de Chaves mergulhada no nosso habitual nevoeiro, presença de tantas auroras de Chaves:
Até à próxima aurora, a acontecer aqui na próxima terça-feira.