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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

01
Mar12

Uma Foto, Uma Leitura - Ancorados na História


 

ANCORADOS NA HISTÓRIA

 

Acabei de almoçar no Restaurante do Museu do Vinho do Porto e preparo-me para digerir as delícias gastronómicas numa caminhada pelo Porto viajando pelo sentimento invicto que transpira em cada poro que separa as pedras das casas que desenham estes caminhos. Embora repita este trajeto variadíssimas vezes, ao descer estas ruas estreitas dos caminhos do Porto Romântico, que, em harmonia, serpenteiam os cantos da história desta cidade, até desaguarem nas margens do majestoso Rio Douro, vou tentar gravar na memória para nunca esquecer a beleza desta cidade, aqui, nestes jardins que rodeiam o Museu e nos envolvem de modo a que só tenhamos olhos para ver o Rio Douro a embater calmamente nos muros que protegem as ribeiras.

 

A beleza destas ruelas está na forma como imaginámos o passado, com uns varandins onde quase não cabe uma pessoa, relembro os livros de Júlio Dinis que tão bem descrevem esta zona esquecida da maioria dos portuenses. Com o tempo e o desgaste e esquecimento da História, estas relíquias, que são as marcas do Porto de outros tempos, já não estão como eram retratadas pelo escritor, estão velhas e mal conservadas, mas ainda assim, se fechar os olhos, sinto o cheiro dos vasos cheios de flores nos parapeitos, as janelas de madeira maciça, em forma de portadas altas, abertas  para o sol entrar a ouvir-se a vida e agitação dentro das casas. Sinto-me bem, respiro este ar puro, passeio nestas vielas vazias e imagino-as com mais vida, imagino-as com a azáfama do movimento de antigamente esquecendo o contraste deste deserto onde deambulo nostalgicamente.

 

 

Percorro a calçada num passo cada vez mais rápido, a cada casa, levo-a comigo no imaginário, idealizo uma história para cada uma delas, fantasio que outrora ali se fez uma família, ainda que agora padeça apenas e só de uma memória e tenho a certeza que cada pessoa que encontro gostaria de a contar, não a que criei, mas a verdadeira, e talvez, quem sabe, sejam similares. A passada mantém-se firme e a imaginação fervilha em histórias reais no meu quimérico, até que chego à alfândega. Hesito. Subo em direção ao mercado Ferreira Borges, visito o Palácio da Bolsa, continuo? Decido. Já não vou a um sítio há muito tempo. Sigo o andamento pelo passeio do lado direito, as pedras grandes, gastas e tortas dificultam-me o andar, têm um aspeto escuro, a enquadrar-se bem no negrume desta zona humilde em contraste com as cores e luzes dos bares que destoam e confundem a História.

 

Entro no túnel, ouço o barulho ensurdecedor dos carros que invariavelmente apitam. Ignoro na obstinação que tenho em chegar ao meu destino...faltam poucos metros.

 

A saída do túnel é o fim da minha viagem. Respiro lentamente para recuperar e sentir o cheiro do local. Procuro um local e sento-me a olhar para a frente onde enfrento o painel de azulejos do Mestre Júlio Resende, a “Ribeira Negra”. O poeta Eugénio de Andrade escreveu que esta obra era um "magnificente historial da miséria e da grandeza da população ribeirinha do Porto".

 

Após horas a apreciar algo tão fascinante, com aquele mural a absorver todo o meu raio de visão, não consigo deixar de pensar que a beleza desta parte da cidade se deve a todas aquelas pessoas ali retratadas, ora na ribeira a lavar roupa, ora com cestos na cabeça, ora a ajudar os pescadores. Todas elas estão perpetuadas e ancoradas na História do Porto.

 

 

Fotografia - António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com

Texto - Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com 

 

16
Fev12

Uma Foto, Uma Leitura - O Magusto


 

O MAGUSTO

 

A tarde solarenga quase que engana o frio gélido que entrou de rompante neste outono que apanhou o comboio tarde demais. Há um frio que refresca as nossas caras revitalizando o nosso corpo adormecido pelas roupas pesadas que cobrem os físicos habituados à leveza das roupas de veraneio. À entrada para o carro, deixo o vento acariciar-me a cara, aprecio aquele frio que me obriga a reagir com um aumento da vitalidade, esqueço-me de entrar no veículo ao ver a palete de cores que cobrem as árvores, do amarelo ao castanho, cada folha é uma cor distinta e, todas juntas uma imagem única. A avenida mostra-se nua e sem preconceitos, ladeada e protegida por aquela beleza natural que tanto desvalorizamos.


O Outono chegou há tanto tempo e só hoje percebo, só hoje lhe dou as boas-vindas e, ele, gentilmente, brinda-me com esta paisagem que estava à minha frente desde o início. Os carros, deslocados desta fotografia são ruído de imagem. Entro e arrancámos neste Verão de São Martinho prontos para celebrar o famigerado Magusto junto de amigos. A festa popular já não é a mesma, já não andamos a percorrer as adegas a beber o vinho novo, a comer castanhas, a cantar e a tocar, todos já bem bebidos, chamando a atenção das moças das aldeias. Agora a festa é outra, os tempos mudam e as formas de celebrar também. A nossa foi exemplo disso, todos bem agasalhados sentámo-nos à volta da mesa, esfregámos as mãos para podermos atacar as castanhas e os chouriços, uns mais castanhas outros mais virados para a carne, beber um vinho novo ou velho, branco ou tinto, enquanto outros se dedicavam afincadamente a assar as castanhas que teimavam em soltar umas explosões amigas para animar a malta que via os assadores profissionais cada vez mais sujos, com marcas negras de carvão na cara.

 

 

Naquele ensejo de alegria, a única nuvem que pairava nas nossas cabeças era a grande fumaça que os profissionais das castanhas não conseguiam controlar e, mesmo essa, colava-se ao tecto consciente que estava a mais e deixou-se evaporar no ar puro e gélido que o fim da tarde acentuou. Enquanto as castanhas e os chouriços chegavam à mesa, perdi-me no espaço e no tempo, ora estava sentado a comer e a beber, ora estava a percorrer as tabernas da aldeia, bebendo das canecas vinho tinto e dançava ao ritmo da debandada que me acompanhava. Ora me ria porque uma castanha estoirava e provocava um salto em uníssono na mesa, ora me ria porque estava bem bebido e tentava conquistar uma moçoila que não me passava cartão.

 

Num momento de conforto, tive a certeza de uma coisa, os anos passam, as tradições ajustam-se e os amigos querem-se juntos.

 


Fotografia - António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com

Texto - Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com 

 

09
Fev12

Uma Foto, Uma Leitura - A Esperança na Escuridão


 

 

A ESPERANÇA NA ESCURIDÃO

A pouco e pouco foram-se esquecendo de mim, a cada dia que passava sentia que estava mais longe de tudo e de todos, até que, num ápice, nem sei bem qual foi o momento, colocaram-me neste canto, pintado pela bruma da noite escura e solitária, protegida por uma grade preta de ferro fundido enferrujado, próprio dos encarcerados. Ainda que me tenham logrado, novamente, este local obscuro, mantenho-me viva na minha imortalidade, projetando, até onde me é possível, esta luz que sempre imanará em mim por entre os quadrados desta manta esfarrapada que me cobre.


Aqui neste cubículo claustrofóbico mantenho a minha luz acesa, por vezes, de tanta raiva que sinto, chego a ver a luminosidade no fim do túnel, chego a imaginar que alguém me chama, que alguém precisa de mim, que uma chave preta de ferro fundido abre esta armadura e a projeção da minha claridade abarcará toda uma cidade, limpando todas as nuvens negras que pairam no ar, reabrindo nas pessoas todos aqueles espaços que outrora foram meus, e assim, prosseguindo para mais uma viragem desta jornada nublosa.

 

 

Não posso dizer que fiquei espantada quando dei conta que estava, novamente, renegada a este estado, seria até inocente não o ter percebido, tamanha a minha experiência de vida, mas a crença faz-me sempre pensar que mais tarde ou mais cedo as pessoas pudessem voltar a encontrar-me, evitando mais uma temporada neste local recôndito. A cada dia fui percebendo que a minha importância se reduzia, percebia isso pelos espaços – aqueles onde outrora preenchia e revigorava a alma e a determinação das pessoas – que se fechavam nesta negrura fria que corrói os sonhos, as vontades e a estima do ser humano, deixando essa zona à mercê do desânimo.


A minha existência milenar dá-me a sapiência necessária para esperar pacientemente pela passagem deste estado de imponência, completamente dependente do Homem, que já é apanágio dos momentos mais difíceis da História. Sempre foi assim, desde os tempos das primeiras civilizações quando havia os períodos em que eu mal chegava para responder a todos os apelos, e noutros em que este canto se tornava a minha casa. A minha tarefa nestas situações é manter-me acesa, incandescente, de modo a que aos poucos, pessoa por pessoa se permita começar a sentir que eu lhe faço falta e, à medida que essa condição vai ganhando força, esta grade preta de ferro fundido enferrujado, se abra, lentamente, convidando-me a sair e fazer aquilo que me está destinado secularmente, pois onde há vida há esperança.

 

 


 

Fotografia - António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com

Texto - Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com 

 

02
Fev12

Uma Foto, Uma Leitura - A Rua


 

A RUA


Era noite. Não havia vivalma a passear naquela rua, vestida de paralelos molhados pela chuva que presenteou o dia que passou. Os paralelepípedos de pedra antiga preenchiam aquele espaço vazio de tudo o que seria normal, carros, motas, caixotes do lixo, nada, não há nada a não ser o chão. Era uma estrada onde passou e passa muita gente. Os paralelos, ainda que ordenados e uniformes, estão gastos. Apesar do uso notava-se que foram cuidadosa e meticulosamente colocados um a um, pedra por pedra, com brio e orgulho de quem gosta do que faz. Devem ter uns bons anos, quem sabe se não terão nove séculos. Nesta estrada devem ter passado cavaleiros de arma em riste, as primeiras carruagens e charretes, quem sabe se um Ford T preto não pisou este chão, tão cuidadosa e sofregamente construído, antes dos veículos atuais.


Olhando o chão deste prisma tenho um súbito respeito por ele como nunca me tinha passado pela cabeça. O que já não lhe passou por cima e, mesmo assim, mantém-se firme na sua missão de servir as pessoas que dele precisam. Os riscos que separam cada paralelo são precisos, julgo mesmo que vejo um ângulo de noventa graus em cada cruzamento das linhas. Na altura os homens que fizeram este caminho deviam ter previsto que era preciso cuidar bem do serviço, de modo a que durasse o tempo suficiente para as necessidades das gerações futuras. Esta estrada parece-me única. Está molhada e gasta e, no entanto, está ordenada, bem formada, pronta para ser utilizada e não lhe vislumbro um fim próximo.

 

Estou sozinho. Devia ir para casa descansar, mas não consigo sair desta estrada. Parece que estou preso a ela. Tento saltar para o passeio, mas não consigo. Acho que estou condenado a percorrê-la. Tento ligar o telemóvel, mas está sem rede. Olho para a frente e só vejo a continuação de um amontoado ordenado e simétrico de pedras gastas e brilhantes. Choveu durante o dia. Tudo levaria a crer que entrasse em choque ou cair em desespero, mas há uma calma que se apoderou sobre mim desde que estou nesta estrada, construída há quase nove séculos, por homens, onde já passou por cima dela quase de tudo e, ainda assim, ela está bela, mesmo com o negrume que se apoderou sobre ela desde o anoitecer, a luz dos candeeiros reflete no molhado que as protege e alumia o caminho. É um caminho para a frente, não consigo sequer virar-me. Começo lentamente a caminhar em frente...

Triiiimmmmm


Tocou o despertador. São horas de me levantar e ir trabalhar. Estou estranho, só me vem à cabeça que hoje deveria trabalhar para colocar um paralelo, com cuidado, com mestria e brio, um paralelo novo que pudesse ficar gasto e molhado.

 



Fotografia - António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com
Texto - Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com


26
Jan12

Uma Foto, Uma Leitura - A Árvore que Há em Nós


 

A Árvore que Há em Nós

Acordei no meio deste trilho descalço sobre uma terra húmida e escura a contrastar com um céu azul, limpo e sem nuvens que se sobrepunha às árvores que o ladeavam. A cada passo, a terra mantinha-se escura e húmida contrastando com o céu, ora azul ora a principiar o que parecia ser o início de uma nuvem, provocando-me uma sensação de conforto misturado com uma inquietação insegura.

Observei ao pormenor o que me rodeava e confirmei que os aglomerados de árvores reinavam naquele vale, cada árvore era ela própria; umas de tronco forte, altas, com as ramificações repletas de folhas vivas e macias com a palete de cores a passear-se desde o verde musgo ao castanho escuro; outras de troncos finos e frágeis, quase nuas com ramificações fracas e carentes de folhas, ou mesmo sem uma única folha. Continuei a caminhar, a terra permanecia húmida, escura e fértil, a cada passo o céu mantinha-se na alternância entre os espaços limpos e os nublados, num degradê desde o branco até ao cinzento. A terra começava a chamar por mim, como se estivéssemos ligados por um elo, caminhei até parar num espaço vazio como se me estivesse destinado, agachei-me e sentia terna, delicada e aveludada, o seu cheiro entrou em mim com uma sensação de conforto, a cada minuto que passava estávamos mais ligados.

Havia em mim uma sensação de dever para com ela, mas não conseguia perceber o quê. Ainda que não tivesse uma bússola, algo me encaminhou até aquele lugar, primeiro pelo trilho principal, depois por uma ramificação que esperava por mim. À medida que o tempo passava naquele lugar mágico, percebia que aquele preciso metro quadrado de terra húmida, escura e fértil me estava destinado e, nesse preciso momento em que tudo se tornou mais claro, senti nas minhas mãos uma semente. Com as minhas próprias mãos, abri um buraco e enterrei-a cuidadosamente no meu chão. Depois de garantir que ficou bem plantada, vi-a crescer, primeiro uns ramos finos culminando numa árvore corpulenta e vigorosa. A cada momento do seu crescimento, o meu corpo começava a ficar translúcido, sem perder a sua forma, apenas a vivacidade da sua cor. A árvore continuava a crescer e eu continuava a perder a minha opacidade, cada vez mais sincronizados enquanto um ganhava forma o outro desvanecia, até ao momento em que a ligação se torna mais forte e, lentamente, o meu corpo foi sugado pela árvore, onde, num momento natural, os dois se tornam num só corpo.

 

 

 

Naquele momento, fui humano e fui uma árvore. Observei em detalhe o meu novo estado, olhei para o tronco que de uma pequena raiz se tornou forte e robusto, para os meus ramos principais que se bifurcaram em pequenas ramificações, umas preenchidas de folhas com cores vivas, outras vazias à espera que se abrisse um orifício que possibilitasse o desabrochar de folhas, flores...de vida. A cada auscultação desta carapaça vi uma passagem da minha vida. Nos ramos cobertos de folhas cheias de vivacidade, como um trailer de um filme, vivi na lembrança passagens alegres, momentos felizes, rodeado da família, amigos e todos aqueles com quem vivenciei passagens venturosas. Olhei para cima e percebi que, onde havia mais folhas, o céu era mais limpo, mais azul, mais cristalino, mais quente, não havendo espaço para as nuvens cinzentas. O combustível que alimentava o meu novo corpo, que fazia crescer as folhas vivas retirando as nuvens cinzentas que cobre o meu céu era tudo aquilo que caminhou, até então, na minha vida ao meu lado. Nesse momento, em que tudo se tornou claro, algo mudou na minha nova fisionomia, houve uma agitação interna, queria perceber o que se passava, mas não podia chamar ninguém, não tinha voz, não tinha como o fazer, não sabia se o queria fazer. Após uns minutos de alguma turbulência, a serenidade voltou e a minha também...só que agora estava de novo fora da árvore.

Era de novo só humano, na forma, porque era também árvore. Do mesmo modo que algo me encaminhara até aquele local, fui de novo direcionado pelo mesmo caminho, mas em sentido inverso, voltando ao trilho principal. Passo a passo reparei nas muitas árvores repletas de folhas, troncos fortes cobertas por um céu limpo e quente transmitindo uma sensação de conforto. Queria ficar ali, mas tinha que caminhar, ainda faltava muito para o meu destino final. As árvores nuas estão cobertas de nuvens cinzentas pautando-se por uma sensação de desconforto.

Continuei a caminhar até chegar ao ponto inicial, vi as marcas dos meus pés bem vincada no início desta incursão. Coloquei os pés sobre elas, olhei para o céu e vi-o repartido entre o limpo azul celeste e o cinzento. Fechei os olhos e sorri ao mesmo tempo que abria os ramos para os frondescer.

Fotografia - António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com
Texto - Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com


19
Jan12

Uma Foto, Uma Leitura - Sorriso Escondido


 

 

Sorriso Escondido

 

 

Hoje estou feliz por estar vivo nesta terra longínqua, no tempo e na história, agora acompanhada por este silêncio ensurdecedor que envolve o ar frio, que ainda nos visita todos os anos, preenchendo o vazio deste mundo, que segue a sua caminhada da vida cada vez mais despido.

 

Gosto de acordar bem cedo; entrar na cozinha escura, fria e despida, de preparar o café, arrancar um pedaço de pão ou de broa – aqui a gente gosta dela um pouco azeda – e pousar-lhe um pedaço de um enchido ou queijo que corto com a minha navalha; de descer a nossa única ruela, cheia de paralelos irregulares e alteados, com as ervas daninhas a brotarem das frinchas, saborear este cheiro puro com que só a natureza nos pode brindar, atingindo o seu ponto alto no princípio do dia, com esta frescura matinal que acaricia o meu rosto completando o meu despertar. Gosto desta rotina diária. Primeiro, visito os animais; o gado e as cabras, coloco-os a pastarem no campo verde ladeado de árvores sobrepostas que iniciam o vale, observo-os um a um, agora são poucos, mas mesmo assim delicio-me com cada gesto lento e suave que cada um deles, ao seu jeito, teimosamente repete dia após dia; sigo para o galinheiro, protegido por arame colocado sobre uns paus que serve de grade contra as raposas traiçoeiras que surgem pela noite dentro, dou-lhes o milho que plantei e colhi e deixo-as na sua vida guardadas pelo galo que se empertiga com a minha presença; sigo para a horta onde, com esta sachola, companheira de vida, trato de verificar se está tudoem ordem. Gostode mexer nesta terra escura e fértil, enterrar estas mãos, sentir-lhe o frio e a humidade, deixando que se entranhe nesta pele grossa, orgulhosamente calejadas, rasgada pelas rugas fundas que marcam no meu corpo cada momento que vivi e que traçam as linhas da minha memória.

 

 

O Sol na vertical lembra-me de que são horas de almoçar, de comer uma gamela de sopa com legumes da nossa horta e aquecer-me com um copo de vinho das nossas videiras. Outrora havia mais que fazer...hoje não. Volto ao gado e às cabras para as recolher, vejo as galinhas e recolho os ovos e, por fim, volto à horta para verificar se nenhum bicho me estragou os regos das plantações.

 

No regresso, passeio-me por esta aldeia de casas de pedras gastas pelo tempo, sobrepostas de forma desproporcionada, escuras, condicentes com as cores da aldeia, cheias de musgo e humidade, a maior parte delas vazias e esquecidas...repletas de histórias, de pessoas que apenas vivem na nossa lembrança. Passo pelo tanque, onde as poucas mulheres da aldeia esfregam as suas roupas com as mãos ao som de cantorias que conduzem os pássaros a acompanhá-las com os seus piosem harmonia. Visitoos meus poucos compadres, para colocarmos a conversa em dia, saber das notícias da terra.

 

Após este belíssimo dia, encosto-me ao muro do campo verde onde as cabras e o gado se deliciaram, olho em volta para esta aldeia e, relaxado, deixo-me a saborear um momento de felicidade, agarrado ao cabo desta sachola, cujas ranhuras abertas pelo tempo têm uma história em segredo com as rugas penetrantes e disformes destas mãos de trabalho, que singelamente se entrelaçam numa união pessoal e intransmissível e que guardo neste sorriso escondido.

 

Fotografia - António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com

Texto - Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com   

 

 

12
Jan12

Uma Foto, Uma Leitura - À Espera da Noite


 

 

 

À Espera da Noite


O sol nasceu radiante e lentamente desvaneceu, cedo demais, no decorrer deste dia que é igual a todos os outros, iniciando nos presentes aquilo que parece ser um desconforto indiferente, contínuo e habitual.


Encostadas naquelas paredes de pedra granítica, frias e agrestes, marcadas pelas linhas brancas, ramificações de uma vida, cada uma das habitantes de mais um local, perdido no espaço e no tempo, do nosso Portugal rural, vive o seu dia. Se a primeira olha o horizonte sem nenhuma expectativa que não seja a de esperar pelo dia de amanhã, voltar a sentar-se naquele banco de madeira gasto, esperar que o sol volte a fugir e, de mãos agarradas ao pau que lhe faz companhia, esperar por outro amanhã; a segunda, de lenço na cabeça e olhos postos no chão, parece recuperar fôlego para mais um dia, que começará bem cedo a tratar dos animais e da horta, para mais tarde, quando o sol se for, voltar a este largo, colocar novamente o seu olhar no chão e recuperar forças.


As duas senhoras que povoam, sozinhas, o largo daquela aldeia, no mesmo tempo e local, induzem diferentes estados de alma. Uma olha em frente, de cabeça erguida, porque ainda aqui está, ainda é tudo o que foi, só o deixará de ser quando o sol se puser e aquele banco de madeira que a acompanha estiver vazio. Hoje, ainda ali está, a olhar em frente, a viver pelas memórias de uma vida que tal como o sol nasce fulgurante e se põe fraco, hoje, pode estar a relembrar o dia em que a deixaram conduzir as cabras pela primeira vez, a sua saudosa primeira pastagem, marcada por aquele momento onde se deixou levar pela luxúria, deitando-se debaixo daquela árvore grande que produzia uma sombra que lhe cobria todo o seu corpo jovem e firme e, sonhou tudo o que uma rapariga poderia sonhar...até que as cabras sinalizassem, com os guinchos apeados nos pescoços, que era tempo de voltar para a realidade. A outra, que também ainda ali está, centra o seu olhar no chão, vê a calçada do largo, lembra nostalgicamente o momento em que os homens a colocaram, pedra por pedra, a festa que se seguiu e o orgulho da novidade que se prolongou por tempo indefinido, sem que essa lembrança lhe provoque qualquer reação que não seja...continuar viva, cansada e cabisbaixa.


Naquele largo de uma aldeia perdida nas Terras do Barroso, estão, hoje, duas senhoras, que tanto há o que as distingue como aquilo que as une. Cada uma delas vive o seu dia, mas de certo que aquelas mãos juntas, a esfregarem-se lentamente, o negro das roupas e o cansaço dos corpos lembram em uníssono os dias de sol radiante em que aquelas terras, agora perdidas, estavam cheias de pessoas, havia mais vida para além daquele esperar por mais um dia igual a todos os seguintes em que o sol se põe e parte sincronizado com a chegada da noite escura, fria e sozinha.

 



Fotografia de António Tedim - http://www.antoniotedim.blogspot.com/
Texto de Rui Santos - http://www.cognitare.blogspot.com/



12
Jan12

Mais uma crónica às quintas.


Tal como já tinha anunciado ontem, às quintas-feiras passamos a ter aqui uma nova crónica feita a duas mãos, com fotografia de António Tedim e texto de Rui Santos, ambos do Porto, o primeiro é uma apaixonado pela fotografia o segundo pela escrita. Uma união perfeita na arte de blogar, tal como o fazem nos seus blogs individualmente ou nesta crónica conjunta que a partir de hoje também será aqui partilhada e que nos chega pelas mãos do António Tedim, que tivemos a sorte de conhecer num dos nossos (Lumbudus) encontros de fotógrafos amadores, presença que tem repetido sempre que pode. Membro da Portografia (Associação de Fotografia do Porto) .

“(…) A fotografia para mim é liberdade, é um testemunho e um modo de ver a vida. (…)”, diz António Tedim na apresentação do seu blog. Pois vai ser isso mesmo que vai acontecer aqui, às quintas-feiras, às 17H30, com as suas imagens e as palavras feitas à medida de Rui Santos. Da minha parte é um prazer tê-los neste convívio do Blog Chaves.

Já a seguir a primeira crónica que será publicada com o título original de “ UMA FOTO, UMA LEITURA”.

Até já.

 



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