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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

20
Fev18

Cidade de Chaves - O tempo das coisas


1600-(36230)

 

O tempo das coisas

 

Durante muito tempo conheci este rio sem ninguém o contrariar. Deixava-se levar pela natureza. Enchia, avolumava-se e ganhava velocidade quando a natureza assim o queria, ou então,  esvaziava, pasmava e ficava reduzido ao mínimo para se manter vivo quando assim tinha de ser. Durante anos foi assim até que o começaram a contrariar, como se a natureza se pudesse contrariar… e às vezes até pode, imagens como a que hoje vos deixo, tomada em 2013,  fazem-nos acreditar que é possível, mas com o tempo também fui perdendo a inocência e aprendi que o acreditar anda quase sempre de mão dada com o sonhar.

 

Hoje quando revi esta imagem, apercebi-me como o acreditar é apenas um momento, um instante em que a natureza nos tira da realidade. Hoje quando revi esta imagem, instintivamente peguei num dos livros que sempre me acompanham, abri-o e parei neste texto:

 

A PRESSÃO DOS MORTOS

 

Fechas a mala do carro cheia de bagagem. E de súbito apercebes-te de que não é novo o gesto. Muitas vezes o viste repetir. A muitas horas do dia, mas nunca como num fim de tarde. Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhe um ar de miragem. Fecha-se o tampo do caixão sobre a cara conhecida para todo o sempre. Nem se levanta o problema da eternidade. Esta terra é que tu amaste com todas as contrariedades e os problemas quotidianos. Amaste homens que por vezes talvez te tenham dado na cara e eram deliciosamente imperfeitos como tu. E tiveste de te despedir deles. Já não eram daqui. Já tinham problemas de mortos. Já se falava deles no imperfeito e não no presente. Mudou um simples tempo de verbo e tudo mudou. Um último olhar a essa caixa de mau gosto. Gostarias de atirar um torrão, como em criança, para esconjurar os maus sonhos. Mas falta-te a inocência. Decisivamente, tens de fechar com força a mala do carro. E pedes que te ponham os pneus à pressão 22. A pressão dos mortos.

 

Ruy Belo in “homem de palavras

 

 

20
Jul17

Where’s Wally? ou a força da palavra…


1600-(33704)

 

Logo após obtermos uma imagem, ainda no calor do momento, se a observarmos, apenas somos tocados pela sensação do momento que nos levou a obtê-la.  Se a deixarmos descansar uma temporada, um, dois ou mais anos, quando olhamos de novo para ela, já longe do calor do momento, vêm ao de cima outros pormenores que então nos escaparam. Foi o que aconteceu com a imagem de hoje, que ao reparar bem nela, vi o Wally flaviense e confirmei aquilo que por aí se diz – é mesmo verdade, onde há um aglomerado de gente, esta mulher está sempre lá para a fotografia… mas deixando o Wally em paz, neste caso uma wally, vamos ao que interessa nesta esta imagem, na coisa primeira, naquilo que  despertou em mim.

 

Pois quando agora revi esta imagem,  a primeira coisa que me veio à cabeça foi um texto que li há coisa de trinta anos atrás e que me ficou sempre a bailar na memória, um pequeno texto poético de Ruy Belo, que hoje quero partilhar convosco:

 

 

Serviço de Abastecimento da Palavra ao País

 

Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. Vi que era pão que procuravam ou que não era pão que procuravam. Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro, mar, criança, rapariga, mulher. A cada palavra minha eu ia-me esvaziando. Era a vida, a minha vida que e me ia. Eles ficaram incendiados. Nunca tinham pensado que se pudesse comunicar assim coisas próprias. Vieram mais, muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, deus. E caí redondo no chão. Naquele dia ficou instituído o serviço de abastecimento da palavra ao país. Ainda vieram ter comigo, dizendo para eu arranjar outra designação, que aquelas iniciais não podiam ser. Mas eu já habitava plenamente a minha morte, meu planeta desde tenra idade.

Ruy Belo in “homem de palavra[s]

 

E com esta me vou. Até amanhã!

 

 

08
Ago12

As Grandes Insubmissões


 

 

Tal como das palavras fazemos imagens, também as imagens sugerem palavras. No registo do momento que hoje vos deixo vieram-me logo à memória recordações de tempos antigos do liceu e umas palavras que em tempo li de Ruy Belo. Fui em busca delas e é com elas que dou palavras à imagem de hoje.

 

 

AS GRANDES INSUBMISSÕES

 

As grandes insubmissões, sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida, lembro duas.

 

Começava um ano lectivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da piedade. Cheguei de férias na minha terra e vi o vítor a andar de carrocel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contando: vinte. O vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O vitor era capaz de gastar vinte escudos no carrocel.

 

Outra grande insubmissão foi a do maurício, também nos primeiros anos do liceu.

 

Um dia o maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar a bola ao cesto.

 

Tocou para a aula das dez.

 

- Ó maurício, não vens à aula?

 

O maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.

 

Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saímos e logo ouvíamos a bola contra tabela. O maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.

 

Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.

 

Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.

 

In “ homem de palavra[s] – Ruy Belo

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