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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

25
Set15

Discursos Sobre a Cidade - Por Francisco Chaves de Melo


discursos-chico

 

“Impulsos secretos da vida”

 

Chega o Outono! Por cá deve ser tempo farto, tempo de colheitas. Também deve ser tempo de prazeres ancestrais.

 

Ao contrário do Verão, que pertence ao litoral, ao mar, o Outono é do interior, da montanha!

 

Assim, porque me falta o engenho para expressar o profundo apego ao Outono, partilho uma leitura que, essa sim, o enaltece. Que exuma o prazer e o sentir próprio desta estação na nossa terra.

 

1600-miradouro (80)

(…) Na caça também cumprimos certas regras cava­lheirescas e práticas, respeitamos os animais selvagens, na medida em que as condições o exigem numa determinada região, mas a caça ainda representa um sacrifício, um vestígio deformado e ritual dum acto reli­gioso ancestral que é dos tempos do nascimento do homem. Porque não é verdade que o caçador mata para obter a presa. Nunca tinha matado só por isso, nem sequer nos tempos primitivos, quando isso fora uma das poucas possibilidades de se alimentar. A caça era sempre acompanhada por um ritual, ritual tribal e religioso. O bom caçador era sempre o primeiro homem da tribo, uma espécie de sacerdote. Naturalmente, tudo isso se desvaneceu com o passar do tempo. Mas os rituais, numa forma mais enfraquecida, permaneceram. Talvez nunca na minha vida gostasse tanto de nada, como dessas madrugadas, das manhãs de caça. Uma pessoa acorda quando ainda é noite, veste-se de uma maneira especial, de maneira diferente dos dias restantes, põe rou­pas práticas e cuidadosamente escolhidas, toma o pequeno-almoço de outra forma, fortalece o seu coração com aguardente e come um pouco de carne fria no quarto iluminado por uma lanterna. Gostava do cheiro das roupas de caça, o pano estava impregnado do aroma da floresta, da folhagem, do ar e do sangue derramado, porque se levavam as aves abatidas atadas à cintura e o sangue sujava a jaqueta de caça. Mas o sangue é sujidade?... Não creio. É a substância mais nobre que existe no mundo e quando o homem queria dizer ao seu Deus algo importante, algo inexprimível, fazia-o sempre oferecendo um sacrifício de sangue. Também gostava do cheiro a metal e a óleo da espingarda, o cheiro a ranço e a cru das peças do couro. Gostava disso tudo - diz quase com vergonha, como um velho que confessa uma fraqueza. - E depois sais da casa para o pátio, os teus companheiros de caça já estão à tua espera, o sol ainda não nasceu, o guarda-caça segura os cães pela trela e relata em voz baixa os acontecimentos da noite. Sobes para a carruagem e partes. A paisagem começa a despertar, a floresta estica-se, como se esfregasse os olhos com movimentos sonolentos. Tudo exala um aroma tão puro, como se regressasses a uma outra pátria que foi a tua pátria no início da vida e das coisas. Depois a carruagem pára à beira da floresta, desces, o teu guarda-caça e o cão acompanham-te em silêncio. O ruído da folhagem húmida é perceptível apenas debaixo da sola das tuas botas. As trilhas estão cheias de pegadas de animais. E tudo começa a viver à tua volta: a luz percorre o céu sobre a floresta como se um engenho secreto, o mecanismo misterioso do teatro do mundo, entrasse em funcionamento. Os pássaros também se põem cantar, um veado atravessa o atalho, longe, a trezentos passos de distância, e tu escondes-te entre a folhagem densa e ficas atento. Vieste com o cão, hoje não vais à espreita de veado... O animal pára, não vê, não cheira nada, porque o vento sopra de frente, porém sabe que o seu destino é iminente; ergue a cabeça, vira o pescoço tenro, o seu corpo fica tenso, durante alguns instantes mantém-se diante de ti, numa postura magnífica, imóvel, como um homem que estaca desamparado perante o seu destino, impotente, porque sabe que o destino não é fortuito, nem um acidente, mas a consequência natural de circunstância correlacionadas, imprevisíveis e dificilmente inteligíveis. E nesse momento lamentas não ter trazido a tua arma de fogo. Tu também te deténs, no meio da folhagem densa, estás dependente nesse instante, tu, o caçador. E sentes na mão o tremor que é tão antigo como o homem, a disposição para matar, essa atracção proibida, a paixão que é mais forte que tudo o resto, o impulso que não é bom, nem é mau mas é um dos impulsos secretos da vida: ser mais forte que o outro, mais hábil, ser um mestre, não falhar. É isso que sente o leopardo quando se prepara para saltar, a serpente quando se ergue entre as rochas, o abutre quando se lança de mil metros de altura, e o homem quando contempla a sua vítima. (…) in Sándor Márai – As Velas ardem até ao fim.

 

Francisco Chaves de Melo

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