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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

30
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA) - Último capítulo


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

20

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

CT_-_Cópia.jpg

 

Por Portugal

 

Tendo passado à reserva, por ter mais de 35 anos, fui colocado como advogado oficioso no Tribunal de Guerra que funciona na frente e que está instalado em Saint-Quentin, uma pequena localidade dos arredores de Airesâr-la-Lys.

 

Aboletaram-me numa ferme, onde me deram um pequeno quarto, cuja única janela deita para a linha de batalha. A esta hora em que me disponho a escrever ao povo português, terminada a minha acção militar, dando-lhe conta do que vi e do que aprendi, como é minha obrigação de patriota, o canhão troa para os lados da Bélgica. Há três dias que, sem um minuto de intervalo, se ouve para êsses lados o fogo rolante.

 

Sobre o modesto fogão do meu quarto, entre duas imagens de santos, metidas em rodomas de vidro, há um relógio. Alêm do trovão rolante, só a voz desta língua do tempo chega aos meus ouvidos.

 

Rascanho da alma toda a espécie de sentimento impuro que a injustiça dos homens ou a adversidade dos factos haja gerado dentro de mim. Liberto-me de toda a espécie de prejuízo que me prenda a sistemas. Desfaço-me de toda a espécie de compromissos que me ligue a partidos ou a pessoas. E procuro conseguir que as palavras e os juízos me corram da pena, tão natural e verdadeiramente como a luz corre duma chama.

 

Desejarei que as minhas palavras toquem o coração do povo, porque desejo medir a realidade, como aquela pêndula vai medindo o presente, como o canhão, ao longe, vai medindo o futuro.

 

Tropas Portuguesas desfilando sob o Arco do Triunfo.jpg

 

Eis o que tenho a dizer:

 

Emquanto os sistemas entre os povos não passarem do dominio do comércio, das letras e da diplomacia, e os sistemas de ordenação das sociedades se concretisarem em formulas políticas mais ou menos amplas, a guerra será sempre a condição do mundo. A victoria é que sancionará o direito. O canhão será a voz que se fará ouvir mais alto.

 

Creio num destino melhor para a humanidade, mas convenço-me de que uma era de definitiva paz e perene abundância será por muito tempo, porventura por seculos de seculos, uma generosa conceção de poetas e filósofos.

 

Creio na victoria do povo. Creio que o rebanho imenso, que pastores cúpidos têem conduzido através as idades à morte, tomará conta dos seus destinos. Os caminhos da vida social vão-se alargando e com os tempos a existência sobre este pobre planeta devastado será um pouco mais fecunda e mais feliz.

 

Mas está ainda por descobrir o estado social da perfeição e por mais que se devasse o horizonte não se vê o braço heróico que sustenha o facho que há de guiar as nações à pleniventura. A Revolução Russa é ainda, e sempre, a guerra. Lenine é um estadista tartaro que conhece Karl Marx.

 

Por cada guerra, é certo, o povo, ao mesmo tempo que vai juncando a estrada de cadáveres, vai dando mais um passo para a sua libertação. Por cada revolução, é certo, vai-se criando uma nova ordem de idéas, que se refecte e fixa nas leis como mais uma conquista de liberdade e de justiça. Mas emquanto o direito derivar da fôrça, quer esta seja detida pelas antigas classes priveligiadas, por meio de regimes pessoais ou parlamentares, quer seja detida pelo operariado, por meio de ditaduras ou pelo govêrno das classes, o povo será sempre a fácil presa da tirania.

 

Os exércitos são necessários, porque a guerra perdurará. Só pela fôrça os povos poderão defender aquele conjunto de liberdades e direitos que à custa de torrentes de sangue, e de eras de sofrimentos, ganharam e houveram, constituindo hoje o principal património da civilização.

 

Passou o tempo dos exércitos permanentes. Já não basta a cada nação um certo número de milhares de homens encarregados de velar pela sua independência e segurança. Para uma nação se defender das tentativas de agressão e de rapina dos povos visinhos, não bastam os velhos organismos militares, constituidos por profissionais. Esta guerra diz-nos que se torna absolutamente indispensável, para a vida livre dum povo, organizar as indústrias, de modo a produzir-se um material de guerra inexgotavel, e igualmente indispensável se torna o alistamento nas fileiras de todos os homens válidos, de modo a conseguir-se, nos dois sentidos da extensão e da intensidade, o maior esfôrço útil no menor prazo de tempo. Donde resulta que a soma de sacrifícios em vidas e em dinheiro será cada vez maior, e que, em vez de chegarmos ao desarmamento, caminhamos para o armamento geral.

 

Não é adecuada à nossa situação a palavra — militarismo. Esta palavra subintende uma institùição fechada, um colegio de servidores da violência, em que os seus membros teem direitos e deveres especiais e sôbre os quaes recai a responsabilidade do triunfo ou da derrota — uma espécie de casta destinada a intervir nas grandes ocasiões, quebrando ou fundindo o ataque ou a resistência do inimigo com o prestigio da sua espada e a tradição da sua heroicidade.

 

E' às massas que hoje se pede a victoria, e é às fabricas que hoje se exige a sua preparação.

 

Cada povo deve bastar-se a si próprio. O povo que se não bastar a si próprio, ou arrastará uma existência de condenado, vivendo da humilhação e da miséria, ou gravitará num sistema de alianças, que não será mais do que uma escravidão simulada. O seu comércio, a sua indústria, a sua sciência, a sua literatura, passarão para as mãos do povo que dominar êsse sistema, e a palavra independência soará a ôco, perdendo-se nos corações a fé no futuro e o culto do passado.

 

Esta guerra deu aos povos pequenos os seus grandes meios de defeza — a trincheira e o submarino. Mais do que todos os discursos dos estadistas que prégam a sociedade das nações e afirmam o direito de cada povo se desenvolver livremente, conforme a sua idiosincracia, a sua civilização e a sua história — o morteiro de trincheira e o submarino de alto mar outorgaram às pequenas nacionalidades a sua carta de alforria.

 

Não sei o que o futuro reserva à minha Pátria. Se creio que os povos encontrarão um dia uma fórmula que os apróxime directamente e dispense uma diplomacia secreta, por uma internacionalização cada vez maior do pensamento, por um estreitamento cada vez mais íntimo das relações entre os trabalhadores, creio também que as Patrias viverão eternamente, elementos necessários como são do progresso e do equilíbrio sociais. No presente estado de coisas, as Pátrias são a própria condição da vida social. Por isso todos os cidadãos devem ser implacavelmente adstritos ao serviço da sua defeza e ao serviço do seu ideal.

 

 

Eu amo a minha Pátria, e sou intolerante — confesso-o altivamente — para com todas as teorias e todos os actos das quais possa rezultar a sua fraqueza e o seu desprestígio. A grandeza do seu passado enche de orgulho e de confiança todo o meu ser.

 

A teoria das nações moribundas fez o seu tempo. As próprias nações mortas, como a Polónia, erguem-se dos seus túmulos.

 

Portugueses, é preciso crêr! A crença num outro mundo é só própria do que são incapazes de rasgar neste um caminho luminoso e largo por onde os olhos se estendam sem medo a Deus, onde os pés se firmem sem medo ao inferno. Mas qual é o homem, digno de viver, que não tem a realizar na vida uma missão? E qual é o povo, digno de si próprio, que não tem o seu destino a cumprir?

 

Eu tenho fé na minha Pátria, e quero, porisso, que a minha Pátria tenha à sua disposição a fôrça indispensável ao inteiro cumprimento da sua missão civilizadora. Quero um exercito e uma armada, que sejam as chaves da sua defeza e os instrumentos convenientes e eficazes para a realização completa dos seus destinos no mar e na terra.

 

Um país banhado pelo Oceano tem as portas abertas para o mundo, para a glória e para a riqueza — e já demonstrámos que conhecemos os caminhos do mar.

 

Todos os povos, como todos os indivíduos, devem estar preparados para defender os seus direitos e as suas liberdades: nenhum povo, como nenhum indivíduo, deve hesitar em sair à arena sempre que os seus direitos sejam portergados ou que as suas liberdades sejam ameaçadas.

 

A lição eterna, que fulgura através as idades, é a de que os povos que amoleçam numa paz, que não seja o fruto opimo dos seus esforços de cada hora e das suas energias aproveitadas ao máximo em cada minuto, e seja o rezultado duma existência de humilhações e de pavores, de uma política de hesitações e de fraquezas, deixarão embotar as suas virtudes no mais torpe comodismo e deixarão que os apetites mais grosseiros tomem o logar aos sentimentos de abnegação e de sacrifício.

 

Nas nações, como nos cidadãos, tem de haver uma conciência recta. Os cidadãos não devem limitar-se a formar juízos, embora cheios de imparcialidade e de justiça: devem descer à praça publica a afirmar o seu protesto contra a violação da lei e o esmagamento da inocência. Só tem direito a ser possuidor de idéas quem tenha uma boca para as prégar e um pulso para as defender. Do mesmo modo as nações não devem limitar-se a conceder a um povo espesinhado sob a pata do opressor algumas palavras de simpatia: teem o dever de lutar, de batalhar pelo restabelecimento do direito.

 

 

As nações, como os indivíduos, devem ter uma alma alevantada que não desanime perante as dificuldades nem recue perante os obstáculos.

 

Contestamos que a guerra seja a grande escola de sacrifício, porque nunca foi uma fonte de energia. A guerra declara-se quando o sentimento ofensivo dum povo atingiu o seu momento explosivo. E' na paz que a conciência patriótica encontra os seus motivos e os seus impulsos; é na paz que as energias nacionais se ordenam no sentido de condicionar a victoria. Porisso, os povos que não se prepararam na paz não podem sentir a guerra. A guerra é o entusiasmo dos corações acesos pela paixão da pátria; a guerra é o último período de uma época de alta cultura nacional, em que se infiltra nas massas o sentimento da superioridade da raça. As nações que não se exaltaram no amor da Pátria durante a paz, não podem marchar para a guerra, com êsse ranger de dentes que é a vontade de vencer, com êsse sereno passo que dá a certeza de se cumprir um alto dever.

 

Esta é a razão por que Portugal não sentiu a guerra. Para uns a ida à França foi um expediente dum partido, que queria salvar-se da perda iminente; para outros foi quasi uma blague. Muitos anos duma paz podre deixaram-nos apagados numa vida vegetativa, propícia ao desenvolvimento das facções políticas e obliteradora dos sentimentos fortes. O interesse de dinastia prevaleceu sobre o interesse geral, no tempo da monarquia; o espírito de seita prevaleceu sôbre o espírito nacional, no tempo da República. As questões cuja resolução era necessária ao bem do Estado foram postas de parte a favor das estereis disputas de palavras entre os intelectuais ou a favor dos instintos criminosos das harpias do poder. As narrativas heroicas das descobertas e conquistas fôram esquecidas pelas façanhas dos galopins eleitorais ou pelos crimes impunes das chafaricas secretas. O culto dos grandes homens foi substituído pela adoração extactica dos messias da governança.

 

E' preciso que volte a nós a alma heróica dos descobridores e navegantes, dos fronteiros e dos conquistadores, que levavam no peito, como um sol, a Pátria, e levavam ao alto, como uma espada, a cruz.

 

A proclamação da Republica foi um supremo instante da lucidez popular e a ida para a guerra foi o supremo instante, o unico instante, em que os nossos homens publicos tiveram a compreensão do interesse e do dever nacionaes. Sem a Republica, a nação teria cahido embrulhada no manto régio, ou aos pés de Affonso XIII, ou nos corredores do Foreing-Ofice. Sem a participação na guerra, perderíamos as colonias, e passaríamos a levar uma vida de mendigos, tateando na escuridão uma parede para guiar os passos incertos, buscando em vão na caminhada lugubre um tecto sob que descançar a cabeça.

 

A guerra não foi, em parte alguma do mundo, obra de um homem ou dum partido. A guerra foi a inevitável consequência dum estado social precário e de um sistema politico instável.

 

O que fica são os factos.

 

O facto que fica é que Portugal justificou a sua existência marchando para os campos de batalha em defeza do direito e em cumprimento dos seus tratados.

 

Antes de os Estados Unidos entrarem na guerra em prol da liberdade dos povos, pondo na balança todo o peso do seu oiro e todo o valor dos seus admiráveis soldados, houve um pequeno povo, de minguados recursos em dinheiro, em material e em homens, que nem perante a ruina certa, a ameaça de perder o seu império colonial e o risco da propria independência, deixou de cumprir o seu dever. Esse pequeno povo foi Portugal. A atual geração não podia legar aos vindouros nem maior titulo de gloria nem mais justo motivo de orgulho.

 

Quando os anos da guerra se projetarem nitidamente no horisonte do passado, a Historia, na visão panoramica dos factos, nem sequer atentará nas discussões que se teem travado sobre a necessidade ou desnecessidade, sobre a conveniência ou inconveniência da nossa participação armada na Flandres. Tudo isso que se tem escrito não é mais do que um alarido feito por políticos, entregues às suas paixões, ou por jornalistas que escrevem por oficio ou por vicio. Esse alarido nunca chegará aos ouvidos da Historia.

 

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Pintura de Sousa Lopes

 

Conta-se de um oficial francez que, tendo ficado feridos ou mortos sob um bombardeamento quasi todos os seus homens, e tendo os poucos ilesos procurado na fuga um refugio ao furacão, ao ver a primeira vaga inimiga lançar-se ao assalto, trepára ao parapeito, e, na transfiguração épica que dão as grandes horas, comandara:

 

— Mortos, a pé!

 

E os feridos levantaram-se, as metralhadoras começaram a crepitar e o assalto foi repelido.

 

Parece haver muitos portuguezes que trazem dentro de si os corações mortos. A nossa vida parece estar só nos nossos olhos para nos odiarmos, e nos nossos lábios para nos caluniarmos.

 

Aos homens que na Africa e na Flandres afrontaram a morte compete saltar para o parapeito e gritar a esses corações:

 

— Mortos, a pé!

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António Granjo 

27-12-1881 * 19-10-21

 

FIM

 

 

 

23
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

19

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

A rendição

 

O batalhão estava nas trincheiras havia perto de quatro mezes. Logo no fim do primeiro mez se começou a falar na rendição. Mas os mezes iam passando, e aquela vida gasta do apoio para a primeira linha, da primeira linha para o apoio, entre tectos esburacados e entre sacos de terra, ia-se prolongando indefinidamente. Os batalhões inglezes tinham sido rendidos. Já, na nossa frente, os inimigos tinham sido rendidos duas ou trez vezes. Nós continuavamos, como forçados da guerra, amontoados dentro dos abrigos e das trincheiras — carne pôdre atirada para o guano.

 

O general dispuzera que as penas correcionaes se cumprissem na primeira linha. Daqui resultava que um soldado a quem faltava um botão era condenado à morte, da qual só escapava pela misericórdia das balas ou pelo perdão dos morteiros. Entretanto, aqueles que tinham de responder em conselho de guerra por cobardia ou por traição, vinham para a retaguarda até serem julgados, com as vidinhas garantidas até ao julgamento. Esta sábia disposição do comando déra já logar ás coisas mais espantosas.

 

Estaria porventura todo o batalhão condenado a pena correcional e a ficar nas trincheiras até desaparecer o ultimo homem?

 

Ia-se fazendo nas almas essa impressão que produz um crepusculo continuo. Abandonavam-se os soldados á sorte, como aquele sol doente se abandonava à terra. Para os manter vigilantes nos postos, era preciso rondal-os a todo o instante. Um posto de fuzileiros tinha-se deixado surpreender e uma patrulha inimiga levara-lhe dois homens, depois de ter matado o cabo.

 

Era no dia seguinte, conforme a nota do comando, que se fazia a rendição. O batalhão, segundo se dizia, iria para Mametz. A marcha far-se-hia a pé até Paradis, onde esperariamos os caminhões que nos levariam a Mametz, para alêm de Ayre-sûr-la-Lys.

 

Nessa ultima semana de trincheiras pertencia-me ficar na reserva. Mas como um oficial de outra companhia fôra chamado não sei para que serviço, eu, que era o oficial mais moderno, fôra nomeado para o substituir.

 

 A minha ultima ronda era á meia noite. Segui com as ordenanças para a primeira linha.

 

Na escuridão as aguas dos drenos escorriam como tranças de sombra. Na Garden Trench um troço de pioneiros compunha um travez destruído na vespera por uma granada pezada. Dois soldados enchiam os sacos de terra, emquanto outros dois, de pé sobre a banqueta, os ajustavam e batiam. Nos postos da segunda linha uma das sentinelas vigiava a campanha, com a cabeça enterrada sobre os sacos, emquanto a outra, sentada, dormitava com a espingarda entre os joelhos. Sucediam-se os foguetes. Para Armentières o canhão troava ininterruptamente, incendiando o horisonte. Um foguete de suspensão ficou pairando no ar, como uma pomba luminosa, e foi descendo lentamente, deixando uma claridade de neve sobre as trincheiras.

 

No primeiro posto de granadeiros, os soldados cochichavam. Viam-se os cunhetes de granadas acumulados a um canto. Os soldados não resistiam à tentação de mandarem uma salva ao inimigo neste ultimo dia de trincheiras, na hora que precedesse a rendição. Chamei os sargentos e tornei-os responsaveis pela boa disciplina da linha. Eles bem sabiam que a retaliação não se faria esperar, desabando as descargas de morteiros sobre o batalhão que nos rendesse. Denunciava-se a rendição e porventura as estradas e as trincheiras de comunicação seriam batidas, apanhando-nos na marcha para o acantonamento. Fazia-se um dispendio inutil e criminoso de munições e praticava-se um acto de cobardia, visto que não seriamos nós a sentir a paga da agressão. Dei instruções rigorosas aos cabos que comandavam os postos para fazerem remover para os depósitos os respectivos cunhetes e fui percorrendo a linha. Num posto de fuzileiros, onde a Terra de Ninguém começava a estreitar até a trincheira inimiga ficar a pouco mais de vinte metros defronte do Lansdowon Post, debrucei-me sobre o parapeito e enterrei os olhos na noite.

 

O bosque de Biez tapava o horisonte como uma cortina de ferro. Como uma aranha colossal, a rêde d'arame emaranhava-se ao longo da linha. Apontei ao alto a pistola e o foguete partiu, abrindo-se quasi perpendicularmente á nossa trincheira. Em baixo a agua corria pelo fosso, como uma babugem da treva, como um dejecto da noite. Alvejaram para a direita os cestões que revestiam um pequeno troço da linha inimiga. Brilhou alguma coisa, para alem da rêde d'arame. Fiquei alguns minutos bebendo o misterioso fluido que, errando pelos funis das granadas e pelas covas dos morteiros, ascendia pelo talude e se metia dentro de nós como um veneno que nos fazia parar, como que apodrecer, o sangue das veias. Sentiu-se um leve rumor logo em baixo, nas primeiras fiadas de arame. Lancei outro foguete. Era um gato, que, ao ver desdobrar-se o docel luminoso, deu um salto, desaparecendo entre as hervas. Porventura teria havido ali alguma ferme, que fôra arrazada pelos sucessivos bombardeamentos, e o gato vinha, em busca do velho lar, aproveitando aquela hora de trégua.

 

Acabou o meu ultimo quarto. Recolho ao abrigo. — Porque marcho com os olhos no chão? Não cumpri eu o meu dever?

 

Quando cheguei ao abrigo, e abri a cortina de lona, que impedia a projeção da véla no campo, um oficial novo dormia, com o capote vestido, sobre a minha cama. Tinha vindo substituir o oficial de morteiros que morrerra ha dias, com o pescoço decepado por um estilhaço.

 

Sentei-me à porta. As ordenanças tinham- -se desviado para traz do abrigo e conversavam baixinho. Levantara-se um vento forte, que fazia ramalhar as arvores que ladeavam a linha d'agua que corria defronte. As estrelas fechavam continuamente as palpebras, como se o vento lhes atirasse aos olhos as poeiras imundas do imenso campo de batalha.

 

—Não tinha eu cumprido o meu dever?

 

Sim, tinha-me arriscado a morrer, como todos os outros. Estava ainda arriscado a morrer, como todos os outros. A retaguarda não era um escudo contra a morte. Um sargento inglez, que havia escapado às matanças do Yzer e do Some, que fizera sem um ferimento a guerra desde o primeiro dia e a quem tinham dado, como um premio dos seus serviços, um logar qualquer junto do nosso quartel general, havia sido morto ha dias por um torpedo largado dum aeroplano. Morria-se em toda a parte.

 

O vento parecia levantar sombras da terra e projetal-as sobre o horisonte, ensanguentado pelo reberbero das fornalhas da fabrica de munições de Yzeberg. As esquadrilhas de bombardeamento não se aventurariam na noite, afrontando a ventania, e na fabrica trabalhava-se confiadamente. — Teria eu cumprido todo o meu dever?

 

Pelo céo começaram a aparecer as primeiras manchas violáceas da madrugada. As estrelas iam-se afastando cada vez mais da terra, seguindo os caminhos remotos da amplidão misteriosa e infinda. Distinguia mais nitidamente os ramos das arvores. Uma passadeira alvejava como um ossuario.

 

0 Faltava uma hora para a rendição. Os primeiros pelotões deviam ter chagado à Croix Rouge.

 

Na primeira linha as granadas de mão estoiram com tal violencia que do comando perguntam se o sector está sendo atacado pelo inimigo. Os soldados despejam os cunhetes sobre a Terra de Ninguém, à tôa, rindo, como acometidos de loucura. Vão sahir por um mez deste inferno, desta lama, desta inundicie de sangue, de dôr, de raiva, de heroismo. Durante um mez só saberão da existência do inimigo pela presença d'algum aeroplano, voando tão alto, para se poder escapar à perseguição dos nossos aviões de caça, que nem sequer se sentirá, acima das nuvens, o barulho do motor.

 

Escorrem já pelo chão uns vagos clarões lacteos, que se precipitam com as sombras, perseguindo-as, nos drenos e nas trincheiras. No céo palido, por caminhos ignotos, as estrelas desaparecem da vista da terra.

 

O primeiro pelotão a ser rendido é o meu. As ordenanças calaram-se e procuram enxergar as primeiras cabeças por cima do paracostas da Lansdown Street.

 

Uma granada rebenta na passadeira e levanta do dreno um montão d'agua e lama que esperrinha para dentro do abrigo. As ordenanças agacham-se. Uma delas comenta :

 

— Diabo! Por tão pouco não merecia a pena incomodarem-se...

 

Outra granada rebenta adiante do abrigo, junto da Lansdowne. Uma granada pezada passa na direcção do comando do batalhão. O inimigo percebeu que se tratava da rendição e bate os caminhos, as trincheiras e os comandos.

 

A artilharia inimiga pontua de explosões o nosso abrigo. Parece dizer-nos:

 

— Bem sabemos que estais ahi, mas ainda não chegou a hora...

 

Quando a hora chegar estaremos longe. Sobe do fundo da minha consciência novamente a pergunta: — Terei eu cumprido o meu dever?

 

O bombardeamento atraza a rendição. O dia espreme-se, como uma esponja luminosa, sobre o ventre da terra. No nascente forma-se uma nuvem roxa, de bordos irregulares, como uma chaga que se abrisse na face do céu.

 

As granadas continuam a passar, espaçadamente, para a rétaguarda. O sol começa a espontar como um disco vermelho, como uma grande carranca sangrenta.

 

Chega o primeiro pelotão. Seguimos para a primeira linha fazer a rendição. Tudo está já equipado e pronto. Conforme são rendidos, as guarnições dos postos vão seguindo aos seus destinos, em direcção ao acantonamento.

 

Rendido o ultimo posto, lanço um ultimo olhar para o bosque e tomo pela Hun-Street. Quando passo pelo abrigo dum morteiro pezado, um soldado envieza para mim um olhar de rancor. Ainda não sabem, os pobres, quando serão rendidos...

 

Quero passar pela estrada de Lens, justamente por onde entrei no sector. A mesma camouflage esconde a estrada das vistas do inimigo. Dois soldados inglezes conduzem às costas o tronco duma árvore. A mesma máquina agricola jaz inerte e abandonada no campo, corroída da ferrugem, torcida, destroçada. Um oficial de artilharia atravessa a estrada, direito a um observatório.

 

Quando me vejo na estrada, levo a cabeça inteiramente vasia e apresso a marcha sem saber porquê, como uma besta de carga, acostumada às grandes caminhadas.

 

Encontro os primeiros soldados na Rue de Bois. Caminhavam aos dois, aos tres, aos bandos, derreados sob o fardo feito com o lençol impermeavel e o capote, com as mascaras e os respiradores deslaçados, com a espingarda às costas, as mãos segurando as extremidades, como quem leva um lodão. Alguns deixam-se ficar sentados nas bermas da estrada, os dolmans desabotodos, os peitos peludos à mostra, gosando a frescura duma sombra ou vendo correr aos pés um fio de água.

 

O sol cobre de glória e explendor êstes farrapos, êstes fantasmas, estas larvas humanas — êstes heroes.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

02
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

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Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

A fuga à Morte

 

Logo que foi declarada a guerra, o tenente X., de um dos regimentos do norte, pensou em pedir a dimissão. Escolheu a carreira das armas, como poderia ter escolhido qualquer outra. Era um modo de vida. Seu pae e seu avô tinham sido oficiais do exército e levaram-no desde pequeno a inclinar-se àquela profissão, para continuar essa nobre tradição na família. Fôra colocado logo depois da promoção a aspirante no regimento aquartelado na sua terra, onde casára e a vida lhe corria tranquila e docemente, como o rio de claras águas corria entre as amigas sombras do vale. Os dois filhos que Deus lhe déra só vieram turbar essa dôce tranquilidade para o obrigarem a pensar no futuro, sonhando a cada hora com a maneira mais azada de lhes garantir o pão e a felicidade.

 

Mas, como apezar das manifestações populares às nações aliadas, apezar da campanha a favor da nossa intervenção na guerra, a ordem de mobilisação se ia demorando, e a vitoria poderia decidir-se dum momento para o outro a favor de qualquer dos partidos, o tenente X. foi-se deixando ficar.

 

Um dia soube-se que o ministro da guerra resolvera indeferir qualquer pedido de dimissão. O tenente X. entendeu que devia expôr a situação à mulher. A mobilisação estava, pois, por dias. O seu regimento devia ser um dos primeiros a mobilisar. Se partisse, a morte era quási certa. Com os meios materiais de que dispunha o inimigo, com a sua admirável preparação para a ofensiva, com a fé que mostrava ter na vitoria, ir para a França era ir para o matadouro, de cabeça baixa, como uma rez. Talvez fosse melhor desertar, fugir. Ganhava-se a vida em toda a parte. No Brasil, na Argentina, em qualquer canto, haviam de encontrar um bocado de pão. Fariam porventura fortuna. Mais tarde viria a anistia. Se os aliados triunfassem, a anistia coroaria a obra da vitoria; se triunfassem os centraes, a anistia demorar-se-ia um pouco mais, mas havia de chegar a sua hora. Eram pobres, o soldo era pequeno, estavam para ali metidos naquele poço. Os filhos teriam de ir tambêm para as fileiras, porque era necessário aproveitar as vantagens do Colégio Militar e da Escola de Guerra. A família seria assim eternamente uma dinastia de forçados do quartel, de condenados à farda.

 

A mulher, ante a perspectiva da viuvez e da miséria, a princípio concordou. Iria para onde êle quizesse. Tanto fazia estar ali como no cabo do mundo, desde que não perdesse o amparo do seu braço. Para levar aquela existência modesta, quási de indigência, em que o soldo mal chegava para as compras da praça, mais valia a pena tentar a vida por outro lado. Pois sim... Ela era sua mulher e seguiria por isso o seu destino.

 

Passaram alguns dias e a mulher entrou a pensar que ali ao menos sempre tinham parentes e conhecidos capazes de lhes acudir numa aflição. Sabia lá para onde a sorte os atiraria... O soldo era pequeno, mas era certo. Deitavam-se com um e amanheciam com dois. E lançarem-se a correr mundo, irem para o Brasil ou para a Argentina, com nomes supostos, com passaportes falsos, como criminosos da peior espécie, o coração sempre num punho até perderem de vista as costas de Portugal, sem poderem contar com o dia de amanhã, sem um braço amigo que os amparasse, era sujeitarem-se, além da vergonha, às mais apertadas privações e às mais crueis desgraças. Tinha de ir para a guerra?... Mas, nem todos haviam de lá ficar. Deus não quereria que aqueles inocentes ficassem sem pai, entregues à sua sorte como as nuvens entregues ao vento ou como as sombras entregues à escuridão.

 

Quando chegou a ordem de marchar, o tenente X. deu parte de doente. Não, não iria para a matança, sem primeiro empregar todos os meios para escapar à choupa. Era o seu direito. Não podia ter menos direitos do que um bezerro, que só de rastos se deixava conduzir ao matadouro. — Depois, tinha o govêrno consultado a nação? O exército era da nação, não era dum govêrno ou dum partido. Já lá ia o tempo em que se dispunha dos homens como de bestas. Sem lhe mostrarem as vantagens da entrada na guerra, não se prestaria a embarcar, como um fardo inutil ou como um animal votado ao sacrifício, para a Flandres. Que fossem os que andavam por Lisboa aos vivas à guerra. .. O batalhão partiu. A mulher sentia sobre si, como fléchas de fogo, os olhos dos filhos, das irmãs e das mulheres dos que tinham marchado. Quando ia para o hospital vêr o marido, nem sequer olhava para os lados, para não surpreender nos transeuntes um gesto de censura ou uma palavra de condenação. Uma vez viu à porta de casa um velho acariciar uma das crianças e dizer alto — que Deus lhe désse um coração mais valoroso do que o do pai. A mulher do oficial que fôra chamado a substituir o seu marido andava grávida e no dia da partida abortára. Passava as noites a chorar. Apezar do amor que lhe tinha, sentia que o marido lhe pezava sôbre a alma como um bloco de granito.

 

Até que um dia, olhando-o de frente, lhe disse que era preciso partir. Acusavam-no de cobardia. O seu nome andava nas bôca dos garotos, como um osso na bôca dos cães. Os que viram partir os outros, referiam-se a êle como a um ente desprezível. Ela bem sabia que fôra o amor dos filhos que o levara a baixar ao hospital. Bem lhe custava a ela, a pobre, ficar sósinha e triste, entre as saudades das horas tranquilas que tinham passado e a visão trágica das terriveis horas que se iam passar. Mas que lhe havia de fazer? Não queria que sôbre a cabeça dos filhos pezasse, como uma maldição, uma falta do pai. Era preciso partir...

 

O tenente X. pediu para lhe darem alta e embarcou comigo no transporte A.

 

Foi a bordo que o conheci. Pálido, magro, com os olhos quási sem brilho, com os labios quási sem sangue, não largava o cinto de salvação. Deparei com êle, uma noite, à prôa, debruçado sôbre as ondas, que referviam em baixo, rasgadas pela quilha, remexidas pela hélice, açuladas pelo vento. Mal lhe dirigi as primeiras palavras, logo fez menção de se afastar. Persegui-o até à popa. Encostado ao pequeno canhão, enquanto os olhos se embebiam na noite, como a água se embebe numa esponja, foi-me contando a sua vida.

 

A mulher ficára na terra com os filhos, quási desamparada. Com a carestia da vida, o soldo mal lhe chegaria para o governo da casa. Êle seguia o seu destino, caminhando verticalmente para a morte, como uma pedra solta do alto duma torre caminha para o chão. Marchava como um boneco articulado, sem vontade, sem confiança, sem fé. Obedecia ás ordens, à voz de comando, como um sonanbulo obedece à mão misteriosa que o guia. Tinha a certeza de que não voltaria. Considerava-se já vivendo por favor, disfrutando uma espécie de vida postuma, como um raio pode viver fora do sol, como uma onda pode viver fora do mar. A Morte ferrara-lhe as unhas na garganta e não o largaria mais até o estrangular e o arremessar inanimado para o chão. Sentia a alma despegar-se-lhe do corpo, como um torrão se despega duma ladeira molhada ou como uma trave se despega dum edifício em ruínas. No coração tinha só cinzas — as saudades da mulher e dos filhos. — E apezar de tudo, pessuia-o um medo horroroso de morrer, esse medo insuparavel e invencível que dizem que faz os grandes criminosos. Compreendia o que se passara na alma daquêle pobre soldado que, para não morrer na guerra, se deixara esmagar pela máquina do combóio que o transportava.— Não sabia se morreria de doença, se de ferimentos. Que lhe importava isso? Não sabia mesmo se morreria antes de desembarcar nessas terras de França, pela qual iamos combater, pagando-lhe com tamanha generosidade as crueldades de que fomos vítimas quando das invasões napoleónicas. Um torpedeamento, um acidente de bordo, qualquer coisa o poderia matar, visto que estava condenado e não podia escapar.

 

As palavras saiam-lhe mansas e trémulas, como gotas dágua pingando duma abóbada. Os braços pendentes ao longo do corpo traziam-me à idêa ramos esgalhados, presos ao tronco por um fio.

 

Encontrámo-nos depois no acampamento de Etaples. Estava quási sempre metido na tenda. Só um dia o vi errar pelo acampamento, quando uma medonha trovoada desabou sobre a colina, revolvendo as areias, arrancando as espias, e fazendo entrar para dentro das barracas baldes dágua.

 

Eu segui para a frente, e só bastante tarde tive noticias dêle, na ocasião em que o meu batalhão se reconstituía à retaguarda, depois do bombardeamento da noite de Santo António. Procurei-o. Estava cada vez mais magro. Os olhos tinham ganho um certo brilho de febre, e os braços pendulavam-lhe aos lados, em movimentos cada vez mais automáticos.

 

Resignara-se à idêa da morte. Dizia-se ancioso por que chegasse o dia de marchar para a primeira linha. Quanto mais depressa viesse um morteiro que o esquartejasse menos duraria a sua via dolorosa. Assim como assim, ninguém podia fugir ao seu destino e resolvera afrontal-o cara a cara.

 

Parecia cheio de decisão e de audácia. Reparei que os seus olhos espreitavam para o lado, como se estivessem à espera duma surpreza, ou me fitavam desconfiados, como se eu lhe tivesse saido ao caminho para lhe evitar a passagem. Outras vezes dançava-lhe um sorriso equívoco nos lábios, mas que logo se desfazia como se desfaz uma ruga à superfície da água dum charco.

 

O batalhão a que êle pertencia entrou nas primeiras linhas, à minha direita, guarnecendo o outro subsector da Ferme du Bois. O meu pelotão era o que fazia a ligação com esse subsector e fui portanto ajustar a colocação do último posto com o comandante do pelotão que alinhava com o meu.

 

Perguntei a este oficial:

 

— E o tenente X.?

 

O meu camarada informou-me entre dentes que tinha dado parte de doente, no próprio dia em que devia marchar para as trincheiras, e baixara à ambulância de Marthes. E enquanto nos lábios lhe aparecia um riso escarninho, continuava a falar do serviço, como se lhe fosse defezo ocupar-se de semelhante criatura.

 

Quando regressei ao apoio, fui à ambulância. O tenente X. tivera alta e recolhera ao batalhão. Passei pelo sitio onde êste acantonava e logo dei com êle, em frente da ferme onde estava instalada a sua companhia, sentado numa das bermas da estrada que conduzia a Bethune, com as pernas metidas na valeta, à sombra dum olmo.

 

Nem se mexeu quando me viu. Sentei-me junto dele. Como a sombra que caía do olmo, a sua voz caindo sôbre a valeta, parecia fazer uma nódoa no chão. Confessou que se possuirá duma cobardia que lhe tolhia todos os movimentos, que lhe obscurecia a alma, que lhe fazia parar o coração. Sentia sôbre si os olhos dos camaradas, dos próprios soldados, acusando-o, vergastando-o, esmagan-do-o. Qaundo saira da ambulância e se apresentara no comando do batalhão ouvira um corneteiro nas suas costas, dizer para outra ordenança:

 

— Olha o gajo!...

 

Mas não podia libertar-se da imensa miséria em que se deixara cair, como um corpo morto se deixa cair numa estrumeira. Podiam chamar-lhe cobarde à vontade. Perdera toda a espécie de vergonha e de pudor. Que o prendessem. Que o fusilassem, se quisessem. Tinha vinte e seis anos. Tinha mulher e filhos. Queria viver. Não se havia de entregar à morte, tão estupidamente como uma tábua se entrega à corrente. Tinha obrigação de resistir. Resistiria até à última extremidade. Tinham despreso por êle? Que lhe importava? A Pátria estava longe. Se voltasse, as flores cairiam sobre a sua cabeça como sobre as cabeças dos outros. E poderia erguer a toda a altura dos seus braços os corpos tenros dos filhos, porque fôra por eles que a tudo se sujeitara, mesmo a ser um miserável.

 

As primeiras palavras que ensaiei procurando chama-lo ao caminho da honra e ao cumprimento do dever, despertaram nele uma reacção tão violenta que os olhos se lhe raiaram de sangue e se lhe encheram os cantos da bôca de espuma.

 

Passados alguns dias, à hora do jantar, enquanto para os lados de Lens o canhão troava, um oficial do 34, que nos tinha vindo visitar, entre uma golada de cerveja e uma garfada de arrôs de coelho congelado, contava-nos o seguinte:

 

O tenente X baixara segunda vez à ambulância de Marthes. Depois de umas horas de observação, o diretor da ambulancia metera-lhe a guia nas unhas, com a rubrica doença simulada. Apresentado no comando, mandaram-lhe levantar o respetivo auto e fizeram-no seguir imediatamente para a primeira linha. Fôra num desses dias atraz, em que reinara em todo o sector uma perfeita calma, tendo-se limitado o inimigo a atirar algumas granadas sobre o observatório da Factory, para fazer o zero. Chegado à primeira linha, meteu-se no abrigo, sem dar palavra, e ahi se ficou, olhando o chão, abrindo e fechando maquinalmente a culatra de uma pistola de very-lights. Quando veio a hora da ronda, voltou-se para o camarada, e, tirando da carteira, pediu-lhe que a fizesse chegar às mãos da mulher. Continha 500 francos, alguns retratos e uma larga carta com instruções sobre a educação a dar aos filhos. E, já na boca do abrigo, com uma serenidade impressionante, com um olhar que parecia atravessar as caneluras da pequena abobada de ferro, disse para dentro:

 

— Não se esqueça do meu pedido. Tenho a certeza de que vou morrer...

 

Fez sinal às ordenanças e enfiou pela trincheira. Momentos depois ouviu-se a explosão dum morteiro pesado. Uma ordenança voltou ofegante ao abrigo, com a farda cheia de terra, e uma mão sangrando dum pequeno ferimento.

 

—Meu alferes, um morteiro matou o nosso tenente...

 

O alferes acudiu. O projetil dum morteiro pezado tinha cahido sobre a passadeira, destruindo um travez e esburacando a parte superior do parapeito. O corpo do tenente X estava meio soterrado na onda de lama que o rebentamento do morteiro tinha levantado. Era uma massa informe de sangue e de troços de carne. Um enorme estilhaço, que se via ainda ensanguentado e com as arestas segurando uns pequenos bocados da farda, agarrara-o pelo ventre e quasi o cortara em dois. Os intestinos descaiam-lhe para o dreno, sob a passadeira partida. Um outro estilhaço partira-lhe o craneo e retalhara-lhe a face.

 

Em todo esse dia não se ouviu mais um único tiro. Parecia que a Morte estava à espera dele e que o seu apetecido cadaver bastara para lhe saciar a fome nesse dia.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

26
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

15

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Flores da Terra de Ninguém

 

Minha boa amiga :

 

A Terra de Ninguem está cheia de bem-mequeres e de papoilas. Quando a neblina, como nesta manhã, oculta a linha inimiga, saltamos a trincheira e escolhemos nesse jardim da morte um ramo de flores, que, metido num copo de granada, nos alegre um pouco a meza de jantar, só guarnecida por garrafas vasias de cerveja, latas furadas de confitures, granadas de mão e pentes de balas.

 

Acudiu-me hoje o pensamento gentil, minha boa amiga, de ir buscar a essa tira de terra, que é uma tira viva e sangrenta do corpo esquartejado da pobre humanidade, um ramo de flores para lh'o oferecer e mandar. Não sei se chegará às suas pequeninas mãos, se ficará pelo caminho, entre dois fardos de coelhos da Australia ou entre as lombadas de dois presuntos de York. Que importa? Pensarei sempre que chegaram ao seu destino e que os seus lindos olhos as contemplarão como uma prova da minha amizade. Lembrar-se-há mais algumas vezes de mim: a certeza de que a não esqueço avivará na sua memoria a lembrança deste homem que anda para aqui, ou arrastado como uma folha sêca de canto em canto, ou metido como uma toupeira debaixo da terra — joguete da ventania e irmão da lama.

 

Sei bem que nunca compreenderá o que há de sangue e horror nessas flores, adubadas com cadáveres humanos, coloridas pelo sol doentio destas terras da Flandres, regadas pela água podre dos drenos. Que importa? Fico com a idéa de que às suas mãos chegou, pela única forma graciosa que me é permitida, um grito destas paragens em que o anjo exterminador continuamente faz sibilar a sua espada ardente.

 

Acabada a guerra, quando nós voltarmos, ouvirá contar coisas que nunca fôram imaginadas e que serão inacreditáveis para aqueles que se deixaram ficar na doce paz da sua casa. E reconhecerá então que só um coração muito amigo podia render-se, nestes momentos em que a vida anda sobre a baba duma aranha, ao pensamento de lhe oferecer meia duzia destas petalas que brotam do meio da sangueira desta hecatombe, como a virtude poderia brotar do inferno.

 

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 As papoulas colhi-as junto duma trincheira de sapa, donde ainda ontem os alemães, mascarrados de negro, deslizando como fantasmas, quizeram assaltar um posto de granadeiros. Corri, numa patrulha, certa noite, parte dessa trincheira. Os corredores dessas cavernas onde viviam os lobishomens, de que falam os velhos creados, à lareira, nas longas noites de inverno, não podem ser diferentes dêste valado tenebroso, aberto através a Terra de Ninguem por mãos desconhecidas, donde sobem vozes misteriosas e onde erram sombras disformes. Nas bordas seguem filas de troncos renegridos e despedaçados pelos projecteis de todos os calibres, sem uma folha, sem um galho, com lascas da casca pendentes, como braços decepados erguendo para o alto os cotos sangrentos com esfarpas de carne dependuradas.

 

A nevoa envolvia os ultimos troncos, alêm dos quais começava a rêde de arame inimiga. Através a primeira cortina transparente da nevoa, onde o sol punha irisações fugazes, via-se um cadáver feito em pedaços. A historia dêste cadáver corre pelas trincheiras. Vou-lh'a contar.

 

Os mortos são baldeados por êste furacão de ferro e fogo como os vivos. Logo nas primeiras linhas há algumas sepulturas, sôbre as quais a piedade dos combatentes colocou, como última homenagem, a espingarda e o equipamento que serviram ao morto e algumas ervas caíram, à falta de flores, das mãos comovidas de um camarada. De vez em quando, o bombardeamento arraza as trincheiras, revolve essas sepulturas e deixa à mostra os cadáveres. A's vezes, as explosões dos morteiros pesados levantam-os ao ar; outras vezes, ficam meios enterrados, meios descobertos, com os rostos, já descarnados, adquirindo contorsões as mais sinistras, visualidades desconhecidas de todos os cultores do horror, atitudes que escaparam a todos os romancistas da agonia. Como a trincheira fica aberta, para se passar sem ser visto pelos snipers, que, do seu buraco blindado, com a espingarda de alça telescópica, atiram sôbre a primeira cabeça que se descuide, é preciso ir de rastos, sôbre os restos fedorentos, cosendo a cara aos farrapos apodrecidos da farda ou à terra impregnada dos humores cadavéricos. O sabor desta terra putrida, a impressão horrível dêstes trapos desfeitos que a saliva da morte humedeceu, ficam nos labios, ficam nos olhos, ficam na alma, como nodoas deixadas por larvas.

 

Os cemiterios são em geral entre os postos de reserva da primeira linha e as segundas linhas, aí até 5 quilómetros à rectaguarda. Por via de regra, são situados junto dos acantonamentos, dos postos de socorros, das fermes aproveitadas para posições das metralhadoras pesadas, dos obuzes ou da artilharia. Um dia, uma noite, repentinamente, quando qualquer dessas posições foi descoberta por um aeroplano ou por um observatorio, ou denunciada pela negligência dos soldados, desaba sôbre o cemitério a tempestade de fogo, e as cruzes partidas sirandam no ar e os cadáveres saltam das sepulturas, numa dança macabra de membros despedaçados e de caveiras partidas entre o fragor das explosões.

 

A história dêsse cadáver, que adubou a terra onde nasceram as humildes flores que lhe mando, é uma das mais trágicas. E' o cadáver dum oficial inglês. Comandava um raid, quando foi morto à frente da primeira vaga de assalto. Abandonado na Terra de Ninguem, depois de repelido o ataque, os ingleses batiam de dia e noite o sitio em que ficára o cadáver, para que o inimigo se não apoderasse de quaisquer papeis que o oficial trouxesse no bolso e que podiam fornecer-lhe indicações preciosas. Por sua vez os alemães, sempre que sentiam para aquele lado o mais leve ruído nos arames, atiravam sobre o cadáver uma chuva de metralha, para que os ingleses o não podessem arrastar para as suas linhas. E dias se passaram, num terrível duelo em volta dos troços desconjuntados dêsse corpo humano, que amigos e inimigos retalhavam a canhão numa sanha de bestas feras.

 

Veja, minha boa amiga, a que extremos de crueldade chegou o homem — êsse mesmo homem que por aí amaneira a terra com a solicitude com que ageita um filho no berço, que tira o chapeu humildemente quando os sinos, às primeiras sombras da noite, tocam às trindades e que trata os próprios cães como próximos parentes.

 

Alguns bemmequeres colhi-os já numa trincheira de comunicação, quasi toda destruida, a Plum Street, perto de uma posição de metralhadoras pesadas, e quási no ponto da sua interseção com a trincheira de combate. Sobre aquela trincheira tinham-se sobreposto alguns sacos de terra, e pelo canto esbarrondado dum dos sacos saíam os bemmequeres. Como na frente ficava o abrigo betonado das metralhadoras, os tiros inimigos haviam-nas poupado.

 

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Esses bemmequeres representam as longas horas em que, nos intervalos dos bombardeamentos, nas horas quietas dos dias ensoalhados, nos é dado pensar na vida e destino dos homens, nas razões e conseqùências da guerra, e nas pessoas que vivem dentro de nós, como um raio vive dentro do sol ou como uma gota de água vive dentro de um lago. E' nestas horas que fazemos a escolha das nossas recordações e das nossas saudades, deixando esbater nos últimos planos da memória as tenues simpatias e as vagas amizades, os encontros dum dia e os contactos furtuitos, e trazendo à flôr dos olhos, trazendo à flor da alma, as imagens que se nos apoderaram do coração e lá fizeram a sua eterna morada. E' nestas horas, porisso, que mais me lembro de si.

 

As pobres flores são dignas de serem tocadas pelos seus brancos dedos, porque são o que há de pureza e de graça nestas torvas regiões em que a morte dispõe de todos os elementos de acção e a vida teve de se refugiar no seio da terra, como precita da luz e como escrava do crime.

 

Diz-se que algumas vezes o amor provém do ódio. Será possível que dêste imenso pôço de ódios e de amarguras venha a sair a claridade e a alegria? Será possível que desta guerra saia a paz universal?

 

Se assim fôsse, as pobres flores que lhe mando mereciam ser guardadas religiosamente, num relicario precioso, como se guardam as relíquias sagradas.

 

Tenho medo de a maguar, pedindo-lhe que me não esqueça nas suas orações.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

19
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

14

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Um S. O. S.

 

A guerra moderna obrigou os exercitos á adopção de metodos e processos que, sem serem inteiramente novos, jámais tiveram aplicação a operações militares. Sabe-se que os navios quando vão ao fundo teem um sinal convencional para pedir socorro. E´ o S. O. S. Estas três letras são as iniciais das palavras «Save our saults», cuja tradução corrente é: Salvai as nossas almas! As marinhas de todo o mundo seguiram essa boa pratica inglesa, e o S. O. S. generalisou-se, sendo o ultimo recurso, o grito desesperado, a suplica derradeira e anciosa dos que naufragam no alto mar ou dos que se vêem perdidos nalguma costa deserta.

 

Como também se sabe, na guerra actual, por via de regra, os combates são nocturnos. Os sistemas de trincheiras atrás das qnaes os exércitos se defendem, não consentem os ataques frontais, á luz do dia, e apenas por surpreza, e sob a protecção das sombras da noite, se pode actuar. E' verdadeiramente uma guerra de salteadores, em que os costumes da antiga cavalaria foram substituídos pelos mais ferozes métodos de extermínio, e em que não ha outras convenções além das que são impostas pelos elementos, pela extrema fadiga ou pelo mutuo aniquilamento. No inverno, as ofensivas paralizam, porque a neve, o frio e as tempestades não permitem á fraca compleição humana maior esforço do o que é necessario para se defender do ambiente. Nos sectores de repouso e de instrução, que se estendem talvez por dois terços de toda a frente, as divisões destroçadas, que se recompuzeram na rectaguarda, ou as novas formações, fazem apenas a chamada pequena guerra. A frente do Somme, que foi teatro das mais horriveis hecatombes, deixou de dar que falar de si, porque os exércitos que se defrontavam foram, como se diz na nova terminologia bélica, ceifados.

 

A palavra «retaliação», simbolo das velhas epocas de barbaria, entrou nos documentos oficiais e anda em todas as bocas como a mais perfeita expressão desta guerra modernissima. Os mamelukos e os berbéres, com os seus habitos hospitaleiros e a sua lealdade em combate, devem sentir-se infinitamente superiores a estes europeus ultracivilisados, que se assemelham bem mais aos bandidos da Floresta Negra do que aos cavaleiros da Tavola Redonda.

 

Em ambos os campos se adoptou o S. O. S.  E' o sinal dado á artilharia do avanço da infantaria inimiga ou da nuvem de gaz que se adeanta. Nos abrigos dos comandantes dos pelotões da primeira linha, nos comandos das companhias, nos comandos dos batalhões, vêem-se sempre as longas varetas dos foguetões do S. O. S., com as cabeças envoltas em coberturas de latão e tudo oculto das vistas dos aviadores por tiras de lona.

 

Esta organização obrigou as batarias a terem uma sentinela do S. O. S., encarregada de olhar sempre a frente inimiga e fazer avisar o oficial de serviço logo que no ar subam os três foguetões vermelhos do estilo.

 

Aquela tarde, eu estava em apoio, e tinha ido, depois de jantar, com alguns camaradas, pela estrada junto da qual estava a posição da bataria do capitão Beleza, dissimulada sob as ramas do pateo duma «ferme». O oficiál de serviço comandava um «teste». Por dentro dos vidros da janela da casa via-se uma linda rapariga loira que conversava e ria com dois soldados ingleses.

 

Era já quase noite. Um grande cemi-circulo de côr de ouro esbatido, com algumas nodoas de purpura, desenhava-se no poente. A estrela Venus suspendia-se, no ceu baixo, como o farol de um aeroplano. As ruinas duma povoação destruida amontoavam-se como os escombros de um grande incêndio; e como se elevava dos drenos da estrada uma leve neblina, parecia que esses escombros fumegavam ainda.

 

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Um dos meus camaradas conhecia o oficial de serviço e ficámos conversando um pouco. A conversa recaiu inevitavelmente sobre a guerra e as coisas de Portugal e ali nos deixámos ficar até á hora do recolher.

 

Os «very-lights» começaram a ascender na noite suave de verão, por toda a extensa linha da frente, como repuxos intermitentes duma imensa fonte luminosa. Um soldado sentou-se com uma guitarra sobre os joelhos e começou dedilhando o fado do «Ganga». Um automovel carregado de munições passou de luzes apagadas, fazendo tremer o leito saibroso da estrada. Cruzando com o automovel, um grande cavalo normando puxava um carrito de lavoura e desenhava na noite o seu enorme vulto. Sentado no dorso do cavalo um «gavroche» assobiava.

 

Nisto ouviu-se a voz da sentinela:

 

-S. O. S.!

 

Todos nos voltámos para a frente. O ultimo foguetão vermelho palpitava ainda, como uma grande palpebra oftalmica, no ar dormente.

 

O oficial de serviço correu ao telefone. Passado um minuto, chegava a confirmação do S. O. S. pelo telefone do batalhão.

 

— Aos seus logares! Bataria, fogo pela direita! — e a voz estentorica do oficial de serviço dominou a noite.

 

As peças estavam apontadas e os apontadores tinham já repartido entre si o objectivo e feito as correcções. A primeira granada partiu. A chama iluminou o abrigo. Sobre o assento do eixo, o apontador verificou se a peça continuava apontada, o municiador introduziu outra granada no regulador de espoletas e o graduador volteou febrilmente a manivela do fundo da caixa. No abrigo da segunda peça, um cartuxo feriu sonoramente o chão. A essa nova chama, viu-se o carregador da primeira peça erguer-se um pouco sobre o joelho para introduzir outra granada na culatra e viu-se o apontador fazer o disparo. As granadas sucederam-se, cortando o ar flamejante, tisnando as ramarias, fazendo tamborilar as janelas da «ferme» e enchendo a treva de estrondos e clamores.

 

O cheiro da polvora irritava as narinas e as caras dos artilheiros, vistas entre os rebrilhares dos bronzes dos reguladores e dos reforços das peças e entre os clarões dos disparos, faziam pensar em personagens mitologicas arrancadas ás forjas de Plutão ou á imaginação de Dante.

 

Corremos ao acantonamento. Já devia ter chegado a ordem de marcha e provavelmente a companhia de prevenção tinha já partido. Chegámos, e não tive mais que colocar-me à frente do meu pelotão:

 

—Quatro á direita volver! Ordinário marche!

 

Seguimos por um caminho de pé posto, a marche-marche. Ao passarmos defronte da bataria, os cartuchos dansavam no ar. Uma granada pesada inimiga uivou por cima das cabeças e foi rebentar para traz do acantonamento. Conforme nos íamos avisinhando da primeira linha, tornavam-se mais distintas as explosões dos obuzes e dos morteiros. As balas das metralhadoras pesadas batiam os caminhos e sibilavam entre os ramos das arvores.

 

Ouviu-se o tinir da campainha duma bicicleta. O soldado apeou-se e entregou-me um papel.

 

—Alto!

 

O pelotão estacou. O comandante do batalhão dava-me ordem para ocupar a posição de reserva. Os outros pelotões foram chegando, destacando-se como massas alvacentas na escuridão.

 

Os foguetes cruzavam-se em todos os sentidos. O urro cavo dos morteiros pesados abalava a noite, as granadas procuravam na treva os objectivos e as rajadas das metralhadoras pesadas enfiavam as estradas e as trincheiras de comunicação. No misterio da noite, o drama ia-se desenrolando, conforme todas as regras, sobre aquele scenario apocalitico de ruina e assolação. Parecia chegar ás almas o bafo putrido do cavalo da Morte, a qual serenamente ia manejando a fouce implacável por entre os taludes das trincheiras.

 

O bombardeamento abrandou com os primeiros alvores da madrugada. O inimigo não tinha conseguido entrar na nossa primeira linha.

 

Um ou outro soldado dormitava. Veio a ordem de regressar ao acantonamento. Voltámos pelo mesmo caminho de pé posto. Os soldados, de armas em bandoleira, as mãos metidas nos bolsos, marchavam depressa para sacudirem o torpôr da madrugada.

 

Onde o caminho se encontrava com uma estrada vicinal, havia um calvario. Um renque de ciprestes espontados, em fórma semi-circular, formava uma capela de ramos entrelaçados. Projectada sobre o fundo verdenegro a imagem de Christo parecia mais triste e abandonada, a cabeça mais pendida sobre o hombro lacerado, as chagas mais abertas, as mãos a despegarem-se mais dos cravos ensanguentados. Especialmente a chaga dum joelho tinha adquirido o livôr sujo da carne corrupta, e no peito, onde o escultor havia posto certo cuidado anatómico, a podridão alastrava sob a pele de opala.

 

Na bataria, agora, dormia-se. Alguns ramos despedaçados pendiam dos troncos, presos pela casca, e varriam a erva chamuscada.

 

Os soldados desequiparam-se e estiraram-se nos leitos de palha, entre as mantas. Eu tinha deixado sobre um caixote que me servia de meza de cabeceira os «Contos fantasticos», de Edgar Poe. Li algumas paginas e o sono veio lentamente. Adormeci sob a impressão de que tudo quanto se passara era também um conto fantástico, em que as figuras e a propria paisagem eram movimentadas pela mão poderosa dum romancista portentoso.

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

05
Mai21

A GRANDE AVENTURA

Scenas de Guerra


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

12

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Carta a uma mãe

 

Os comandantes dos pelotões são quem censura as cartas dos seus soldados. E' uma tarefa aborrecida e ingrata, cumprida por desfastio nos intervalos dos bombardeamentos, entre o almoço e a ronda, á luz duvidosa do abrigo.

 

Em regra, são cartas pequenas, noticiando o estado de saúde, mandando recados aos visinhos, lembrando festas de familia ou pedindo novas das moças da terra. Mas, ás vezes, a nostalgia aperta mais os ingénuos corações dos magalas, os olhos cerram-se-lhes, e as suas almas simples, como grandes borboletas de asas impalpáveis, deixam-se ir, para além dos horizontes, até qualquer cantinho risonho e florido das nossas províncias, onde porventura, àquela mesma hora, numa correspondência misteriosa de afectos, numa telepatia obscura de sentimentos, vozes aflitas rezam por eles, mãos trementes se cruzam sobre os peitos confrangidos e olhos turvos de lagrimas se erguem para alguma Nossa Senhora, com o filho morto nos braços, entre as flores de papel do velho oratorio. O magala chama então o cabo ou o camarada mais letrado, e vai espremendo o coração sobre o bocado de papel.

 

Algumas dessas cartas, feitas nos momentos de maior emoção, são squemas admiráveis da sentimentalidade nacional. Verdadeiramente, constituem o nosso «folk-lore» da guerra. As imagens cáem dos bicos da pena com a mesma simplicidade luminosa com que o dia cai sobre os campos e com a mesma brandura e graça com que a nascente corre da serra. O coração salta para a palma da mão, as lagrimas saltam para os cantos dos olhos e as palavras escorrem dos lábios, doces como fios de melaço, acalentadoras como o lume da lareira, tranquilas como um seio de irmã.

 

As cartas passam do comando da companhia para o comando de batalhão, daqui para a brigada, daqui para a estação postal, e daqui para a terra longínqua, como asas de andorinhas que buscam um beiral amigo, onde, emfim, possam soltar os seus gorgeios.

 

A carta que vai a seguir é talvez uma dessas. Apenas lhe puz algumas virgulas, emendei alguns erros de ortografia e introduzi um ou outro período para lhe dar tal ou qual feição literária. Ela aí vai, como uma andorinha, em procura dos regaços carinhosos das mães dos soldados portugueses:

 

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«Minha santa mãe:

 

«Estimo que ao receber desta esteja de perfeita saúde. Eu continuo bom, graças a Deus.

 

Escrevo-lhe numa hora de grande saudade. Tenho-me lembrado todo o dia das nossas coisas — da nossa horta, do nosso eirado, da nossa casinha. Véem-me á memoria, sem querer, os tempos da infancia, e parece-me que chego a sentir as caricias da sua mão adoçarem a febre que me queima esta pobre cabeça, sobre a qual, a cada hora, como pios lugubres de corujas, passam os grasnidos das granadas.

 

Ha bocadinho deixei-me adormecer. A gente não deve abandonar-se ao cançasso, nem pôde entregar-se ao sono. O descuido de um minuto, o desfalecimento de um instante pagam-se com a vida. E' preciso olhar para todos os lados, quase adevinhar as intenções das balas, ter todos os sentidos bem espertos, para a gente se poder defender da  morte. Mas o corpo é fraco, e muitas vezes deixamo-nos cair numa especie de amolecimento da carne, de quebrantamento do sangue, que nos faz bem. Que se lhe ha de fazer? O que tem de ser tem muita força.

 

Como lhe ía dizendo, ha bocadinho deixeime adormecer. E entre a roseta vermelha que o sol fazia dançar deante dos meus tristes olhos fechados, o seu rosto apareceu-me como que vindo do céu, com o mesmo sorriso que tinha no dia em que eu levei para casa o primeiro dinheiro que ganhei. As saudades matam-nos, minha mãe.

 

Num outro dia, numa tarde de chuva, estava eu dentro do abrigo comendo o rancho, e descançando um pouco, porque todo o dia tinha andando a compor uma trincheira arrombada pelos morteiros do inimigo, e ouvi distintamente, junto de mim, a sua voz. Já o rancho me não prestou e para ali fiquei, agachado, vendo pela boca do abrigo cair a chuva na passadeira, tomado de uma melancolia que me fazia arrefecer as veias. Resistiremos facilmente ao inimigo, mas não sei se resistiremos a isto.

 

Temos o coração maior que os outros. E' talvez a nossa desgraça.

 

Os franceses teem na frente da batalha todos os seus homens validos. Passa-se pelas  vilas e pelas aldeias e não se encontram senão mulheres e crianças cobertas de luto. Mas as crianças riem e brincam como se nada fosse, e as mulheres divertem-se com ingleses e portugueses.

 

Não entendo esta gente. Não, não é lá por falarmos linguas diferentes. Quase todos falamos já um pouco de francês e não nos é dificil compreendermos os proprios ingleses. Não é por isso. Os corações é que não se entendem.

 

O beijo é para as nossas mulheres um pecado. Pois aqui é um cumprimento. Uma mulher casada que aí fosse vista a beijar um homem que não fosse o seu marido ou o seu irmão, estava perdida. A mim, ainda ha dias uma mulher casada me beijou na presença do marido, que sorria com indiferença. E preparava-se para se me sentar nos joelhos, se eu não tivesse mais vergonha do que ela e não tivesse fugido, com as mãos apertadas na cabeça.

 

As raparigas d'ai teem medo de que nos deixemos ficar por cá, enamorados das «demoiselles». Que não tenham receio!

 

As longas horas de namoro, ao luar duma desfolhada, sob as ramos duma arvore, juntodo peitoril duma janela, tocando-se, não as faces, mas as almas, beijando-se, não as bocas, mas os olhos, e isto por muitos anos, até que se assente o dia das bodas e se vá pedir a Deus que abençoe aquele longo e manso amor, emquanto os sinos repicam alegres, e as raparigas esperam cá fóra, no adro, com os açafates cheios de flores, a saida dos noivos, — toda essa graça, toda essa luz, toda essa pureza da nossa terra são coisas inteiramente desconhecidas desta gente.

 

Ail minha Mãe! se me vejo em Portugal, bebendo a nossa agua fresca, comendo o nosso pão amargo, dormindo nas nossas duas tabuas, e se tiver a felicidade de, á volta, encontrar uma mulher saudavel e bonita que me queira e que me dê tantos filhos quantos forem os anos que vivamos, como eu serei feliz!

 

Mas quando será isso? Quando acabará esta maldita guerra? Quando é que os homens deixarão de se matar como bestas féras e por cima destas trincheiras as mãos se estenderão aos inimigos no gesto irresistível de irmãos que se reconhecem e que se perguntam a si mesmos porque ha tanto tempo se estão matando?

 

Eu sei lá, minha santa Mãe! se as suas orações, e as de tantas mães que ha pelo mundo e teem aqui os seus filhos, não fizerem nada, estou a ver que os dias e os anos se passarão sem que se veja o fim.

 

Como quer que seja, minha Mãe, o seu filho ha de saber cumprir o seu dever de português. Já fui louvado duas vezes, e os meus superiores falam de mim aos camaradas como um exemplo a seguir. Considero, no entanto, que pouco fiz. Uma vez, no aceso do combate, sozinho, porque os meus camaradas tinham sido feridos, salvei o meu morteiro, levando-o ás costas, sob o desabar da metralha, para uma nova posição. Outra vez, tendo um obuz rebentado no meio da posição e tendo fugido os meus camaradas, eu não me deixei tomar do medo e despejei sobre o inimigo todas as munições. No fim de contas, como vê, pouco fiz. Outros teem feito mais, e ou porque foram vitimas da propria heroicidade e cá ficaram estrumando esta terra estranha, ou porque as suas façanhas não foram do conhecimento dos seus superiores, ficaram no mais ingrato esquecimento.

 

E não sou só eu. Todos são portugueses. Todos sentem que é com o seu sacrifício que a Patria, a nossa outra e grande Mãe, conta para se salvar e engrandecer. Se era necessário para cá vir, não temos remedio senão olhar para a frente. Os olhos devem abrir-se bem para o largo, a alma deve desagarrar-se das raizes da vida até tocar o céu, e os braços, visto que sômos poucos, devem  animar-se de dobrada força e triplicada vontade.

 

Quando o Pae morreu, da doença que contraiu na Africa numa expedição, havia nos seus olhos uma luz interior que parecia iluminar tudo. Eu era ainda pequeno, mas essa luz arde dentro de mim, como se fosse a minha propria vida.

 

Entendo que a vida só é boa quando dela possa resultar uma lição, e Deus me livre de ter o coração tão pequenino que não me encha bem o peito, e não bata tão forte que todos lhe sintam as pulsações.

 

Eu sei, minha boa Mãe, que ao lêr esta carta hade chorar muito. Hade chorar de tristeza, por ter o seu filho tão longe, exposto aos maiores perigos, passando os mais árduos trabalhos, refugiado numa toca como um lobo, com os pés sempre agarrados á lama e a mão procurando sempre a espingarda. Mas sei que também hade chorar d'alegria por vêr que o leite que eu bebi dos seus seios bemditos não se corrompeu dentro das minhas veias e que as lições de honra que eu hauri da boca moribunda de meu Pae, indicando-me o sentido da vida e o caminho da gloria, se insuflaram dentro da minha carne como células vivas que fazem parte do meu ser.

 

Peço-lhe que, se tem de chorar, o faça emquanto eu estou ausente. Porque, quando eu fôr—e hei-de ir, que tenho fé na minha estrela e sinto que Deus me tem sob a sua guarda —quero vêr-lhe os olhos bem enxutos, brilhando de toda a sua luz e penetrando-me de toda a sua doçura e de todo o seu calôr.

 

Vou terminar. Com esta longa carta, soceguei um pouco a alma e a saudade é menos viva. E' quasi a hora do álerta, em que todos temos de ir para o nosso posto.

Deite-me a sua benção e até um dia. — Antonio».

 

 

 

Esta carta, publicada no Diário de Noticias, mereceu a uma senhora franceza, M.me Blanche Froment, que imaginou ser nossa intenção visar depreciativamente as suas compatriotas, uma outra carta, que veio também publicada no Diário de Noticias, e em que justamente se exalta o papel da mulher franceza durante a guerra.

 

Essa carta vae a seguir publicada, bem como a resposta. Quando respondemos a M.me Blanche Froment sinceramente julgámos que se tratava dum pseudónimo. Viemos depois a saber que não, e antes se tratava de uma senhora distintíssima, que casou com um ilustre artista portuguez, e que da nossa terra fez a sua segunda e egualmente querida Patria.

 

Entendemos que não é fora de proposito dar aqui á estampa essas cartas, taes quaes foram publicadas.

 

Eis a carta de M.rae Blanche Froment:

 

 

«Lisbonne, le 27 fevrier 1918.

Monsiur le Directeur.

 

Je vous serais três reconnaissaute si vous vouliez insèrer ces quelquer lignes dans votre journal si impartial et estimable.

 

Vous avez publié hier un article sous forme de lettre « Carta a uma mãe» qui blesse mes justes susceptibilités de femme française, et je viens protester hautement contre la littérature pretentieuse de Monsiur Antonio Granjo. Afin de faire ressortir les beautés de l'âme feminine portugaise, à laquelle je rends hommage de tout coeur, il ne craint pas de fouler sous le talon de sa botte le caractère et la dignité des femmes de mon pays. II écrit que ces femmes en deuil s'amusent et rient avec les soldats portugais et anglais et que celles qui sont marieés n'hesitent pas fi embrasser aussi les soldats et a s'asseoir sur leurs genoux même em présence de leur mari!-…

 

D'un fait auquel il a « peut être» présidé, il fait une géneralité, mais ce qu'il démontre surtout, c'est qu'il est totalement dépourvu de 1'usage et du savoir-vivre écessaires a lui faire discerner la différence existante entre la « femme à soldat», dont le type es connu ici comme lá-bas, et la femme française, quelle que soit sa position sociale; et ce n'est vraiment pas en ce moment oê elle donne et continue à donner 1'exemple des vertus familiales, du dévouement et du courage, qu'il convient de venir la dénigrer sous pretexte de littérature.

 

J'ajoute que la « Carta a uma mãe» n'est même pas un article patriotique et qu'il est loin d'apporter na coeur des pauvres rnères portugaises le courage, la résignation et l'espérance qui leur seraient si necessaires! Cette lettre ne peut servir qu'á les faire souffrir davantage (si cela est possible) et personne ne devrait chercher à ébranler leur foi dans l'avenir et leur espoir d'un jour prochain oú elles pourront serrer sur leur coeur ceux qui lá-bas vivent du même rêve.

 

Personne plus que moi ne partage les angoisses de ces meres douloureuses, et —j'ai de la peine à retenir des larmes de pitié quand je vois partir ces beaux jeunes hommes empcrtant dans leurs bagages les « saudades » de tous et les miennes aussi.

 

Nons savons tous que la vie est dure pour eux làbas... La guerre veut cela, et les pauvres mères tremblent des dangers qu'elles entrevoient pour leurs enfants; mais alors? Est-il necessaire de leur noircir encore la tableau?

 

Veuillez croire, Monsieur le Directeur, à mes sentiments de haute consideration.

Blanche Froment.»

 

E eis a resposta:

 

Snr. Director.

Agradeço a v. as palavras benévolas que encabeçam a carta, assinada Blanche Froment, que vem publicada no Diário de Noticias, de 28 de fevereiro, e que só hoje, 2 de março, ás 23 horas, pude ler. Tenho a minha vida, que me obriga a estar fora de casa alguns dias, e eis aqui está porque só hoje posso responder á dita carta. Aproveito a ocasião, já agora, para me desculpar perante v. e os leitores do seu jornal, da fórma irregular por que vou redigindo e mandando as minhas impressões de «turiste» das trincheiras.

 

Creio, sr. diretor, que o nome que subscreve a carta é um pseudónimo.

 

Uma senhora, mesmo francesa, dirigir-se-ia a um cavalheiro, quem quer que fosse, de um modo bem diferente. E quando faço esta restrição — mesmo francesa— não quero de maneira alguma discutir, ao menos por agora, a mulher francesa.

 

Atribuo ás praticas malthusiasnas e ás velas de Erbon, e similares, em grande parte, a situação em que se debate a França, mas esse tema servir-me-á porventura para um artigo que escreverei quando tiver vagar e oportunidade, e não está nas minhas intenções antecipar o estudo dessa materia.

 

A mulher francesa tem, sem duvida, uma moralidade e uma sentimentalidade diversas da mulher portuguesa, e, sem averiguar por ora de que lado está a inferioridade, não me parece que a qualquer senhora francesa seja legitimo julgar-se ofendida, ou sentir-se susceptibilizada, por eu fazer uma tal afirmação.

 

Os costumes portugueses não permitem que uma mulher beije outro homem que não seja o seu marido ou um seu proximo parente. E' a verdade. Os costumes franceses fizeram do beijo um cumprimento. E' também a verdade. Não ha ninguém que conheça Portugal e que conheça a França e que não saiba isto. Não é a «femme à soldat» quem usa o beijo como um cumprimento — essa criatura usa o beijo como um triste modo de vida.

 

E' esse costume francês de uma moralidade superior ou inferior ao costume português? Eu não discuti esse ponto, que aliás é perfeitamente digno de discussão, sem que a dignidade da mulher francesa possa sequer ao de leve ser atingida ou molestada.

 

Assim, uma senhora francesa jámais se podia sentir ofendida com essas minhas palavras. Desde que o beijo é um cumprimento, não ha na troca desse beijo a porção de impureza que nós, os portuguezes, lhe poderíamos atribuir. Isso será até a manifestação, por uma fórma bem gentil, duma civilização refinada e superior, que nós ainda não alcançámos, e eu desejaria que jámais alcançássemos. Por isso eu creio que se trata de um pseudónimo.

 

A carta insurge-se contra o eu dizer que as mulheres francesas, embora tenham os seus maridos e irmãos na frente, se divertem com os ingleses e os portugueses. Não quiz fazer apenas pretensiosismo literário -registei um facto. Muitas mulheres francesas chorarão, no silencio recolhido do seu lar enlutado a morte dos seus seres queridos, sem que se lembrem, de certo, de vir á imprensa fazer alarde da sua dór. Efectivamente, a dór tem os seus direitos em toda a parte; e não é porque os costumes são mais livres que as lagrimas sentidas de uma mãe, de uma esposa ou de uma irmã são menos a expressão de uma alma aflita. Mas essas pobres almas mal podem com a sua cruz, e a essas me não poderia referir eu.

 

Não precisam, essas mulheres heróicas, que em Portugal, ou noutras quaisquer paragens, venha quem quer que seja em sua defesa. Essas, conheço-as eu bem. Vi-as, nas humildes «fermes» onde acantonei, rezando e chorando, como as mulheres portuguesas. Mas a par dessas, e sem ser preciso recorrer ás lobas dos acampamentos, quantas mulheres fizeram desta hora de combate a hora alegre e despreocupada duma vida de criaturas fáceis, mais perniciosas á França do que a metralha inimiga?

 

Quanto a ver-se uma mulher casada sentar-se nos joelhos d'um soldado, na presença do marido, será, e creio bem que é, facto singular —mas vi coisas piores em França. Vi, com infinita repugnância, em quase todas as cidades da rectaguarda, mulheres venderem, na presença dos maridos, aos soldados, colecções de postais obscenos. E essas scenas despertavam em todas as almas bem formadas, e que, como eu, amavam e amam a França, a tentação de correr tudo isso a chicote, porque a França não é, e jámais será, um balcão de imundicies. Ha, porventura, alguma senhora francesa que não sinta a necessidade de purificar a França de todo esse vil comercio?

 

E' «isso» a França?  E' «isso» a mulher francesa? Quem é que o disse aqui? Eu, ao menos, não.

 

De resto, dizer que os corações portugueses não sentem como os corações francezes; que nós, os portugueses, encontramos mais poesia, mais graça e mais pureza nos costumes do nosso povo do que em qualquer outro, incluindo o francês; que as moças de Portugal escusam de recear pelos seus namorados, porque os encantos das «demoiselles» não serão bastantes para os desviar do bom caminho do lar natal — dizer isto será porventura um crime? Pôr algumas palavras, simples e honestas, angidas de amor pátrio, na bôca dum soldado português, será defeso, a nós os portugueses ?

 

Não creio, repito, que a carta em questão fosse escrita por uma senhora francesa. Mas se o foi, essa senhora deve compreender que deveres de cortezia me impedem de ir mais além. Faço justiça ás suas intenções, mas onde não houve proposito algum, nem palavra alguma que denegrisse a verdadeira mulher, francesa ou portuguesa, eu não merecia as suas recriminações. E se ha injustiça que nos fira, a nós, os  homens, é justamente a que nos vem duma mão donde supomos que só pode cair... um ramo de flôres ou um livro de orações.

 

Essa senhora não me compreendeu, como talvez me não compreenda ainda. Eu quiz, com a minha carta, espertar o patriotismo das mães portuguesas, e procurei fazê-lo duma forma que tocasse os corações. Algumas senhoras portuguesas teem-me falado da carta com as lagrimas nos olhos—lagrimas quase de agradecimento, porque as minhas palavras foram de algum modo consoladores. Mas essa senhora não compreendeu. A razão está em que nós, os portugueses, sentimos e compreendemos de maneira diferente. E' a confirmação de tudo quanto tenho dito.

 

Espero não me enganar, dizendo que se trata de um nome suposto. Se, na verdade, contra o que é de esperar, se trata de uma senhora, reconheço que é a mim que me compete pedir desculpa, e como procuro sempre cumprir o meu dever, para ressalvar essa hipótese absurda, aqui apresento, por fim, as minhas homenagens á mulher francesa, e em especial á senhora que me deu pretexto para lhas apresentar.

 

Chaves, 2—3—18.

Antonio Granjo.

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

21
Abr21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

10

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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A primeira patrulha

 

 

Marcaram-me as 24 horas para fazer a minha primeira patrulha. Tinha como objectivo patrulhar a Terra de Ninguém e inspecionar a rêde de arame inimiga. Alguns minutos antes da hora marcada os meus homens estavam prontos e reunidos no ponto de saída — na trincheira morta, entre um posto de granadeiros e um posto de fuzileiros. Faço cruzar dois foguetes sobre a linha do itenerario e um pouco depois salto o parapeito e desço até á nossa rêde de arame.

 

A nossa primeira linha formava neste ponto um angulo reintrante, e a massa irregular do parapeito fechava-se, para dentro desse angulo, num profundo poço de sombra. Pistola na mão, fico uns instantes deitado sobre os lábios duma cratera, devassando a noite. Não se ouve o menor ruido. Por entre a herva crescida espontam as cabeças dos «longs-piquets» da nossa rêde. Um cavalo de frisa, atirado para o lado, com uma cantoneira partida e o fio de ferro bambo, dá a ideia dum cadaver abandonado.

 

Faço sinal aos meus homens para que desçam. Primeiro vem o sargento, depois os outros, em fila, escorregando pela rampa suave do talude exterior do parapeito. Um foguete despedido da primeira linha inimiga abre a sua rosa de luz, que se vai desfolhando lentamente sobre os ramos despedaçados duma linha de arvores. Os homens ficam imóveis. Um deles deixou-se ficar, agachado, sobre o pequeno fosso que acompanha o talude, e faz-me lembrar uma fera preparando o salto. O ultimo foi surpreendido mesmo em cima do parapeito, e estaca, levemente curvado para a frente, com a espingarda na mão. O colete de granadeiro reveste-lhe o arcaboiço como uma couraça, o capacete rebrilha um instante como uma escama. Passa-me pela imaginação a imagem dum guerreiro antigo, guardando uma barbacã e inclinando-se para

a frente a ouvir na noite um rumor suspeito.

 

Todos os homens se alapardam nas crateras. Dos postos, algumas cabeças estendem-se para seguirem os nossos vultos. Da linha inimiga sobem agora mais frequentemente os foguetes. Como na nossa frente não se atiram «very-lights», o inimigo presume que lançámos uma patrulha e ilumina o campo.

 

Deixo passar alguns minutos, para os meus homens se familiarizarem com a situação e para não nos denunciarmos ao inimigo. Uma brisa fresca faz ondular as gramíneas que espontaneamente nasceram nesta tira de terra fartamente adubada. Para o sector da esquerda rebentaram granadas e morteiros ligeiros. Uma rajada de metralhadoras passa alta. As estrelas parecem baixar do ceu.

 

A patrulha segue. Até ao meio da nossa rede caminhamos de gatas. Depois temos de ir de rastos. A mascara dificulta os movimentos. De vez em quando um arame solto prende-se-nos às pernas. Atravessamos o ultimo sistema da nossa rede e estamos na verdadeira Terra de Ninguém — a facha, dalguns dez metros, entre as duas redes de arame.

 

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Deixaram de se ouvir as explosões das granadas e dos morteiros. Um silencio inquietante pesa sobre nós como uma barra de chumbo.

 

A nossa linha perde-se como uma vaga tinta na escuridão. O arame inimigo emaranha-se espesso e baixo, traiçoeiramente, entre as hervas. A linha inimiga, quasi enterrada na minha frente, eleva-se para a direita, onde se adivinham alguns cestões.

 

Ouvimos, na linha inimiga, o disparo de um  foguete. Os homens cingem-se à terra. O foguete ergue-se rapidamente no ar, fica suspenso um segundo e cai com uma lentidão desesperante. Num posto inimigo, viu-se uma cabeça erguer-se, inspecionar a Terra de Ninguém e baixar-se atrás do parapeito.

 

Deslizamos para a direita, seguindo o itenerario marcado. Deparamos com uma trincheira antiga, do tempo em que o campo esteve ocupado pelos alemães. Ficamos uns minutos à escuta. Um tvery-light» despedido dum saliente da nossa linha vem cair no meio de nós. Consulto o relogio. Tenho ainda uma hora deante de mim. Uma ordenança veio-me dizer que atrás dum pequeno morro, em frente, assomou um inimigo. Arrasto-me um pouco para a frente, até dentro da rede inimiga. E' um tronco despedaçado. Continuamos. Mando o sargento com dois soldados explorar a trincheira até à nossa rede e permanecer aí até retirarmos.

 

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Uma frescura matinal começa a acariciar a terra. Para a direita, no sector dos canadianos, ouve-se agora um fogo rolante; e para a esquerda, no sector dos ingleses, cinco ou ses projectores picam o ceu de feixes luminosos.

 

De repente, uma metralhadora inimiga rompe fogo contra nós. As balas cortam as hervas cerces. Uma ou outra bala, resvalando pelos fios de arame, acende algumas faiscas, que brilham na noite latejante como pequeninas fitas de fogo. Estamos descobertos. Recuamos, de rastos, a cabeça metida nas hervas, a mascara bamboleando ao lado para o peito se apoiar firmemente na terra e assim facilitarmos a marcha.

 

Junto da nossa rede de arame paramos. As rajadas de metralhadora continuam. Os foguetes cruzam-se. Alguns tiros soltos assobiam-nos aos ouvidos. Tomo as devidas medidas de segurança, instalo-me no funil duma granada e espero. As granadas de espingarda rebentam bastante à direita. O inimigo perdeu-nos a pista.

 

A impressão de segurança é absoluta. Deixamo-nos ficar, de bruços, os onvidos aplicados à terra, os olhos espreitando, entre as hastes tenras, a frente inimiga, penetrados do mistério da noite, moídos do imenso esforço daquela marcha de larvas. Um soldado vê reluzir qualquer coisa que lhe parece um capacete boche. Estende a mão e encontra um craneo com filamentos de carne podre.

 

A noite começa a adquirir a claridade leitosa da madrugada. Seguimos a nossa rede, procurando uma entrada. Numa volta, dou com o arame calcado e as estacas de ferro derrubadas. E' certamente um dos pontos por onde as patrulhas inimigas conseguem acercar-se da nossa linha.

 

Sinto o ruido dum corpo caindo na agua. E' um soldado que caiu ao poço duma antiga «ferme», da qual nenhum outro vestígio existe. Dois soldados pegam nas mãos do camarada, para o ajudarem a subir. Mas dentro do poço entrelaçam-se os fios de arame farpado e o pobre rapaz grita, porque as farpas enterram-se-lhe na carne. Com a bengala liberto do arame as pernas do soldado e os dois camaradas içam-no. Espalha-se um cheiro fétido. Aos pés do soldado vem agarrado um montão de farrapos.  A ponteira da bengala bate num osso. No poço apodrecia (ha quanto tempo?) tranquilamente um cadaver.

 

O pobre rapaz está horrivelmente pálido, e o fétido da água choca e da carne podre revolvida é insuportável.

 

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Procuro uma rampa para trepar ao parapeito.

 

Uma voz, como um murmurio, pergunta-me:

 

—Quem vem lá?

—Oficial português.

—Senha?

—Almeida.

 

Fico de pé, na base do talude, até que o ultimo dos meus homens entre. Depois, salto,

e fico um minuto sentado na banqueta, descançando.

 

Pergunto ao sargento:

 

— Falta alguém?

—Não falta ninguém, meu alferes.

 

Uma parpalhaça, a meio da Terra de Ninguém, canta. As estrelas, como o cadaver do poço, parece que apodrecem. O ceu ganha livores cadavéricos. Um pequeno nevoeiro começa a esconder as linhas inimigas. A brisa torna-se cada vez mais fresca.

 

O canto da parpalhaça eleva-se mais alto. Como nma voz de bom agoiro, esse canto acorda a atmosfera quieta, como um grito de vitória.

 

Sim, é necessário vencer!.

 

 

Continua na próxima quarta-feira.

 

 

14
Abr21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

9

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Nas linhas de apoio

 

Dormi hoje o melhor sôno da minha vida, nesta pequena cidade do norte da França, onde estou descansando da primeira semana de trincheira e de combate. Doze horas dormidas, sem um movimento, sem um sonho, embalado pelo troar do canhão, numa cama onde já dormiram alemães, sob um tecto esburacado pelas granadas, e onde chegava dum quintal um perfume forte de flôr de sabugueiro, constituem positivamente qualquer coisa de inédito e maravilhoso para quem passou seis dias dormindo alguns minutos, nos curtos intervalos do bombardeamento, entre dois montões de sacos de terra, a 50 metros do inimigo.

 

Não direi que valha a pena passar todas as provações apenas para gosar essas doze horas encantadoras, mas esse sono profundo, em que o corpo repousa absolutamente imóvel, como uma estatua jacente, é um dos maiores prémios concedidos aos que se batem nesta terrível guerra de esgotamento.

 

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Alguns nunca mais conseguem dormir esse sôno bendito, em que as forças se refazem e todo o organismo reganha a elasticidade e a força indispensáveis para nova prova. Alguns nunca mais teem outro sôno que não seja o horrível e continuo pezadelo da noite iluminada pelos veryleits, cortada pelos assobios das balas, abalada pelo estrondo formidável dos obuzes, das granadas explosivas e incendiárias, dos morteiros ligeiros, médios e pezados, das granadas de espingarda, dos gritos dos feridos,— da noite tragica em que o ar e a terra se revolvem e se combatem, e em que os homens, perdida a figura humana pela aposição das mascaras, são criaturas irreconhecíveis, produtos macabros de uma imaginação proteica, habitantes de um mundo plutonico, errando entre nuvens de gazes asfixiantes, numa fornalha de fogo, de ferro e de sangue. Alguns só num manicomio encontram algum socego. São os supremos desgraçados. Esses nem ao menos teem à beira dum caminho uma sepultura talhada por mãos piedosas, com uma cruz relembrando a acção em que morreram e algumas flores sêcas metidas nuns cacos de granada ou nuns frascos de conserva.

 

No meu primeiro dia de trincheira, o oficial que me acompanhava mostrou-me um pobre soldado que se agachava a cada passo atraz dos abrigos, fazendo gestos descoordenados e acompanhado por outro soldado que carinhosamente o ia amparando. Era um ribatejano, alto, desempenado, com as maçãs do rosto salientes e as pernas musculosas. Se lhe puzessem uma carapuça na cabeça, ficaria uma linda figura de campino.

 

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Aproximámo-nos dêle. Perguntámos-lhe como tinha sido aquilo. O pobre soldado estendeu os olhos vagamente para a primeira linha, desenhou com o braço comprido uma curva, agachou-se, juntou as mãos e alargou-as para significar o rebentamento do morteiro e continuou o caminho, arrastado pelo camarada. Foi o primeiro caso de loucura produzido pelos morteiros no exercito português, mas os casos são frequentíssimos nos outros exércitos.

 

De forma que ter a felicidade de possuir um sistema nervoso que resista sem abalo a tão tremenda prova, e que permita o goso celestial de um sono de doze horas seguidas — é, verdadeiramente, ser uma criatura privilegiada. Agradeço aos deuses esse sono como um dos maiores bens que me tem sido dado disfrutar na terra.

 

A noite de Santo Antonio deu-me a certeza de que se pode contar com o nosso soldado. Os portuguezes marcarão o seu logar.

 

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Pode desde já afirmar-se que o nosso soldado realisa prodígios. Possuindo qualidades de adaptação quase inverosimiveis, vai-se habituando aos métodos e aos processos da guerra de trincheira com uma facilidade admirável. Violentando os seus naturais impulsos de ofensiva, vai-se coadunando com a vida de toupeira e de sapo que a trincheira impõe; e dominando o natural receio diante do perigo desconhecido, resiste com uma paciência perfeitamente inglesa ao bombardeamento, a pé firme, entre abrigos e trincheiras já desmanteladas, sob a mais abundante chuva de metralha que a mente humana pode conceber.

 

Alguns inglezes chamam aos soldados portugueses—os Antonios. Ou seja porque essa palavra é mais fácil de pronunciar pelos nossos aliados, ou sejam porque estes saibam ser esse nome muito comum em Portugal, certo é que, a cada passo, se ouve um soldado inglês dizer para um português: «Come on, Antonio!». Pois tudo quanto se diga dos nossos Antonios é pouco.

 

Estou convencido que eles farão grandes coisas. Os erros acumular-se-ão porventura de cima, mas os de baixo salvarão tudo.  A honra nacional está nas mãos calosas e duras dessa gente miúda, e a Nação pôde estar certa de que será erguida bem alto a bandeira das quinas.

 

A morte deles resgatará muitos erros; e a sua heroicidade será porventura o sóco sangrento em que se apoie a nossa futura catedral.

 

E' o nosso sonho destas horas de repouso — a Patria, erguida tão alto, que Deus não precise de descer á terra para lhe tocar com os seus sagrados dedos.

 

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

 

07
Abr21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DE GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

8

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Tenente Grilo - In Ilustração Portuguesa 593 de 2/7/1917

 

O tenente Grilo

 

Tinha-me apresentado no comando do batalhão de infantaria 22, no dia 11, quasi á noite. Ao outro dia, de manhãsinha, o segundo comandante, capitão Godinho, fazia a sua visita ás linhas. Pedi-lhe para me deixar ir com ele.

 

Comandava a companhia da esquerda o tenente Grilo. Estou ainda a vêl-o. A sua cabeleira fulva ardia sob a negrura viscosa da abobada de ferro. A sua face branca, a que as sardas não tinham conseguido tirar uma grande expressão de beleza varonil, trazia á idéa o perfil dum archanjo.

 

— O dr. Granjo...

 

— Conheço-o de nome, e gosto de o vêr por cá...

 

A voz sahia-lhe dos lábios com um timbre quasi infantil. Mas dava desde logo a impressão de estarmos em frente de um homem.

 

O olhar de noviço da guerra prendia-se-me ás coisas mais insignificantes, lnspecionei o abrigo. Cigarros, papelada, cartas de trincheira, mantas, respiradores, capuzes, granadas de mão, uma meza, um banco — o mobiliário da primeira linha. Como um luxo raro, qualquer coisa de refinadamente asiático, sobre a leito de arame estendia-se um magnifico couvre-pied. Devagar, como quem conta uma historia, o tenente Grilo ia fazendo o relatório dos acontecimentos da vespera. Os alemães tinham assaltado o posto de granadeiros que defendia a trincheira de comunicação, a Hun-Street, depois de terem com um bombardeamento prévio de morteiros desmantelado a linha. Haviam conseguido levar prisioneiro um soldado quasi moribundo

 

As palavras cahiam-lhe dos lábios como leves pancadas metálicas. As mãos, duma delicadeza feminina, acompanhavam as palavras com gestos curtos e tímidos; de vez em quando as suas pupilas ganhavam um brilho fosforescente.

 

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O pintor português da Grande Guerra - Sousa Lopes

 

Saimos, eu e o segundo comandante, demos volta á primeira linha e voltámos pelo abrigo do tenente Grilo, que escrevia o relatório, a lapis, tranquilamente.

 

— V. quer alguma coisa? —perguntou lhe o capitão Godinho.

 

— Não, comandante.

 

E ergueu a cabeça. Uma mécha de cabelos mais ruivos, que lhe tombava sobre a nuca, assumiu á luz crepuscular do abrigo uns tons acobreados. Cá fora as ordenanças conversavam.

 

Voltámos para a séde do batalhão. Uma camouflage escondia o caminho das vistas do inimigo. Atravez da malha fina da camouflage, onde se tinham fixado folhas de arvores para melhor enganar os observadores inimigos, via-se o bosque de Biez, o legendário bosque misterioso, no qual, ao que se dizia, haviam desaparecido duas brigadas inteiras, uma de canadianos e outra de indios, sem que voltasse um só homem a dar conta do que se passara. As imaginações provavam-no de redutos, de corredores minados, de sistemas de alta tenção, de engenhos monstruosos inventados pelo génio guerreiro da Alemanha.

 

Uma maquina agrícola, torcida e enferrujada, jazia no meio dum campo. Um balão cativo, por traz do bosque, vigiava o horizonte, onde passavam esquadrões de nuvens cinzentas.

 

Depois, á tarde, eu fui apresentar-me na minha companhia e nunca mais vi o pobre rapaz. Foi já no dia 13 que soube da sua morte gloriosa na noite de Santo Antonio.

 

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O tenente Grilo sahiu do abrigo e veiu á barraca do telefone fazer a ligação. Tinha de atravessar a estrada de Lens, enfiada pelas metralhadoras e onde as granadas e os obuzes continuamente rebentavam, revolvendo a terra, como um tufão revolve um bocado esfarrapado de pano.

 

Cabeleira fulva ao vento, a face branca resplandecendo, ao clarão das explosões, dir-se-hia o proprio Archanjo da Victoria, que avançava sobre a trincheira e vinha estender protetoramente sobre a nossa frente a sua espada flamejante. Algumas palavras trocadas á pressa, einquanto o telegrafista martelava uma comunicação, e o tenente Grilo voltou para o seu abrigo, a descoberto.

 

O alferes Pereira, que comandava a companhia, ainda o avisou: — O' Grilo, tenha cautela!...

 

O tenente Grilo desapareceu sob a onda de metralha. Quem o viu disse-me que, nesse momento, lhe trouxe á imaginação um desses guerreiros lendários que nas batalhas medievaes apareciam no mais apertado do combate, dicidindo da vitoria com o prestigio deslumbrador do penacho do seu elmo.

 

Passaram alguns segundos, viram-se dois soldados correr, ouviu-se um rápido vozear, e deante da barraca do telefone, conduzido por duas ordenanças, seguia o tenente Grilo moribundo, com o sangue a sair-lhe aos borbotões da cabeça fulva. A mécha de cabelos mais ruivos pendia-lhe da nuca e dessa mécha escorriam grossas pingas rubras.

 

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Sousa Lopes - Portugal na Grande Guerra, uma encruzilhada perigosa, c. 1918, água forte, 212 x 298 mm

 

Um estilhaço de granada tinha-lhe perfurado o craneo e duas balas de metralhadora tinham-lhe varado o peito. Levara as mãos á cabeça, andara mais dois passos e cahira de borco, no meio da estrada, desamparadamente.

 

Pobre Archanjo da Vitoria! Uns segundos bastaram para fazer dessa linda figura, digna de imortalizar um grande pintor, um pobre trapo humano, que ia enfileirar-se entre os outros trapos humanos no pequeno largo saibroso, em frente do posto de socorros do batalhão, destinado á macabra formatura dos cadáveres.

 

Como se celebrou o funeral do tenente Grilo? Onde está enterrado o seu cadaver? Não sei ao certo. E' provável que ninguém saiba.

 

Ouvi dizer que tinha sido sepultado num cemitério inglez, na estrada conhecida pelo nome de Rue de Bois. Ao menos, a bandeira nacional teria coberto a maca rodada em que foram transportados os seus restos mortaes.

 

Nem discursos, nem flores, nem lagrimas. Nem um cântico religioso, nem uma palavra de despedida. Mãos indiferentes abriram o coval e, emquanto o canhão continuamente troava, os braços de alguns soldados deixaram cahir o cadaver embrulhado numa tira de lona, cobrindo-o depois daquela terra barrenta e pegajosa, apressadamente, atarefadamente, como quem se quer desembaraçar de um serviço incomodo. Na cabeceira do coval porão os inglezes uma cruz, com o nome, o posto, o numero do batalhão e a menção honorifica: Killed in action.

 

Esta miserável e pequenina grande guerra tirou toda a grandeza épica ás lutas humanas.

 

Até que, finda a guerra, aqueles que tombaram no campo de batalha possam ser trasladados para a Patria, nem as honras oficiais poderão ser-lhes prestadas. As descargas da ordenança revelariam ao inimigo a presença de tropas, e o boche não deixaria também de prestar as suas honras, desencadeando sobre o local uma tempestade de metralha.

 

Esta miserável e pequienina grande guerra!

 

Este episodio foi publicado no Diário de Noticias de 30 de janeiro de 1918. No mesmo jornal, em 12 de fevereiro do mesmo ano, veiu publicada uma carta anónima, que dá alguns informes sobre o bombardeamento da noite de Santo Antonio e diz a forma por que se fez o enterro do tenente Grilo. Publicamol-a a seguir porque dá alguns detalhes para a historia da campanha da Flandres. Diz a Carta:

 

«Ecoam ainda nos meus ouvidos os sons dos rebentamentos das granadas de todos os calibres, com que os alemães brindaram durante toda a noite de Santo Antonio de 1917 as posições de artilharia 2 e as trincheiras ocupadas por infantaria 22 e 7. No local onde me encontrava durante o bombardeamento, passaram-se horas aflitivas e as mais angustiosas da minha vida.

 

A oficialidade passeia nervosa na casa onde tomava a refeição, que ficou em meio; o telefone a cada instante transmitia-nos o que se passava na frente: «Os alemães atacam violentamente a 1.ª linha! Pedimos auxilio á artilharia! Alguns soldados que conseguiram salvar-se da 1.ª linha estão na 2.ª! Acudam-nos! Os alemães estão a atacar a nossa 2.ª linha! Pedimos auxilio á artilharia!»

 

A artilharia portuguesa estava calada! Nem um tiro! Os bravos soldados de artilharia 2, que horas antes tinham resistido ao violento bombardeamento, estavam de braços cruzados! Os valentes soldados de artilharia 7 estavam encostados ás peças sem que das mesmas saissem as granadas que iriam animar e defender a infantaria, que nas trincheiras sofria o embate inimigo! Felizmente para esses soldados, aos seus ouvidos não chegavam os gritos que eu sentia! Não sabiam o que se passava lá no fundo das trincheiras, onde soldados portuguezes pediam auxilio aos camara[1]das. Os oficiais estão como petrificados! Vêem morrer portugueses e não lhes podem valer. O meu major chora como uma criança; desgrenhado atravessa a passos largos a sala; parece-me que vai cair. Só lhe oiço estas exclamações: «E não lhes podemos valer!» Vejo-o aproximar-se do telefone e dizer: «Dêem-me a minha demissão! Não posso ver morrer camaradas e soldados portuguezes sem lhes poder acudir!»

 

A resposta!... A resposta não a direi agora. Deixemos terminara guerra. Não se fala, não se troca uma palavra. São duas da manhã e nas trincheiras apenas se ouve de tempos a tempos o rebentar de algum morteiro.

 

São três horas. Pelas estradas ha um movimento enorme de camions, automóveis, carros de munições, tudo quanto sirva para transportar metralha. Avisinha-se a alvorada e eu corro para o commando do 22. Chego antes do nascer do sol, quando começavam a chegar os mortos e os feridos. A nossa artilharia rompera o fogo já eu seguia o meu destino. Tenho ouvido falar no belo horrível e eu creio que presenceei esse belo horrível. O silvo de milhares de granadas, cruzando-se com o troar do canhão, obrigava-me a curvar a cabeça, num movimento de defeza, pois me parecia que as mesmas cortavam o espaço a um ou dois metros do solo, que tremia obrigando-me a vacilar. Os alemães raro respondiam a esse tempo. Deviam estar a descançar.

 

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Portugal na Grande Guerra, uma sepultura portuguesa na terra de ninguém, c. 1918, água forte, 210 x 292 mm

 

Chegam agora os mortos que são colocados numa pequena trincheira de comunicação entre dois abrigos de oficiais. Vou contemplá-los. Lá encontro um cabo cujo cadaver enregelado tinha a posição em que o surpreendeu a morte. Na tarde anterior esse cabo praticara um acto heroico. Uma patrulha alemã, chegando ás nossas linhas, roubara-lhe o chapéu de ferro, o cinturão e o cantil. Exasperado, esse cabo jurou vingar-se. Mesmo de dia salta o parapeito das trincheiras e rastejando atinge as linhas alemãs. Penetra nas mesmas e encontrados objectos que lhe tinham roubado! Encontra mais um cinturão alemão e umas granadas de mão e, radiante, alcança novamente as nossas linhas. E' recebido com abraços, prometendo nunca mais largar o cinto, usando-o por cima do seu. Poucas horas o usou porque nessa noite, ao disparar a sua metralhadora, não querendo abandonar o posto que lhe estava confiado, uma bala inimiga, atingindo-o na testa, deu-lhe morte instantânea. Rigido, conservando a sua posição de atirador, foi encontrado nas trincheiras. Parecia vivo, tal era a sua posição. Olhos abertos, perna direita um pouco curvada, braços como se estivessem ainda com a metralhadora, assim o retiraram do local onde morreu, assim o conduziram para a séde do comando e assim foi sepultado. A rigidez do cadaver não deixou que os membros tomassem outra posição. Fui eu que lhe tirei o cinto que encontrei a um oficial e fui também eu que pedi a um soldado que lhe desabotoasse a farda e tirasse qualquer documento. Tinha uma linda recordação na carteira: era o retrato duma filhinha que ele na vespera cobrira de beijos antes de ir ás linhas alemãs. Era de Castelo de Vide este cabo, se não me engano.

 

Estão amontoados mais soldados mortos e entre eles vejo um oficial muito loiro, barbeado de fresco, com a cutis da cara tão branca, que se vêm as artérias esverdeadas. Está com a farda cheia de barro. Quem era? O tenente Grilo! Peço para lhe retirarem uma pequena aliança de oiro do dedo e um botão de camisa. Nada mais trazia comsigo. Estendo-lhe por cima um cobertor até que chegue a vez de ser conduzido A sepultura, distante uns dois quilómetros.

 

Veem chegando homens atacados de gazes e é necessário activar o movimento de saida dos feridos. Corro ao posto de socorros inglês onde... os nossos soldados aguardavam transporte para a ambulancia hoje n.º 3.

 

O que se passou neste posto não é para agora; deixemos terminar a guerra.

 

Eram duas da tarde quando mandei retirar de cima de dois cadáveres dos nossos soldados a bandeira inglesa que os cobria. Até esse dia os cadáveres dos soldados portugueses, foram cobertos com a bandeira da nossa aliada; depois dêsse dia os cadáveres dos soldados portugueses foram cobertos com a bandeira portuguesa, por pedido e para não dizer imposição dos poucos capelães portugueses. O tenente Grilo deve ter sido coberto com a bandeira da nossa aliada. O seu cadaver foi aspergido, bem como o coval onde repousa, por um padre português, que, tendo-se inutilizado no front, regressou a Portugal não lhe dando o Estado nem a residência, nem o registo paroquial de que se apossara quando êle partira como capelão e onde protestara contra o facto de os cadáveres dos soldados portugueses serem cobertos com uma bandeira estrangeira!

 

O cadaver do tenente Grilo está sepultado no cemitério inglês, e hoje português, da «Rue du Bois», uma das estradas mais lindas de França.

 

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Cemitério da «Rue du Bois»

 

Os encarregados do cemitério teem-lhe a sepultura plantada de miosótis e rosas, e varias vezes lá encontrei ramos de flores, ofertados pelas mãos piedosas dos que visitam as sepulturas dos camaradas. Eu também lá deixei em todos os cemitérios o incenso das minhas orações e o orvalho das minhas lágrimas de saudade pelos que lá ficaram sepultados.

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

31
Mar21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

7

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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A noite de Santo Antonio

 

12 de Junho de 1917.—18 horas. — Saio do comando do batalhão, acompanhado do segundo comandante, que me vai conduzir ao abrigo da 2." companhia, onde fui colocado. Atravesso uma estrada, a que os ingleses deram o nome duma artéria de Londres e passo pelo Posto de Socorros para entrar na trincheira de comunicação. Ha ainda no chão alguns vestígios do sangue de dois granadeiros que foram mortos na vespera; e ainda, dentro dum abrigo, dois homens atordoados pelas explosões dos morteiros esperam que as suas faculdades mentais e os seus nervos destrambelhados regressem à normalidade.

 

A trincheira desce. Os meus passos, batendo a passadeira, perdem-se molemente nos taludes, onde as papoilas e os malmequeres se debruçam galantemente. Um aeroplano inimigo plana alto. Uma ordenança passa em sentido contrario.

 

—Ha alguma novidade?—pergunta o comandante.

— Nada, meu comandante... — e a ordenança segue o seu destino.

 

Um «decauville» atravessa a trincheira, depois ha uma linha de água e desembocamos na segunda linha.

 

Sobre toda a superfície da terra reina uma paz absoluta. O sol agarra-se aos caules tenros das ervas como um oleo gorduroso. Uma cotovia ergue-se a toda a altura, e, depois descrever sobre as linhas alguns círculos concêntricos, começa cantando o seu hino da tarde. O canto como que faz vibrar a atmosfera luminosa, a que uma brisa leve dá a amenidade das nossas lindas tardes de outono. Uma fila de amieiros espreita por cima do parapeito da segunda linha.

 

Os soldados repousam nos abrigos. A sentinela dum posto de metralhadora, para matar o tempo, faz um catavento, ao qual dá a semelhança dum aeroplano.

 

Dobramos à esquerda. A linha vai seguindo em ziguezage. Surgem dois soldados, detraz dum través, com um pequeno caldeiro suspenso dum pau que seguram aos ombros. E' o chá. Pousam o caldeiro em cima de uma banqueta e os soldados do pelotão vão-se chegando, com os copos e os cantis. Um deles traz uma lata com algumas sopas de pão no fundo; outro engrunha os ombros, olhando desdenhosamente o grupo.

 

— Se fôsse vinho... — e encosta-se ao travez, assobiando, e olhando melancolicamente a paisagem untada de sol, a qual se estende para a rectaguarda em notas bucólicas de arvoredo.

 

Mais uns passos, atravessamos uma estrada, por cuja berma corre uma linha de abrigos, e estamos no comando da companhia.

 

Fazem-se as apresentações e fico instalado. Não dormi nada na vespera. Estou a cair de sono.

 

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20 horas. — Enfia-se para o abrigo por uma estreita abertura, em rampa, escavada no terreno. O abrigo é uma abobada canelada de ferro, protegida por sacos de terra. Há uma pequena janela para receber a luz e o ar. De cada lado, dois leitos—quatro travessas de madeira, às quais se prendeu uma rêde de arame, e o sistema alteado meio palmo do chão por uns pés arrancados aos troncos das arvores visinhas. Por baixo da janela, uma mesa feita de madeira de caixotes.

 

Trocam-se algumas palavras. Contam-se episódios. Detalha-se o serviço. E' a hora comovida da iniciação. Mas os olhos cerram-se-me irresistivelmente, e a voz lenta do segundo comandante da companhia, que me está dando as instruções necessárias, e que já m'as repetiu duas ou três vezes, embala-me como uma velha cantiga.

 

Um dos meus camaradas acordou estentoricamente os ecos do abrigo perguntando, com as mãos em porta voz, para a boca da caverna, se o jantar estava pronto. Ouvi umas palavras confusas, que presumi serem a resposta, e deixei-me estupidamente adormecer.

 

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21 horas menos 15 minutos. — Oiço um estampido enorme e sinto abalar o abrigo. Acordo. Estou só. Uma granada explode, faz oscilar o leito e um jacto de terra entra pela janela. Consulto maquinalmente o relogio. São 21 horas menos 15 minutos. Saio. Uma ordenança agacha-se atraz do abrigo.

 

Os últimos raios de sol, horizontalmente, babam a terra de uma espécie de espuma doirada. Uma andorinha perpassa, como tomada de pânico. O bombardeamento rebenta sobre as nossas cabeças com a maxima violência.

 

As granadas caem perto e vêem-se os «shrapnells» cobrirem toda a segunda linha. E' a barragem. As metralhadoras varrem as estradas e as detonações sucedem-se sobre as trincheiras de comunicação. Um estilhaço revoluteia no ar e vem cair sôbre o paracostas, fumegando ainda.

 

O comandante e o segundo comandante foram para o abrigo do telefone. Estou um minuto com êles e vou assumir o comando do meu pelotão.

 

21 horas.—Os meus homens estão já a postos. Os morteiros pesados desabam, num estrondo de derrocada, à frente da linha e os estilhaços assobiam em roda, como enormes vespas. Um sargento que comanda as guarnições das metralhadoras, abrigou-se atraz dum travez. Mando-o para o seu posto. Um minuto depois um obuz destrói o travez. Um maqueiro vem-me avisar de que ha um homem ferido. Mando uma ordenança acompanhá-lo ao Posto de Socorros.

 

A noite vai crescendo. O céu mantém ainda alguns reflexos do dia, mas pela superfície da terra as trevas rolam já como novelos de tinta. Os clarões das explosões rasgam no crepúsculo moribundo os seus caminhos de destruição e de morte. As estrelas principiam a aparecer, como pequenas lampadas palpitantes.

 

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Percorro toda a segunda linha. De roldão um posto da primeira linha invade a trincheira.

 

— 0 que ha?

 

— A primeira linha foi já evacuada e há já muitos mortos e feridos... —e o olhar do soldado, dilatado de espanto, parecia rebuscar ainda um refugio por onde se escapasse áquelle inferno.

 

Ordeno-os e ficam guarnecendo uma banqueta de combate que tem um bom campo de tiro.

 

Efectivamente, confirmando a informação do soldado, alguns foguetes luminosos sobem para a extrema direita, já da segunda linha.

 

22 horas. — Subo a uma banqueta e perscruto a noite. Na frente a rede de arame emaranha-se entre as hervas. Atrás de uma árvore parece-me ver um vulto. Desloco dois sacos de terra para abrigar a cabeça e fico uns instantes debruçado no parapeito. E' um galho mexendo-se debilmente ao sopro da brisa.

 

Começam a vir os reforços. O comandante da companhia de reserva passa, informa-se comigo da situação e segue para o comando da minha companhia. As granadas da nossa artilharia passam baixas, batendo a primeira linha inimiga e a nossa primeira linha. Uma metralhadora pesada inglesa vem tomar posição junto do meu pelotão. Por cima do crepitar das metralhadoras e do assobiar dos «schrapnells», o fragor rouco e arripiante das explosões dos obuzes e dos morteiros apodera-se da noite, que se cerra tragicamente em volta como a cortina dum abismo.

 

Chega a primeira companhia do batalhão de apoio. A trincheira povôa-se de sombras. Um soldado fuma um cigarro, resguardando a chama dentro do chapéu metálico.

 

Doem-me os musculos das pernas, de percorrer continuamente a linha. Encosto-me a um travez e olho uns minutos para a rectaguarda. Línguas chamejantes, das posições da artilharia pezada, saem do horizonte. As trincheiras de comunicação enchem-se de murmúrios, de choques de metais, de passos abafados. São as tropas de apoio, que continuam chegando.

 

Uma granada explode com um rumor surdo e sinto uma sufocação na garganta.

 

— Gaz alarme!

 

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Ponho a mascara. Os chocalhos começam a badalar. Corre pela noite, como um grito de mau presagio, a voz das trombetas, e pela linha fora as espingardas que se abandonam, para se porem as mascaras, caem pesadamente nas passadeiras, produzindo o som cavo dum corpo moribundo que tomba.

 

Depois, os soldados imobilizam-se e a trincheira parece deserta.

 

23 horas. — Os oculos da mascara embaciam-se e a cada passo preciso de os limpar, esfregando com os polegares o fole de encontro à mica. Os foguetes iluminam toda a linha.

 

Os soldados, com as mascaras, acotovelam-se nos postos, como figuras satânicas de um círculo dantesco ou resvalam entre os taludes como fantasmas sinistros dum mundo subterrâneo. Um maqueiro, às apalpadelas, procura um caminho. Largo o bocal da mascara.

 

— Que ha?

 

A minha voz sôa, aos meus proprios ouvidos, dentro da mascara, como vinda do fundo dum tumulo.

 

Ouve-se um susurro de palavras dentro da mascara do maqueiro. Consigo perceber que à direita, na companhia de reserva, uma granada incendiaria matou quatro homens.

 

A violência do canhoneio começa a decrescer sensivelmente. Não ha a menor noticia dos alemães. Nem a segunda linha foi atacada, nem qualquer posição de morteiro ou metralhadora foi assaltada.

 

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O cabo do gaz vai avisando os postos:

 

— Tirem a mascara. Já não ha gaz!

 

Respira-se. Os pulmões, o coração, as veias dilatam-se. As estrelas parecem arder duma luz nova e a propria treva parece abrir-se em luz aos olhos ansiosos. Faz-se-me mais profunda a impressão de que a guerra descambou na mais aviltante miséria e de que é necessária uma sanção para tão horríveis crimes. O sangue referve num cachão de odio e de revolta contra aqueles que rebaixaram a existência humana até a fazerem descer à atmosfera mefítica dos canos de esgoto.

 

24 horas. — Cessou o fogo rolante. Algumas granadas rebentam ainda, como os últimos rugidos da fera, mas não pode haver duvida de que passou esta primeira hora de prova. O que ha a fazer é preparar o espirito para as intermináveis e terríveis horas que se vão seguir.

 

Vou até ao comando da companhia. Ao chegar ao abrigo do telefone passa o comandante da minha companhia, o capitão Celestino Soares, acompanhado de uma ordenança.

 

— Onde vai, capitão?

 

— Ao Posto de Socorros. Estou «gazofilado»...

 

E o rosto lívido do pobre rapaz desaparece na volta da trincheira.

 

Um soldado atacado de gazes contorce-se na estrada. Agitam-se sombras na boca da trincheira de comunicação que serve a companhia da esquerda.

 

0 segundo comandante, na sua voz lenta, diz-me que ha perto de 100 baixas, que um reconhecimento lançado sôbre a primeira linha não encontrou o inimigo, e que aos primeiros alvores da madrugada se fará a reocupação pela primeira companhia, ficando o meu pelotão de apoio.

 

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1 hora. — A' esquerda, o horizonte pontua-se de chamas e a noite vibra de novo sob o canhoneio. São os ingleses que, para desafogarem a nossa frente, fazem um «raid» em grande estilo.

 

2 horas.—O canhão calou-se. A treva é já menos espessa. Distingue-se já o fundo da trincheira. Começam a vir as noticias do que se passou na primeira linha. Um pelotão, comandado pelo alferes Vilhena, desligado da companhia, manteve-se até receber em forma a ordem de retirada; um posto de granadeiros foi inteiramente aniquilado; a guarnição duma metralhadora ficou soterrada sob os destroços e as ondas de terra levantadas pelos morteiros, mas conseguiu desenterrar a metralhadora e os tambores e ganhar a segunda linha; um homem tinha endoidecido e vagueava pelas trincheiras.

 

3 horas.— A noite ia-se fundindo ao bafo da madrugada. Desenhavam-se já os ângulos das trincheiras e as filas das arvores começavam a delinear-se, além da rêde de arame. 0 nascente principiava a tiugir-se de purpura, por traz do bosque, cuja massa sombria tapava a rectaguarda inimiga como uma muralha misteriosa.

 

É para a direita, agora, que o canhão troa, bruscamente, como se o horizonte se possuísse duma convulsão epilética. É, provavelmente, um «raid» simulado dos ingleses para nos facilitar a ocupação da primeira linha.

 

4 horas. — O meu pelotão está pronto à "primeira voz. Uma ordenança vem comunicar-me que a ocupação se fez sem incidente e que é dispensada a cooperação do meu pelotão.

 

É dia claro. Meio disco do sol está já acima do horizonte. As azas das andorinhas tracejam de negro o azul ferrete do céu. Através da terra, por onde ainda parecem errar umas sombras indecisas que se vão precipitando nas ravinas ou fugindo pelas linhas de água, a luz esparge-se como um leite luminoso que os primeiros raios do sol pincelam ligeiramente de oiro. Uma nuvem, pela forma e pela côr, traz-me à lembrança o manto de Sant'Ana duma cópia de Murillo que vi em qualquer parte.

 

5 horas.—Distribue-se o café. Os soldados deixam-se adormecer nas banquetas. É ainda a hora do alerta, mas deixo repousar essas almas simples e heróicas. Um deles deitou-se ao comprido e pôs o capacete sôbre os olhos. Uma borboleta pousou-lhe um momento nos lábios, que se contraíram num instintivo movimento de repulsa, e seguiu a linha da trincheira.

 

Fui também andando. No sítio em que caíra a granada incendiária, o paracostas ficára esbarrondado e a passadeira partida. Longas pastas de saugue atestavam sôbre a banqueta e as grades de revestimento que ali tinham morrido alguns heróis obscuros. Uma papoula vermelha, que irrompera entre as travessas da grade, parecia debruçar-se sôbre a banqueta para chupar o sangue.

 

A terra espreguiçava-se num imenso bocejo de mulher que acordou após uma noite inteira de deboche. As cabeleiras verdes das arvores, acariciadas pela brisa, ondulavam brandamente sobre as terras abandonadas às ervas daninhas.

 

Um sargento contemplava fixamente as manchas de saugue. Tinha posto a espingarda a um canto e os lábios grossos de ribatejano tremiam-lhe. Os nossos olhos encontraram-se.

 

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— O' meu alferes!... Emquanto tantos aqui morreram, sem ao menos terem o consolo de enterrar a baioneta no corpo dum inimigo, em Portugal toda a noite se passou em danças e descantes...

 

Um aeroplano inglês passou, em reconhecimento, para as linhas inimigas.

 

Fitei o rapaz. Perguntei-lhe:

 

— V. deixou lá a namorada?

 

Uma lagrima apontou-lhe nos olhos negros, virou costas, pegou na espingarda e retirou-se para o abrigo.

 

6 horas.—Levantei o álerta. A lagrima do sargento como que borbulha dentro de mim. Uma onda de saudade me toma docemente o coração. Lembro-me da linda capela que os meus oito anos erigiram ao grande santo, por baixo das janelas da minha casa, sob o sorriso indulgente e o olhar vigilante de minha mãe. A linda capela! Renques de buxo emolduravam o largo; na rampa de musgo todos os santos do calendário nacional; e no alto o Santo Antonio com a sua careca luzidia, o seu capuz de franciscano, os seus sagrados pés nus metidos nas humildes sandálias, e o Menino Jesus na palma da mão, tão pequenino como o meu coração de criança...

 

Cheguei ao abrigo, tomei umas goladas de café e deixei-me cair pesadamente, como um cepo, na cama.

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

 

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