Discursos sobre a cidade - Por António de Souza e Silva
NOTAS SOBRE A LEITURA DO «SOLDADO-SAUDADE» E À SUA MARGEM
I
Assumidamente sou de alma duriense. Temperada por gerações de «escravos da terra» - que já não têm certeza que seja sua - mas que a trataram (e ainda tratam, embora com outros meios) como um jardim e que, por isso mesmo, tudo quanto pensam e sentem sai-lhes naturalmente do coração. Os durienses têm um coração enorme. Do tamanho deste mundo.
Mas o Douro é Trás-os-Montes. E Trás-os-Montes sem o Douro não se completa.
Mas se Trás-os-Montes e esse tal Reino Maravilhoso que nos apresenta (e canta) o nosso escritor e poeta maior, Miguel Torga, ele é também, traz consigo, aquilo que é consubstancial ao próprio homem - a sua contradição.
Há cinquenta anos que vivemos nestas paragens norte de Trás-os-Montes. Aqui nos fizemos homem. Aqui fizemos a nossa vida. Nossa alma continua a ser a de um humilde cavador duriense.
Mas, Trás-os-Montes, de que tanto nos orgulhamos, e que é tão cantado e desejado pelos nossos maiores, cumpriu-se?
Infelizmente, creio que não!
Abril trouxe uma lufada não só de Liberdade como de Abertura e Desenvolvimento a este pequeno «país». O poder autárquico, nos primeiros tempos, trouxe progresso, desenvolvimento e qualidade de vida. Mas foi incapaz de evitar a «sangria» das suas gentes para o grande «oceano» das quatro paragens do mundo.
Os portugueses persistiram - e quantos transmontanos se contam entre eles! - num modelo de desenvolvimento que privilegia um litoral (sem qualidade de vida), onde se concentra a grande massa de votantes. Por cá, cada autarca foi transformando o território que era suposto desenvolver, como se fosse uma sua coutada. Em vez de pensarmos em Trás-os-Montes num território como um todo, cada um de nós, tendo à cabeça o «cacique» que elegemos, simplesmente olhamos para o nosso próprio umbigo, a nossa própria sombra, esquecendo-nos do território que fica ao nosso lado, e que nos é complementar para nos podermos desenvolver a uma escala que nos dê uma certa autonomia, desenvolvimento, projeção e dignidade. Dizem os técnicos, escala. No uso de uma estratégia comum. Sem competições, que apenas não só delapidam os nossos parcos recursos financeiros, como nos empobrecem cada vez mais!
Desde Bragança a Vila Real, cada concelho promove e desenvolve as mesmíssimas coisas sem qualquer visão de conjunto. Isto, para já não falar na estratégia suicida e «antropofágica» das capitais de distrito, que tudo querem à custa dos outros concelhos que são a razão da sua artificial existência. Porque se circunscreve a razões de índole puramente administrativas. Tão só. Temos uma mentalidade pequena. Somos muito pequeninos, incapazes de ver um pouco mais além. É, naturalmente, uma questão cultural. Advinda de um individualismo que chega a atingir as malhas do patológico: só o que é nosso, da nossa terra é que é bom; o resto, não presta! Quando, afinal, só nos completamos com o outro, a outra nossa metade!
II
Mas não era disto que hoje queríamos falar. Foi o folar, os pastéis, o fumeiro, os sabores (da terra e dos céus) que me trouxeram até aqui, quando simplesmente queriamos falar da alma e da vida transmontana (duriense), plasmada na escrita dos nossos maiores. Dos nossos contistas. Que os temos do melhor que há. Desde Domingos Monteiro, João Pina de Morais, João de Araújo Correia e Miguel Torga.
Na comemoração do Centenário da Grande Guerra, ao tentar conhecer a participação dos portugueses no conflito, em especial dos militares do RI 19 e do Alto Tâmega, fui ao encontro de duas obras de Pina de Morais, natural de Valdigem, Lamego: Ao Parapeito e Soldado-Saudade.
Não peço ao leitor (a) que conheça a fundo e se especialize sobre o que foi este conflito. Tão-somente que o conheça, conhecendo um pouco do que foi a história dos seus antanhos. E que comece pela pena e alma de um antigo combatente, que foi Pina de Morais. Tomando conta dos «horrores» da guerra e «vibre», como ser humano, ao ler cada capítulo deste extraordinário testemunho que ó o Soldado-Saudade.
Deixamos aqui ligeiras impressões suscitadas pela leitura dos seus capítulos.
Lendo os nossos melhores contistas, sinto-me, cada vez mais, duriense, mais transmontano, mais português, apesar de saber e (re)conhecer que, hoje em dia, a nossa pátria é o Mundo. Mundo esse que, para o ser verdadeiramente, humano, naturalmente, se constrói no meio e com as diversas diferenças, entre as quais a da alma portuguesa cuja essência é a sua constante diáspora.
Mas, contemos o que vertemos em escrita logo após a leitura do Soldado-Saudade:
III
Soldado-Saudade, de João Pina de Morais, misto de memórias e diário, tão a jeito do grande contista duriense e transmontano, relata-nos cenas vividas por um tenente, militar de profissão, na Grande Guerra.
A sua leitura, na qual se descobre, com grande pendor, um homem que escolheu a guerra como cenário integrante da sua profissão, toca-nos pela humanidade prenhe, nos seus capítulos, de memórias vívidas da guerra por que passou.
A dedicatória que faz no livro emociona, ao dedicá-lo «às mães dos combatentes da Grande Guerra - um filho como os vossos - pede carinho da vossa lembrança».
Recorde-se que, quando Pina de Morais chega a casa, vindo da Flandres, sua mãe havia morrido!
Li-o em pouco menos de um dia. Não despeguei o olhar dele enquanto não acabei de ler a sua última palavra.
Idêntico entusiasmo já me tinha causado Sangue Plebeu, uma outra obra de Pina de Morais, lido há uns anos. Sangue Plebeu toca-nos pelos lugares e pessoas da nossa infância; Soldado-Saudade pela profunda humanidade que dele se respiga em tempos de guerra.
Expressemos algumas notas, muito sucintas, sobre os capítulos que mais nos despertaram a atenção.
«Cauchemar», «Maçonaria de Trincheiras», «O Capitão dos ‘Souvenirs’», «’O Ganga’ bom soldado», «A Melhor Esmola» são capítulos onde melhor podemos observar a enorme e prodigiosa capacidade de adaptação do homem-soldado português a situações extremas de dor e sofrimento, vividas num mundo onde a morte é o cenário perene, permanente, mas assumidas com singularidade, estoicismo, coragem, com verdadeira humanidade e, não raras vezes, com bonomia e recortes de certa ironia.
Mas, de todos os capítulos desta magistral obra, gostaria de destacar «A Morte do Pierrot»: um dos capítulos mais emocionantes do Soldado-Saudade passado na terra-de-ninguém!
Em ambiente e teatro de guerra ainda há tempo para se viver com intensidade a festa da vida. A história d’«O ‘Lisboa’» e da sua belga; da somítica «Madame la Fermière» e da sua infidelidade com o oficial português são prova cabal de que nem a guerra mata a atração e o amor que os seres humanos têm uns pelos outros. Nas proximidades do cenário permanente da morte, são verdadeiros cânticos e hinos à vida.
Só uma alma pura transmontana é que pode dar vida e nos fazer vibrar com a linda história da «La Petite Viève» com a sua constante expressão: «Alemanes bombardent - nô bonne!»
«O Último Natal da Guerra» (1917). Não é só a verve que fala. É toda uma alma que transborda, mexendo com as mais ínfimas recordações da nossa infância. Como Pina de Morais nos faz lembrar os natais da nossa meninice, vividos nas noites frias das faldas do Marão! Que humanidade sentida em cima do parapeito, em plena guerra, num desejo universal de tréguas, sossego e paz! E que revolta, que mexe e nos remexe em todo o nosso ser como homens de paz, quando vem a ordem de bombardear um pacato e sossegado boche que, na Paz do Senhor, também quer viver a sua Ceia do Natal, dentro das condições misérrimas de toupeira, em paz e tranquilamente! E como a falta de respeito para com um dia sagrado, atiça ódios que, na volta do Ano Novo, se repercutem em lançamentos de «gás cruz amarelo e mostarda».
Pina de Morais ainda tem tempo para expandir os seus sentimentos quantos aos nossos «amigos e fieis aliados», os ingleses, quando nos fala da insipidez do viver britânico não comparável com o descarado, atrevido e apaixonado latino-luso.
«Os Médicos». Em tempo de guerra, como esta foi, não faltou o elogio sentido pelos colegas médicos combatentes, portadores de outras armas - não das que fazem a morte, mas que teimosamente lutam pela vida.
«O Medo». Os bravos também têm medo. E não é nenhuma vergonha confessá-lo. O medo é consubstancial ao herói. O herói tece-se no meio do medo da situação excecional. Tudo o resto é simplesmente banal!
«Ingleses e Americano»s. Na guerra, as culturas também contam e definem carateres. Carateres que dão conteúdo às relações entre as pessoas. Em que se discute a guerra e o modo como ela é - ou deveria ser- conduzida.
«Uma francesa famosa». Corações apaixonados; amores vadios e errantes e os seus ardis e artimanhas.
«Últimas páginas d’um diário» são as últimas palavras de um diálogo último, pressentido, de um filho perante uma mãe que, à sua chegada, já tinha morrido pelo filho na guerra!...
Livro a não perder. Não só porque nos relata episódios de uma guerra em que os nossos «maiores» nela estiveram implicados. Em que lhe sofreram os horrores. Em que lhes ficaram as sequelas. Que fez parte da vida deles. E também das nossas, seus filhos. Porque sempre atual. Toda ela cheia de cenas e episódios de vida, vivida intensamente. No fio da navalha em que se entretece a vida e a morte. Plena humanidade.
IV
E, por último, lida esta obra, este trecho poético de Affonso Romano de Sant’Anna, que não nos sai da mente. E nos obriga a refletir em tempo de Páscoa - entre a Vida e a Morte - na construção de um outro Mundo - numa «Ressurreição»:
[...] Os homens amam a guerra
E mal suportam a paz.
Os homens amam a guerra,
portanto,
não há perigo de paz.
Os homens amam a guerra, profana
ou santa, tanto faz.
Os homens têm a guerra como amante,
embora esposem a paz.
[...] Durante séculos pensei
que a guerra fosse o desvio
e a paz a rota. Enganei-me. São paralelas
margens de um mesmo rio, a mão e a luva,
o pé e a bota. Mais que gêmeas
são xifópagas, par e impar, sorte e azar
são o ouroboro - cobra circular
eternamente a nos devorar.
[...] Acabará a espécie humana sobre a Terra?
Não. Hão-de sobrar um novo Adão e Eva
a refazer o amor, e dois irmãos:
Caim e Abel
- a reinventar a guerra.
António de Souza e Silva