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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

23
Jul20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 11


1600-larouco (47)granjo XI

estrambolicas

 

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 11

 

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Podia fazer alguns comentários à crónica mas prefiro que os leitores tirem as suas conclusões. Reparem só na descrição da interacção do autor com as personagens do povo mais simples. Só uma pessoa com tanta classe age daquela maneira.

 

Luís de Boticas

 

 

UMA TROVOADA EM BARROSO

 

A previsão do burro – A solução d'unz enigma – A subida ao Larouco

 

 

Passa debaixo da varanda um velhote montado n'um burro. A caravana está prestes. A mula carrega as provisões, o cavallo está devidamente albardado, e o guia prescuta o céu, onde as derradeiras estrelas fecham as pupilas azues.

 

E o velhote vê-nos preparados para a marcha, tira o lenço da cabeça, cumprimentador e humilde, e lança prophecia:

 

— Não se mettam ao caminho. Temos ahi a trovoada!

 

No céu não havia uma núvem. Corria uma brisa fresca. Nada fazia pressentir a approximação da trovoada.

 

— Homem, você não acordou bem da cabeça... — returque o guia.

 

E o velhote observa:

 

— Repare para as orelhas do meu burro.

 

E o burro arrebitava as orelhas, voltando os pavilhões para o norte, encolhia a cauda entre as pernas e dilatava ruidosamente as ventas.

 

1600-seara (27)granjo XI

 

Olhamos uns para os outros, e enquanto o velhote ageitava o lenço de Alcobaça, atado na forma de turbante, às fontes encanecidas, as gargalhadas estugiram, fazendo vir às janellas das casas vizinhos alguns rostos estremunhados.

 

Lá de longe, o velhote ainda gritou:

 

— Tenham cautela!

 

À esquerda ficam as touças de Meixide. A luz como que se esfarpa entre as galhas. Uma andorinha voa alto. Em frente o Larouco. Uma grande columna de fumo se ergue, em espiral, da base da montanha até ao anil desmaiado da madrugada. De vez em quando a brisa faz oscilar a columna e vêem-se duas linhas de fogo, uma recta, outra convexa, caminhando em sentido contrário. A serra arde. Uma torga que os carvoeiros deixaram em brasa e que ao sopro do vento se converteu em chamma, uma faúlha que se escapou d'um lume de pastores e que cahiu n’uma moita secca, a ponta de cigarro d'um viajeiro, incendiaram a montanha. Soube, adeante, em Solveira, que o incêndio tomara durante a noite proporções phantasticas. Nas povoações vizinhas da serra, portuguezas e gallegas, tocou-se a rebate e para apagar o fogo chegaram a desviar-se inutilmente regatos e levadas, e a fazer-se debalde profundos valados. O incêndio lavrava sempre, queimando carvalhos e urzeiras e torturando os pastos. O reverbero das chamas chegava a Solveira e em Santo André e Villar de Perdizes andava-se nas ruas como de dia.

 

incendio avel.jpg

 

Os olhos vão-nos presos na columna de fumo e só damos fé de que as nuvens comem já o valle quando em volta de nós cahem as primeiras pingas grossas, levando o pó e trazendo-nos às narinas o cheiro terra.

 

Sempre tivemos a impressão de que o burro é um animal calumniado. Não só o burro é um animal elegante e inteligente, em contrário do que se affirma commumente, como é em regra dotado de aptidões que falham à maioria das creaturas humanas. As orelhas do burro do bom velhote valem bem todas as prendas de certos homens, que por bem conhecidos se não individuam, e que por andarem com as mãos pelo ar imaginam que têm direito a desfazer nos burros.

 

1600-sanabria (67)grnjo-XI

 

Apressamos o passo. O guia encadeando os rr, ou fazendo estoirar o lodão nas retrancas da mula, faz ir tudo de escantilhão. A plaina continua, intermina e monótona. Alguns lavradores fazem as sementeiras. Aqui e além, uma mulher de capucha, um homem de polainas de junco e de crossa, espargem os montículos de estrume.

 

A chuva cae em cordas grossas. Alcançamos Solveira e respiramos.

 

Acolhemo-nos a uma taberna, onde faz de banco um cortiço de abelhas.

 

O torvão ronca. Passam carvoeiros, com as caras escondidas nas capuchas de saragoça e os socos ferrados batendo as pedras.

 

A mula e o cavallo abrigados n'um pateo contemplando melancholicamente a rua, onde cae agua dos colmos. O cavallo é cego d'um olho.

 

O guia propõe-nos o seguinte enygma:

 

— Qual dos dois vê mais, a mula ou o cavallo?

 

E mordiscando a porta do cigarro, o guia assume um ar importante.

 

É o taberneiro quem decifra o enygma, depois de eu ter demonstrado mais uma vez à minha absoluta incapacidade.

 

— Vê mais o cavallo, porque tendo um só olho vê dois olhos à mula, e esta, com os seus dois olhos, vê só um olho ao cavallo.

 

A chuva começa a levantar. O sol deixa-se quasi ver por cima da egreja, em cuja torrela branca poisam duas pombas. Debaixo d'um alpendre, um serralheiro ambulante concerta um objecto de cozinha.

 

Sobre o Larouco as nuvens galopam. São as Walkirias que passam.

 

granjo XI larouco

 

Aproveita-se a aberta e giramos até Gralhas.

 

Segundo o «ltinerário» de António, o Pio, e segundo as «Memórias para a história eclesiástica do arcebispado de Braga, primaz das Hespanhas», pelo padre D. Jeronymo Contador d'Argote, seria aqui Caladunum, a primeira «mantion» que as legiões romanas encontravam na via militar de Aqua Flaviae a Bracara Augusta. Há, effectivamente, perto da povoação um sítio, a «Ciada», onde têem apparecido columnas, moedas, objectos de uso comum, aras, inscripções, materiaes de construção romanos, restos de um aglomerado urbano ou de uma estação militar.

 

Alguns vizinhos ficam abismados quando tropeçam com a «tegula» romana, o que acontece a cada passo, quando abrem um sulco ou escavam um poço. Põem-se a magicar, os pobres diabos, no facto de serem actualmente todas as casas cobertas de colmo e há tantos annos ter havido ali casas cobertas de boa telha, e ficam-se scismando se o mundo não terá andado par traz e não estará perto do dia do Juizo Final.

 

Uma escavação quasi à superfície desenterraria alguns trechos de muralhas e permittiria a reconstituição da «mantio». Mas não vale a pena preocuparem-se com isso nem os governos, nem os municípios, nem os sábios das tantíssimas academias que pululam em Portugal e cujos diplomas podiam muito bem substituir as antigas cartas de conselho.

 

A trovoada ronda em volta do Larouco. Dir-se-hia que as penedias veem aos rebelourões pela serra abaixo.

 

1600-sanabria (107)-grajo XI

 

Uma moça loira, os olhos verdes refletindo, como pequeninos vitraes, as imagens, e que a chegada da caravana attrahiu à tabemoria, fia na roca, inclinando de vez em quando o pescoço branco para molhar com os lábios carnudos e frescos o fio de lã.

 

O guia deita a cabeça de fora, espreitando inquieto o horizonte.

 

A moça sorri e adverte:

 

— A trovoada é como o lobo: morde e passa.

 

A sentença agrada-me,

 

— Menina podemos ir ao Larouco?

 

As pupilas verdes fixam-me. O fuso pára um momento.

 

— Quando o trovão ronca no vale O sol canta na serra.

 

E o fuso começa novamente a girar entre os dedos brancos como a lã.

 

Não hesito um momento. A pitonisa falou.

 

— Rapazes acima.

 

O guia torce o nariz. O photographo, olhando a machina, medita sobre as consequências da aventura. A moça continua a sorrir. No seu sorriso parece-me ver um fundo de ironia.

 

— Acima!

 

 

Antonio Granjo

 

 

 

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