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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

20
Set13

Discursos Sobre a Cidade - Por José Carlos Barros


 


ESSE SORRISO QUE PARECIA TER MUITAS COISAS GUARDADAS LÁ DENTRO

 

José Carlos Barros

 

Clarisse tinha razões para levar a sério os desajuizados impulsos da irmã; sabia que nunca voltava atrás depois da declaração de uma vontade. Quase sempre, é certo, se tratava de coisas frívolas; quase sempre relacionadas com a afirmação de igualdades de género. Mas havia nela uma força e uma energia que traziam à superfície, num mesmo impulso, a determinação e a proximidade dos desastres.

 

"Pois este ano vou no andor da Senhora da Livração. Não levo almofada, não mudo de ombro e não me revezo",

 

dissera ela recentemente, num jantar de sexta-feira em que alguém explicava as razões

 

("até porque fisiologicamente são preparadas para as funções da maternidade")

 

por que deveriam proibir-se as mulheres de participar nos grupos dos andores da festa. Houve risos. Ela calou-se. Mas foi o que se sabe. Alguns dias depois o sol caía sobre a Vila num fio-de-prumo. Vinte e um de

 

AGOSTO DE 1955.

 

Sábado. Seis da tarde. Ouviram-se os sinos do fim da homilia. Maria do Rosário rejeitou ajuda quando foi preciso estender o andor na horizontal para que saísse da igreja e quando foi preciso, no adro, atravessada já a porta rectangular encimada pela oval de um óculo, erguê-lo de novo à altura dos seus mais de cinco metros. Os morteiros anunciaram a saída da procissão. Milhares de pessoas procuravam lugar ao longo das ruas, subiam aos muros e às árvores, às guardas da ponte de São Cristóvão, acotovelavam-se no ligeiro declive do Toural, ocupavam as varandas e os terraços, olhavam das janelas apoiando os braços nos parapeitos sobre as colchas bordadas. O andor da Senhora, com o peso da carcaça de madeira de pinho disfarçado pelo cetim e os veludos, o crepão e o afiche, descaía na direcção do apoio do lado direito, à frente, onde Maria do Rosário, a mais baixa dos quatro voluntários, tinha o prumo quadrangular assente directamente no ombro esquerdo, sem a protecção de uma almofada ou uma toalha dobrada de feição. Milhares de pessoas assistiam ao movimento muito lento, com paragens sucessivas, da procissão; e olhavam esse rosto altivo, esse sorriso que parecia ter muitas coisas guardadas lá dentro. Milhares de pessoas, durante quase duas horas, viram Maria do Rosário num dos apoios do andor da padroeira, altiva, a subir a Rua Vinte e Oito de Maio, a chegar ao Toural, a seguir pela Rua Direita, a subir pelo Posto da Guarda e pelo Cambedo, a chegar à estrada nacional no Alto da Ribeira, a descer pelo Santa Cruz, a regressar à rua principal em sentido contrário, a atravessar a ponte, a chegar enfim à igreja. Nenhuma vez, ao longo do percurso, mudou o ombro de apoio ou foi substituída na tarefa pelos acólitos que acompanhavam o andor e tinham por função ir revezando o grupo de partida. O sangue escorriam-lhe pelo braço. Uma nódoa negra começava a alastrar, a descobrir-se na pele nua sob a túnica de linho que vestia. Várias pessoas, ao longo do percurso, saíram do passeio ou desceram um muro a interromper a solenidade peregrina para lhe limpar o sangue com um lenço ou uma toalha, ou a tentar, em vão, colocar-lhe uma almofada entre a carne viva e o prumo quadrangular de pinho que continuava a cair, inteiro, sobre o ombro esquerdo. Uma onda crescia por dentro de uma bola de silêncio. Os romeiros iam perdendo a sua identidade para se transformarem num corpo colectivo que começava a dividir a devoção entre a imagem da Senhora, com a sua coroa de ouro, com o seu ceptro, com o seu manto azul, e a imagem de uma mulher que sorria enquanto o sangue se espalhava na pele como uma cicatriz de remorso. Havia lágrimas nos olhos. Era como se a promessa de Maria do Rosário tivesse raízes fundas e decorresse de uma graça que tocava todos em fé e milagre. A onda crescia, ligava os elementos dispersos. Até, de súbito, se ouvir apenas, vindo de muito longe, do final do cortejo, o rufar lento de um tambor. Deixou de se ouvir a fanfarra, deixaram de se ouvir os acordes melódicos dos instrumentos de sopro das duas bandas de música, deixou de se ouvir o ruído de fundo das vozes, dos passos, dos objectos mudados de lugar. E, enfim, deixou de se ouvir o tambor para que o silêncio descesse a toda a largura do vale e o milagre de uma fé colectiva, íntima, se sobrepusesse a tudo. E tudo, afinal, não decorria senão de um capricho de Maria do Rosário, do orgulho, do secreto júbilo de, nessa noite ainda, no jantar de festa da casa dos Ponteiras, poder apenas olhar os homens, olhos nos olhos, sem uma palavra, sem contrair um único músculo do rosto além dos que são necessários à definição de um sorriso.

 

 

in Um Amigo para o Inverno. Romance. Edição Leya, Casa das Letras, 2013.

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