Treze Contos do Mundo que Acabou - Vida de Cão
Conto IV
(2ª e última parte)
Vida de cão
(…) O fogão de ferro ao canto da parede, com o seu tubo negro do chupão a vazar o tecto, aparentava nunca ter visto lume. Pelo menos a Adelaide garantia que, nos seis invernos que passara sentada ao lado dele, nunca de lá saíra calor que lhe desengaranhasse as mãos. Mas, para tudo há uma primeira vez, e certamente a novidade haveria de reforçar ainda mais a motivação pela escola.
-Horácio, chega ali a casa e pede à tua mãe se nos dispensa uma gabelinha de lenha miúda, e tu, Joaquim, pega dinheiro, e vai à taberna por fósforos. Vá, não se demorem, é ir num pé e vir no outro!
Foi só o tempo de corrigir umas contas aos da terceira e de tentar consolidar o novo vocabulário do Gilberto pela descrição repetida de uma tira de banda desenhada, até que a porta se abriu para dar passagem aos mensageiros do fogo, com um braçado de lenha pitada e a caixa dos quarenta fósforos. Umas folhas de jornal amarrotadas, cobertas com os guiços secos, depressa eram pasto da magia de Prometeu e a canalha levantou-se ansiosa, rodeando o mestre, qual alquimista à beira do eureka, como se aquela fosse a primeira fogueira do mundo. Mas o fumo, impedido de se escoar pela chaminé que os pardais se habituaram a usar como maternidade em cada Primavera, depressa tomou conta da sala, obrigando à saída precipitada para o recreio, enquanto o ambiente arejava. Pior a emenda do que o soneto! O remédio era tentar desentupir o tubo e recomeçar tudo de novo. Não faltaram voluntários para trepar acima do telhado, mas coube ao Samuel o trabalho de ajeitar um arame grosso, em forma de anzol, e pescar os vários manhuços de palha, dos ninhos que atuíam o buraco. Agora sim, a lenha crepitava com entusiasmo e o rubor do fogo breve se apoderou do ferro negro do fogão, irradiando o calor com que acabou de se adoçar a manhã.
Dali em diante, os gélidos carambelos entremearam com semanas de dilúvio, até às primeiras neves pela Santa Luzia, e todos os dias foi necessário alimentar a fornalha do novo contentamento, ora com os ramos decepados do velho castanheiro do pátio, ora com pequenas gabelas de lenha que as mães iam mandando e, por fim, até os tampos sebentos e os bancos inúteis das velhas carteiras sem ocupante acabaram a servir o objecto motivador que a velha pedagogia sempre tinha desprezado. E quando as férias do Natal chegaram, foi com orgulho que o professor Silveira registou nas Fichas de Avaliação os progressos de cada um dos seus alunos. A Adelaide fazia redacções com menos erros ortográficos, o Samuel já não gaguejava na tabuada do sete, o Joaquim compreendia afinal a mecânica da divisão, os da primeira tinham-se dado bem com o método global de iniciação à leitura, o Fernando era uma revelação permanente e o Gilberto dava finalmente sinais de socialização - já não corria de gatas a roubar a bola aos colegas para trazer ao professor e a cada dia integrava novas palavras nas conversas, que começavam a ser espontâneas. Afinal o bom senso, o carinho e o aconchego do fogão tinham a eficácia de um santo milagreiro. Só não conseguira ainda resposta ao ofício dirigido ao Delegado Escolar, onde mui respeitosamente solicitava um pequeno reforço financeiro para a caixa escolar e que fosse considerada a dotação da escola de Valcovo com o mobiliário adequado, em substituição das velhas carteiras, sujas e desengonçadas que tinham escapado à purga infernal do fogão. Mandaria, ainda assim, uma segunda via, com cópia ao senhor Presidente da Câmara que o povo acabara de reeleger. A ver vamos, como diz o cego!
O novo período lectivo trouxe finalmente as respostas da administração. Não estava previsto no orçamento da Delegação o reforço das Caixas Escolares, nem sequer se contemplavam verbas específicas para aquecimento, mas, dias depois, da edilidade vinha a garantia de que estava a decorrer o concurso público para aquisição de mobiliário escolar e que Valcovo não seria esquecido. Do mal, o menos, que o pior do Inverno já dava mostras de se querer despedir.
O amarelo cheiroso das mimosas abria as portas à Primavera e o sol embevecido convidava a frequentes passeios pela aldeia, quer fosse para testemunhar a paridura de uma ovelha e o tem-te não caias taralhoco do pequeno anho, quer fosse para espiar o casal de lontras no fundão das Lajas, em mirabolantes perseguições às trutas, ou tão só para achar o ninho que a pêga fala-barato ou o cascarrolho guerrilheiro tinham camuflado na espessura do giestal. A escola era agora também a coroa das fragas onde se empelouricavam, a agueira dos lameiros onde chapinhavam e tudo o que em volta fervilhava de vida nova e promissora. No regresso à sala, consolidavam-se todas as situações de aprendizagem, fazendo relatos, descrições, desenhos, teatrealizações e, por fim, a avaliação crítica de comportamentos e avanços.
O Fernando começava a ler de carreirinha e pediu licença para tirar um livro do pequeno armário da biblioteca escolar. A escolha recaíu sobre "A moderna criação do porco", título que ele conseguiu decifrar em voz alta, pausadamente, para espanto de todos, sobretudo dos da sua idade que não conheciam ainda as consoantes todas. Por detrás dos óculos do professor merujaram duas lágrimas felizes. Finalmente a escola de Valcovo começava a ver-se livre do estigma do insucesso escolar e até os pequenos progressos no comportamento do Gilberto eram motivo de satisfação e de orgulho. Resolveu oficiar a hierarquia a solicitar a visita do senhor inspector.
Depois de se ter inteirado, incrédulo, do diagnóstico inicial de cada aluno e de ter verificado a correcção das fichas individuais de avaliação, o inspector acabou por desafivelar a máscara inquisitorial e fazer reparo positivo à total ausência de faltas e à atitude motivada e participativa da turma. Porém, de repente caíram-lhe os olhos ao chão com uma cena inusitada. Aninhado ao canto, junto do fogão, em fofa cama de palha, de orelhas guichas e focinho trémulo, um coelho mordiscava desenfastiado umas folhitas de leituga. Um coelho dentro da escola?! Pendurada na parede, logo acima, uma folha de cartolina revelava a escala semanal do encarregado da alimentação e higiene do bicho, com o nome de cada aluno em maiúsculas coloridas e, ao lado, um pequeno gráfico dos pesos e medidas, tomados todas as sextas feiras, juntamente com pequenas notas manuscritas assinalando observações relevantes, demonstrava à evidência o bom aproveitamento pedagógico da situação.
- Já me tinha constado que o colega usava métodos, como dizer, pouco ortodoxos... Mas a boa árvore conhece-se pelos frutos, e os seus, valha a verdade, aparentam ser bons.
- Faz-se o que é possível, obrigado. O caso mais complicado é o do Gilberto. Cresceu sempre isolado, fora do povo, e as suas reacções são pouco próprias de uma criança. Exige uma atenção permanente e não me pareceu ainda capaz de encetar uma estratégia de iniciação à leitura. É preciso dar tempo ao tempo, e senti que era prioritário estimular-lhe comportamentos de socialização.
- É estranho. Não será uma deficiência mental típica de famílias alcoolizadas? O colega continue lá com a aula que eu vou tentar compreender melhor o problema do moço.
Sentou-se como pode na carteira do Gilberto e começou por lhe desenhar as vogais em letra gorda e redonda.
- Vês, esta é o a, que serve para escrever a água, a árvore... e esta é o i da igreja. Agora pega tu no lápis, a ver se és capaz de fazer igual.
O Gilberto fixou uns olhos ferinos naquele homem gordo com barbicha de bode turrão, a tentar perceber que raio fazia ali, e que diabo queria dele. Não, não era ovelha daquele rebanho. Num abrir e fechar de olhos estava ferrado à dentada nas canelas do senhor inspector, que guinchava de dor e esbracejava assarapantado, preso no espaço acanhado da carteira como um tralhão numa esparrela.