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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

07
Ago11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Vida de Cão


 

Conto IV

(2ª e última parte)


Vida de cão

 

 

(…) O fogão de ferro ao canto da parede, com o seu tubo negro do chupão a vazar o tecto, aparentava nunca ter visto lume. Pelo menos a Adelaide garantia que, nos seis invernos que passara sentada ao lado dele, nunca de lá saíra calor que lhe desengaranhasse as mãos. Mas, para tudo há uma primeira vez, e certamente a novidade haveria de reforçar ainda mais a motivação pela escola.


          -Horácio, chega ali a casa e pede à tua mãe se nos dispensa uma gabelinha de lenha miúda, e tu, Joaquim, pega dinheiro, e vai à taberna por fósforos. Vá, não se demorem, é ir num pé e vir no outro!


           Foi só o tempo de corrigir umas contas aos da terceira e de tentar consolidar o novo vocabulário do Gilberto pela descrição repetida de uma tira de banda desenhada, até que a porta se abriu para dar passagem aos mensageiros do fogo, com um braçado de lenha pitada e a caixa dos quarenta fósforos. Umas folhas de jornal amarrotadas, cobertas com os guiços secos, depressa eram pasto da magia de Prometeu e a canalha levantou-se ansiosa, rodeando o mestre, qual alquimista à beira do eureka, como se aquela fosse a primeira fogueira do mundo. Mas o fumo, impedido de se escoar pela chaminé que os pardais se habituaram a usar como maternidade em cada Primavera, depressa tomou conta da sala, obrigando à saída precipitada para o recreio, enquanto o ambiente arejava. Pior a emenda do que o soneto! O remédio era tentar desentupir o tubo e recomeçar tudo de novo. Não faltaram voluntários para trepar acima do telhado, mas coube ao Samuel o trabalho de ajeitar um arame grosso, em forma de anzol, e pescar os vários manhuços de palha, dos ninhos que atuíam o buraco. Agora sim, a lenha crepitava com entusiasmo e o rubor do fogo breve se apoderou do ferro negro do fogão, irradiando o calor com que acabou de se adoçar a manhã.


          Dali em diante, os gélidos carambelos entremearam com semanas de dilúvio, até às primeiras neves pela Santa Luzia, e todos os dias foi necessário alimentar a fornalha do novo contentamento, ora com os ramos decepados do velho castanheiro do pátio, ora com pequenas gabelas de lenha que as mães iam mandando e, por fim, até os tampos sebentos e os bancos inúteis das velhas carteiras sem ocupante acabaram a servir o objecto motivador que a velha pedagogia sempre tinha desprezado. E quando as férias do Natal chegaram, foi com orgulho que o professor Silveira registou nas Fichas de Avaliação os progressos de cada um dos seus alunos. A Adelaide fazia redacções com menos erros ortográficos, o Samuel já não gaguejava na tabuada do sete, o Joaquim compreendia afinal a mecânica da divisão, os da primeira tinham-se dado bem com o método global de iniciação à leitura, o Fernando era uma revelação permanente e o Gilberto dava finalmente sinais de socialização - já não corria de gatas a roubar a bola aos colegas para trazer ao professor e a cada dia integrava novas palavras nas conversas, que começavam a ser espontâneas. Afinal o bom senso, o carinho e o aconchego do fogão tinham a eficácia de um santo milagreiro. Só não conseguira ainda resposta ao ofício dirigido ao Delegado Escolar, onde mui respeitosamente solicitava um pequeno reforço financeiro para a caixa escolar e que fosse considerada a dotação da escola de Valcovo com o mobiliário adequado, em substituição das velhas carteiras, sujas e desengonçadas que tinham escapado à purga infernal do fogão. Mandaria, ainda assim, uma segunda via, com cópia ao senhor Presidente da Câmara que o povo acabara de reeleger. A ver vamos, como diz o cego!

 


         

          O novo período lectivo trouxe finalmente as respostas da administração. Não estava previsto no orçamento da Delegação o reforço das Caixas Escolares, nem sequer se contemplavam verbas específicas para aquecimento, mas, dias depois, da edilidade vinha a garantia de que estava a decorrer o concurso público para aquisição de mobiliário escolar e que Valcovo não seria esquecido. Do mal, o menos, que o pior do Inverno já dava mostras de se querer despedir.


          O amarelo cheiroso das mimosas abria as portas à Primavera e o sol embevecido convidava a frequentes passeios pela aldeia, quer fosse para testemunhar a paridura de uma ovelha e o tem-te não caias taralhoco do pequeno anho, quer fosse para espiar o casal de lontras no fundão das Lajas, em mirabolantes perseguições às trutas, ou tão só para achar o ninho que a pêga fala-barato ou o cascarrolho guerrilheiro tinham camuflado na espessura do giestal. A escola era agora também a coroa das fragas onde se empelouricavam, a agueira dos lameiros onde chapinhavam e tudo o que em volta fervilhava de vida nova e promissora. No regresso à sala, consolidavam-se todas as situações de aprendizagem, fazendo relatos, descrições, desenhos, teatrealizações e, por fim, a avaliação crítica de comportamentos e avanços.


          O Fernando começava a ler de carreirinha e pediu licença para tirar um livro do pequeno armário da biblioteca escolar. A escolha recaíu sobre "A moderna criação do porco", título que ele conseguiu decifrar em voz alta, pausadamente, para espanto de todos, sobretudo dos da sua idade que não conheciam ainda as consoantes todas. Por detrás dos óculos do professor merujaram duas lágrimas felizes. Finalmente a escola de Valcovo começava a ver-se livre do estigma do insucesso escolar e até os pequenos progressos no comportamento do Gilberto eram motivo de satisfação e de orgulho. Resolveu oficiar a hierarquia a solicitar a visita do senhor inspector.


          Depois de se ter inteirado, incrédulo, do diagnóstico inicial de cada aluno e de ter verificado a correcção das fichas individuais de avaliação, o inspector acabou por desafivelar a máscara inquisitorial e fazer reparo positivo à total ausência de faltas e à atitude motivada e participativa da turma. Porém, de repente caíram-lhe os olhos ao chão com uma cena inusitada. Aninhado ao canto, junto do fogão, em fofa cama de palha, de orelhas guichas e focinho trémulo, um coelho mordiscava desenfastiado umas folhitas de leituga. Um coelho dentro da escola?! Pendurada na parede, logo acima, uma folha de cartolina revelava a escala semanal do encarregado da alimentação e higiene do bicho, com o nome de cada aluno em maiúsculas coloridas e, ao lado, um pequeno gráfico dos pesos e medidas, tomados todas as sextas feiras, juntamente com pequenas notas manuscritas assinalando observações relevantes, demonstrava à evidência o bom aproveitamento pedagógico da situação.


          - Já me tinha constado que o colega usava métodos, como dizer, pouco ortodoxos... Mas a boa árvore conhece-se pelos frutos, e os seus, valha a verdade, aparentam ser bons.


          - Faz-se o que é possível, obrigado. O caso mais complicado é o do Gilberto. Cresceu sempre isolado, fora do povo, e as suas reacções são pouco próprias de uma criança. Exige uma atenção permanente e não me pareceu ainda capaz de encetar uma estratégia de iniciação à leitura. É preciso dar tempo ao tempo, e senti que era prioritário estimular-lhe comportamentos de socialização.


          - É estranho. Não será uma deficiência mental típica de famílias alcoolizadas? O colega continue lá com a aula que eu vou tentar compreender melhor o problema do moço.


          Sentou-se como pode na carteira do Gilberto e começou por lhe desenhar as vogais em letra gorda e redonda.


          - Vês, esta é o a, que serve para escrever a água, a árvore... e esta é o i da igreja. Agora pega tu no lápis, a ver se és capaz de fazer igual.


O Gilberto fixou uns olhos ferinos naquele homem gordo com barbicha de bode turrão, a tentar perceber que raio fazia ali, e que diabo queria dele. Não, não era ovelha daquele rebanho. Num abrir e fechar de olhos estava ferrado à dentada nas canelas do senhor inspector, que guinchava de dor e esbracejava assarapantado, preso no espaço acanhado da carteira como um tralhão numa esparrela.

          

31
Jul11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Vida de Cão


 

 

Conto IV

(1ª Parte)


Vida de cão

 

          As terras pequenas, quando a história dos povos escolhe um dos seus filhos para herói nacional, assumem vaidosas a condição de berço que a divina providência quis abençoar e não mais toleram que a toponímia e a cartografia ignorem o tempo e o lugar onde a feliz conjunção astral se revelou.

 

           Bem ao invés, a aldeia de Valcovo, onde o cavalo do Apóstolo nunca perdeu ferraduras, suporta resignada o estigma de ter parido um regicida. E é tal o ar contrito e acabrunhado, de penitente na noite de Endoenças, exalado no calvário dos dias, que não voltou Deus a permitir que ali acontecesse coisa alguma que agravasse as contas que haverá de prestar no juízo final .


          As raras crianças, inevitáveis frutos dos impulsos carnais dos adultos, mal justificam a escola com que a República agradecida os quis reabilitar. Ao todo, e contando já com as que das aldeias vizinhas ali cumprem a obrigação da escolaridade, pouco passam da dúzia, matriculadas nas quatro classes.


           Quando o dois cavalos surgiu a arfar desengonçado no cimo do povo, os rapazes pararam as correrias e vieram juntar-se às três raparigas, no vão do muro onde antes fora o portão da escola, ensaiando uma saudação acanhada:


          - Bom dia, senhor professor!


          - Quem é que vos disse que eu sou o professor?


Os sorrisos, entre surpresos e envergonhados, esconderam-se uns atrás dos outros, deixando apenas passo à convicta serenidade de uns pézitos descalços, as mãos encafuadas nos bolsos das calças que, por certo, já tinham vestido um irmão maior:


          - O senhor veio no carro e parou à beira da escola, é porque é o professor.


          Esta lógica, de alto lá com ela, saída de uma cabecita russa, com dois lampiões de ranho acesos no nariz enfarruscado, acabava de mandar às urtigas o ar intrigante com que cuidara surpreendê-los.


          - Tens toda a razão, eu sou o vosso professor. E tu, como te chamas? Quantos anos tens?


          - Ando em seis. Sou Fernando.


          - Eu é que tenho a chave da escola! - avançou a Adelaide, reassumindo o protagonismo que lhe era devido pelos seus doze anos,  justificados por várias repetências.


          - Antes de entrarmos, gostava que vocês me mostrassem a aldeia, o sítio das vossas casas, a capela e tudo o mais que vocês entenderem, pode ser?


          O acanhamento depressa deu lugar à iniciativa orgulhosa de cada um conduzir o grupo conforme a rua e a proximidade da sua casa. Nunca, em tantos anos, a Dona Carminda saíra da escola para conhecer o povo ou as casas onde eles faziam vida. A tabuada, os ditados e as cópias, que ela usava como armas de arremesso contra o analfabetismo congénito, com a mesma força e pontaria com que eles jogavam pedradas às cabras tresmalhadas, e a palmatória dos sete olhos com que lhes forçava as portas estreitas do entendimento, faziam de todas e cada uma das manhãs um pesadelo que só alguns poucos superavam com aproveitamento. E quando o sistema esgotava de vez a obsessão de os desemburrar, voltavam livres às fragas e aos ouriços dos castanheiros. Toda a vida assim fora. Agora, esta de começar o primeiro dia de aulas a laurear pelas ruas do povo sem, nem ao menos, ter posto o rabo nos bancos das carteiras ou os olhos na ardósia empoeirada, trazia água no bico...


          A meio da manhã já cada um ocupava o lugar que o professor os deixara escolher, classes e saberes fora de consideração, e a todos foi distribuída uma folha lisa e um lápis para desenharem o que lhes viesse à ideia. Ainda assim sobejavam carteiras, as mais desengonçadas e sujas, com tantos anos de uso como o velho edifício da escola. O Fernando sentou-se sozinho ao fundo, usando o lápis como se, em toda a vida, não tivesse feito outra coisa. O Gilberto sarandava pela sala, numa irrequietude que contrastava com o silêncio e compostura dos demais, e, o muito que conseguiu do lápis foi esmagar-lhe o bico afiado e rasgar com ele a folha em tiras. Já no primeiro diagnóstico da oralidade tinha dado mostras de domínio da linguagem muito abaixo do normal para a idade. Eram mais os guinchos onomatopaicos que as palavras inteligíveis, e, quando os outros se riam de troça, respondia com olhares agressivos, como bicho eriçado à defesa.

          Começava assim o segundo ano de exercício do jovem mestre-escola, com as estratégias pedagógicas aprendidas no curso do Magistério Primário ainda frescas, a exigir o confronto voluntarioso e obstinado com a realidade. Acreditava estar ali por vocação e, depois do primeiro contacto com aquelas crianças e com o lugar onde vegetavam, começou a sentir que não tardaria a apaixonar-se pela missão. Mal acabou de recolher os desenhos, onde as mãos já domadas dos mais velhos tinham tentado representar invariavelmente o sol, as nuvens, uma casa de chaminé fumegante e dois pássaros de asa aberta riscando o azul do céu, separou os quatro trabalhos dos iniciados, incrédulo com o que via. O pouco que restava da folha do Gilberto, outras duas atravessadas por riscos negros do lápis que não obedece ainda à vontade da mão e, na última folha, a traço seguro e equilibradas proporções, um quadro descritivo da aldeia, com as suas ruas e casas, o tanque, a capela, o cemitério e, em destaque e pormenor, a máquina que o Presidente da Câmara tinha mandado para que desse um jeito na estrada antes das eleições. No resto da manhã não conseguiu deixar de passar os olhos, vezes sem conta, ora pelo Fernando com o ar sereno e autosuficiente que a farpela, pouco menos que andrajosa, persistia em contradizer, ora pelo desenho dele, mais atribuível a um pintor naif na madurez da produção do que a uma criança rota e descalça no primeiro dia de escola. Decididamente, não era possível!


          - Fernando, o que fazem os teus pais?


          - O meu pai e os meus irmãos andam com as ovelhas e a minha mãe está em casa.


          - Oh senhor professor, o pai dele é o coveiro, e a mãe deixou-o, que ele é muito bêbado e dava-lhe mau viver...-  apressou-se a rectificar a Adelaide.


          - E as irmãs estão ambas par Espanha, na vida... -  já agora, por que não contar a história toda como ela era, arriscou o Joaquim.

          - Quem é que te ensinou a desenhar, Fernando?


          - Não foi ninguém. A mim deu-me para fazer assim.


          Naquele instante, o professor Silveira tomou a decisão inconfessável de dedicar àquela criança o melhor da sua atenção, sem no entanto lhe ensinar o que quer que fosse. Havia dentro daquele pequeno ser uma semente que precisava apenas de ser acarinhada para produzir frutos de sabor insuspeitado. Guardaria para si o segredo, não fosse o diabo tecê-las, e aparecer-lhe por ali o inspector a chamá-lo à responsabilidade quanto à assumida negação do sagrado ofício pedagógico.


          As manhãs brumosas de Outubro fluíam entre a agitação motivada dos miúdos e a insatisfação constante do professor, as pantomimas zoomórficas do Gilberto e as surpreendentes respostas do Fernando. Passados os Santos e o Dia dos Fiéis, a primeira geada de Novembro veio colocar um problema a que a aritmética não dava solução -  era preciso aquecer a sala, para que todos pudessem suportar as horas de inactividade física com o mínimo de aconchego, e o frio não tomasse conta daqueles corpitos mal agasalhados. O fogão de ferro ao canto da parede, com o seu tubo negro do chupão a vazar o tecto, aparentava nunca ter visto lume. Pelo menos a Adelaide garantia que, nos seis invernos que passara sentada ao lado dele, nunca de lá saíra calor que lhe desengaranhasse as mãos. Mas, para tudo há uma primeira vez, e certamente a novidade haveria de reforçar ainda mais a motivação pela escola.


(continua)

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