Discursos Sobre a Cidade - Por José Carlos Barros
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Quase as Vuvuzelas da Selecção
um texto de José Carlos Barros
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Eram uma espécie de vuvuzelas daquele tempo: o metal em vez do plástico, a mesma forma aproximadamente cónica, um mesmo som esganiçado a abrir e a fender na propagação em eco. Sim, mais pequenas. Vendiam-se a quinze tostões na Feira dos Santos. Um sucesso. Um rapaz, primeiro, e depois outro, e depois todos os rapazes da Vila compraram a gaita – ou comprada lha traziam tios e padrinhos. Durante os dias seguintes não se ouvia outra coisa, da Senhora da Livração ao Jardim dos Correios, dos Correios subindo em duas direcções até ao Alto da Ribeira. O Mestre Zé Serralheiro, de porta aberta ao Largo do Toural, já não suportava pela oficina adentro o som de bandalheira cafre das cornetas. E então chamou um dos rapazes, o mais afoito e comandante de entre todos, e explicou, a voz muito dada, que os instrumentos de sopro lhe pareciam excelentes mas um cibo desafinados. Interrogado logo pelo jovem se não fazia o favor de afinar-lhe a gaita, explicou o Mestre que sim, com muito gosto, mas então que as juntasse todas e o serviço cumpri-lo-ia de uma só empreitada. Assim se fez; e o grupo em coro, sob o comando do moço afoito, foi ao Mestre entregar as gaitas num saco de lona de espantoso volume. Os rapazes à porta – que a nenhum foi dado nunca atravessar a pedra de entrada da oficina a mexer em martelos e escopros, maçaricos e rebarbadoras, vielas ou carretos de mudanças – e o Mestre a juntar sobre uma chapa metálica de dois centímetros de espessura, primeiro alinhadas, logo após em pirâmide cuidadosa, vinte e duas gaitas de quinze tostões compradas na Feira dos Santos de Chaves. A olhá-las de lado. Mas lá lhe terá parecido que o método não seria o mais adequado e voltou a enfiar as gaitas no saco, mexendo-o para que ocupassem bem os vazios, e enfim poisando-o na chapa. Foi o tempo de um ai: ergueu o maço de ferro muito na vertical e arremessou-o violentamente sobre o saco ouvindo-se um estridente barulho espatifado de cornetas. Mestre Zé Serralheiro respirou fundo; olhou os moços ainda suspensos do gesto; e explicou-lhes, numa voz vagarosa e muito adocicada, «que agora é que tocavam afinadinhas que nem os clarinetes da Banda do Couto».
E até hoje era proverbial este silêncio dengoso da Vila, espalhado das ruas e largos aos pinhais do Padrão, da Seixa ao Voluntário, do Noro até Onde-se-Juntam-os-Rios. Até hoje: porque ainda há bocado o Inácio saía da ourivesaria e viu uns oito moços a tocar vuvuzelas da Selecção em esganiçado esforço nas escadinhas da Câmara. Temeu o pior. Parou por instantes a caminho do Arsénio e não se teve (dizendo primeiro: «uuuui») que não lamentasse a falta do Mestre Zé Serralheiro: «ou muito me engana o ouvido ou estas gaitas estavam era a precisar de ser afinadinhas na velha oficina do Toural».