Discursos Sobre a Cidade - Xexa Lema, por Gil Santos
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Texto de Gil Santos
A via de caminho-de-ferro denominada linha do Corgo, era uma ramificação da linha do Douro que ligava Chaves ao Peso da Régua, numa distância aproximada de 96 quilómetros. Contornando íngremes declives, serpenteava por entre vinhedos da Régua à princesa do Corgo a cidade de Vila Real, cujo troço, sendo a primeira via estreita construída em Portugal, foi inaugurado em 1906 e contou com a presença régia de D. Carlos.
Inicialmente foi pensado internacionalizar esta via ligando-a a Espanha a partir de Chaves. porém a ideia não teve prossecução. Rasgando o miolo do centro norte, atravessava uma região de ímpar beleza, transportando as gentes serranas e algum turismo termal que rumava às inúmeras estâncias termais do seu percurso, como à época era moda. Seguindo o traçado de velhos caminhos públicos a linha chegou a Vila Real a 12 de Maio de 1906, a Pedras Salgadas a 15 de Julho do ano seguinte, a Vidago a 20 de Junho de 1919 e a Chaves somente a 28 de Agosto de 1921.
A estação da cidade de Trajano foi projectada para ser terminal de três linhas: a do Corgo vinda da Régua, a do Tâmega vinda das terras de Basto e a de Guimarães vinda da cidade berço. Estas duas últimas juntar-se-iam acima de Cabeceiras encontrando a linha do Corgo em Curalha, onde hoje existe o apeadeiro com o mesmo nome, cujo edifício comprou para casa de férias um emigrante americano rico. A Linha do Tâmega não passou do Arco de Baúlhe e a de Guimarães de Fafe. Como o caminho-de-ferro não prosseguiu para a Galiza, a estação de Chaves ficou mesmo como sendo fim de linha.
O Texas, como então era conhecido, era um comboio formidável. Durante largos anos uma locomotiva Alstrom a carvão de pedra movia, à força do vapor e de golfadas de fumo negro, carruagens de madeira de rara beleza. Acabou, infelizmente, por encerrar-se o troço Vila Real a Chaves a 1 de Janeiro de 1990.
Ora ao longo de muitos e muito anos o Texas era o único meio de transporte que servia para vencer as distâncias mais longas e com o qual se sonhava recuperar do isolamento milenar parte de província de Trás-os-Montes. Mas o melhoramento das estradas e o consequente desenvolvimento dos transportes rodoviários, votou à desgraça e ao abandono esta preciosidade. Porém, durante anos e anos fez chegar a Chaves muitos e muitos homens que, sem destino, pararam no fim da linha e pela cidade fizeram vida errante.
Assim aconteceu a Sérgio Lemos que por ser falho da fala dizia chamara-se Xexa Lema. Meteu-se um dia no comboio na estação de Alvações, em pleno Douro vinhateiro. Sem bilhete e sem destino, parou desvairado quando a linha terminou. Nunca ninguém deu pela sua falta nas terras de xisto e pela cidade se quedou até que a morte o fez desaparecer. Estabelecido em Chaves, vivia do expediente dos recados que ia fazendo e da caridade dos flavienses temente a Deus. Era castiço o Xexa e por ser respeitador e um poeta popular inato, era por todos estimado, acarinhado até. O seu modus vivendi era andar rua acima rua abaixo à cata de quem o ocupasse a troco de uns míseros tostões, umas vezes apregoando ladainhas sem sentido e outras remedando cenas que ia presenciando a outros.
Um belo dia, seguindo rua de Santo António acima, cruzou-se com o Cana Verde, em frente ao Comercial, que lhe deu as boas horas.
- Bom dia senhor! – Cumprimentou o Cana Verde.
O Xexa respondeu como a educação mandava, mas ficou a remoer:
- Bom dia senhor? Fonha-se: Senhor dos passos, passos do concelho, conselho de guerra, Guerra Junqueiro, Junqueiro Alcântara, Alcântara mar, mar tem peixes, peixes do alto, alto da serra, Serra da Estrela, estrela do céu, céu é azul, azul é tinta, tinta é óleo, óleo de linhaça, linhaça dá papas, papas para o menino, menino mama leite, o leite vem da cabra, a cabra tem cornos… ai ai ai ai… que o filho de uma puta me chamou cabrão!...
E acabava rindo, rindo como se tivesse chegado à mais bela e inteligente conclusão do mundo. E repetia a ladainha vezes sem conta, para gáudio de quem o ouvia.
Um dia observou uma cena, de que a seguir se dá nota, da autoria do Ventura, um sexagenário levado da breca e cheio de dinheiro por usufruir de uma gorda reforma de emigrante americano. Vivendo dos rendimento do Panrrelha, como diziam, passava os dias derringando polaina e arrotando postas de pescada dos seus feitos nas Américas, pelas tabernas da baixa. Sabia mais que a Mência e gostava de se armar ao pingarelho fazendo cenas tristes pelas ruas da cidade. Enchia o bandulho de vinho e petiscos nas tascas e calcorreando as ruas peidava-se como um boubelo. De bengala de cana na mão, à Charlot, quando a ventania flatulenta do bucho de unto apertava, estacava, dava duas voltas à bengala à laia do rodízio de moinho de vento e bojardava quanto podia. Fazia-o tão sonoramente quanto lhe era possível e sem fazer caso de quem o seguia. Consolado, o sem vergonha, ainda virava a fronha reluzente para trás questionando o flato:
- Vens ó ficas?...
Se alguém o censurasse, a resposta era a de sempre: que um médico americano o proibira de reter os gases sob pena de nó na tripa e por isso fogueteava pela sua saúde!
É evidente que não tardou que o Lema lhe copiasse o mau feitio e era vê-lo dias e dias rua Direita acima e rua de Santo António abaixo a bombardear à Ventura! Mas não fazia de conta, arreava-lhe tanto ou mais que o original. Era uma pândega!
Um dia de canícula em pleno Agosto, em que o sol castigava deveras pela hora da sesta, decidiu o Xexa matar a fome com os frutos quentes de umas figueiras que havia ali para a canelha do Rio, por trás do actual tribunal. Encheu o bandulho à tripa forra. Inevitavelmente os figos quentes deram em esfoura. Quando subia a Rua do Olival em direcção à Lapa, onde costumava dormir a sesta, não aguentou mais a força da natureza e arreou calças ali mesmo no cimo das velhas escadas do mercado municipal. Um polícia de ronda que descia a rua à sombra das tílias, surpreendeu-o a fazer de leque na via pública e não esteve com meias medidas, deteve-o e levou-o para a esquadra da Rua da Cadeia. Ali passou aquela noite no fresco da masmorra até curar a disenteria. No dia seguinte foi levado ao tribunal para, perante juiz de direito, justificar tão inusitado acto. Interrogado, contou como pôde o que se tinha passado. Quando o juiz, mal contendo a vontade de rir, lhe passava o sermão da praxe, cheio de vontade de o mandar em paz, ouviu do Xexa a seguinte explicação sui generis:
S’o Senhor doutor juiz
Comesse um figo tente
De certeza absoluta
Que ficaria doente
Foi o que aconteceu ao Xexa
Que ficou de caganeira
Queria o meretíssimo juiz que
Lhe cagasse n’algibeira?
E olhe que mesmo assim
O Xexa não se portou mal
Pois ainda aguentou
Até à rua do Olival
É claro que o juiz não conteve uma risada, mandando o infeliz embora sem castigo, perante o espanto do polícia que não acreditava no que ouvia.
De contente o Xexa Lema, enquanto descia a escadaria, prendava o agente da autoridade que o detera com a seguinte cantilena:
Caga cu não tenha medo, que o cagar é um sossego. Cago eu e cagas tu, caga tudo quem tem cu. Cagou Abel e Caim, cagai todos até ao fim!...
E ria, ria a bandeiras despregadas!
O Xexa Lema matava a fome como podia. O mais das vezes à custa da caridade das pessoas mais piedosas que, reconhecendo a sua desgraça e à conta de umas quadras, resquícios da sua veia poética e do tempo das cantigas ao desafio que botava pelas feiras do Alto Douro, lhe davam uma sopita.
Um dia, passando pela hora da ceia na tasca do Horácio ao Tabolado, foi entrando sorrateiro a ver se lhe calhava alguma coisita, pois estava lazarado. O velho tasqueiro, reconhecendo-lhe a desgraça, mandou que lhe servissem, por esmola, um cibo de pão, um copito de vinho e um caldo do dia: canja de massinhas de letras, na qual boiavam, entre os olhos de gordura uns mourrões da massa. Claro está que o Xexa Lema mamou tudo como se nada fosse e no final do repasto não se esqueceu de agradecer poeticamente:
Este caldinho de ceses
Com teses meses e reses
Não faltando os criaturos
Era bem melhor amigo
Se foss’antes de macruros!...
É claro que o tasqueiro, não tendo percebido nada do que o Xexa rezou, ofereceu a esmola por alminha dos que já lá tinha e mandou-o na paz do Senhor pregar a outra freguesia!
Gil Santos