UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM – DIA DE INVERNO II
— Quem será o primeiro? O mais afoito? Qual dos meus vizinhos e companheiros se atreverá a pôr a cabeça fora do ninho ou do buraco onde se recolhe? Quem terá coragem de convidar-se para um passeio nesta manhã tão fria? – interroga-se o pardal, ainda sonolento, a espreitar, aconchegado, no beirado da casa. — Mas, assim… Brrrrrr! Com este frio! – e acomoda-se de novo no casaco de penas que lhe veste o corpo.
Comadre lebre, à porta da toca, orelhas levantadas, deita um olhar ao matorral que cerca a sua casa.
— Não há dúvida de que esta alvura fica bem bonita, assim, pousada sobre as casas e os campos, como um manto de lantejoulas brancas! – exclama ela. – O pior é que de beleza ninguém enche a barriga. Enchem-se é os olhos, isso sim. Agora o papinho, era bom, era! Hoje, por exemplo, com tanta beleza, enchia-se a barriguinha até fartar. Mas não. Pobres dos bichos que têm de procurar alimento nas manhãs como esta! Que, por mim, pouco me ralo. Vou continuar a dormir um sono e só pela tardinha tenciono pôr as patas fora da toca. Quanto ao frio, ora, no Inverno já estou habituada. Também, para alguma coisa me há-de servir o fato de pêlo… – e a lebre entra na toca e volta a enroscar-se na cama quente do calor do seu corpo.
O sol começou agora mesmo a levantar-se. Primeiro, a bocejar por entre os lençóis de neblina com que se tapa. No Inverno, levanta-se mais tarde. Ou recusa-se, mesmo, a levantar-se. A debruçar-se, por pouco tempo que seja, lá em cima à janela de sua casa. E a terra fica mais fria sem o calor dos seus raios e menos alegre sem a claridade do seu esplendor. Mas o sol, talvez para se fazer mais desejado, esconde-se atrás do reposteiro cor de cinza que veste a abóbada do céu. E não se mostra, o maroto. Não dá sinal de si. Não se vê rasto dele. Às vezes entretém-se a pregar destas partidas dias e dias a fio – ainda que saiba muito bem a falta que faz!
As aves queixam-se:
— Sem o sol tiritamos de frio!
Os homens dizem:
— Quem dera que o sol desponte!
A terra pede:
— Anda, meu amigo, vem até mim, que morro de saudades. Bem sabes que sem ti não sou ninguém…
É nesta altura que o sol não resiste mais e aparece. Feliz por se saber amado mostra-se lá em cima. E retribui à terra a sua prova de amor com o beijo mais dourado dos seus raios.
A manhã alonga os passos pelos campos fora. E não se detém. Na pressa de chegar ao fim do dia nem sequer repara no tapete de azedinha e de trevilho, lado a lado como dois amigos que muito se prezam. Onde está um, está o outro! O trevo-dos-prados no anseio de nascer com quatro folhas para dar sorte à mão que o descobrir. As azedas a enfeitá-lo de amarelo nas pétalas que fecham ao entardecer. Mas o azevinho também marca encontro nesta altura do ano. Num emaranhado de picos e segredos, desponta pelas toiças a mostrar as bagas vermelhas na folha envernizada - que gosta de enfeitar Dezembro quando chega o Natal.
A tarde toma agora o lugar da manhã que parte. Instala-se, sacode o algodão das nuvens e põe-se toda de um azul-celeste. Tão azul se põe, que o céu se confunde com o mar, a mostrar-se, lá ao longe, aos olhos do povoado. Parecem um só, de braço dado: o mar e o céu! Mas verde e não azul, fica o mar quando está zangado e cinzento o céu, quando, sem revelar porquê, a tristeza o invade.
As figueiras, despojadas de folhas, erguem, como abraços apontados ao céu, os troncos esguios, num protesto. Ao verem as laranjeiras agasalhadas na copa redonda da rama verde-escura, sentem, com maior nostalgia, a nudez cinzenta que lhes veste o corpo. O Outono cobiça e rouba as suas folhas e o Inverno não lhes devolve o adorno com que se embelezam. Por isso, saudosas do bem que perderam, segredam entre si: «Que sorte a das laranjeiras. Sempre bem vestidas, sempre perfumadas, enfeitadas de frutos no Inverno!» E têm razão. Viajantes de mares longínquos desde a China, lá estão elas, as laranjas, entre a saia rodada das laranjeiras, a lembrar marés e caravelas no primeiro pé de laranja doce. À sua volta, as outras árvores quase pararam por completo a dádiva cíclica dos frutos. Mas as laranjeiras, árvores de folha perene, orgulham-se de oferecer nos ramos os gomos sumarentos durante a estação fria do Inverno. Quanto às figueiras, árvores de folha caduca, terão de esperar um pouco mais. Até à chegada da Primavera, altura em que começam a vestir de novo o aconchego dos seus vestidos verdes. Tão verdes como, por vezes, a cor do mar que banha os países onde, roxos ou brancos, amadurecem os seus frutos.
No céu, a cor azul-celeste deu lugar ao tom azul-escuro. Sinal de que a noite vai chegar. As nuvens, vindas de um sítio que só elas sabem, correm, correm de novo pelo céu fora como se tentassem agarrar o vento. Agarrar o vento? Oh, não! O vento é que as empurra. E elas não protestam. Obedecem. Umas atrás das outras, num galope sem freio à sua frente.
Com o vento, veio a noite, agasalhada na sua capa de breu. É nela que oculta a escuridão que lança sobre a Terra para que esta adormeça. E também as sombras, que num bailar constante, têm por missão velar-lhe o sono, até que a Terra desperte e o dia amanheça.
— Pai! Pai Pinheiro! Onde se esconderam as estrelas do céu, que não as vejo?
— Atrás das nuvens… - responde o pinheiro, pai da pinha que baloiça ao vento entre as agulhas finas.
— Agasalhadas nelas porque têm frio?
— Não, minha filha. As nuvens não podem aquecer as estrelas, porque são elas que trazem a chuva!
— Ah! – diz, simplesmente, a pinha.
— E tu, não dormes? – pergunta o pai.
— Ainda não. Penso que as estrelas fazem falta no céu…
— Sim, as estrelas do céu são as mais bonitas que enfeitam os pinheiros!
Recolhido de novo sob o telhado da casa, o pardal, cabecinha enfiada no casaco de penas, dorme. Sonha, talvez, com o fim do Inverno. Com o ninho, que há-de construir, com os ovos, os filhos, o perfume das flores e as searas de trigo… E nem dá pela chuva que começa a cair.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que o Inverno me Contou»
Ed. Publicações Europa-América